Senso incomum

Cada cabeça, uma sentença e a tese do espantalho

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26 de março de 2020, 8h00

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O título desta coluna alberga séculos de discussão. Este texto tem um caráter simbólico. Abrangente. Com caráter transcendental.

Vamos, então, ao tema.

Fiz uma crítica à decisão, descabida e equivocada (logo depois revogada em segundo grau) do juiz do Rio de Janeiro que permitiu os cultos da igreja de Silas, o Malafaia, mesmo no meio do estado de calamidade provocado pelo coronavírus. Na verdade, é a maior crise de saúde pública dos últimos tempos.

Spacca
Recebi, para além de elogios, severas críticas nas redes sociais (na verdade, como explicarei abaixo, trata-se da tese do espantalho – o que justifica a figura no frontispício desta coluna). De um lado, juízes defendendo a decisão do juiz. De outro, discordando de minha crítica. Algo do tipo “está bem, ele errou, mas não vem criticar, está bem?”. Ou algo do tipo “quem é você para criticar o magistrado”? Esta última é uma daquelas críticas parecidas com o anti-intelectualista que discute com um cientista e diz: “- só porque você é cientista, estudou, escreveu dezenas de livros, acha que pode me criticar?” Tranquilo. Calma. Entendi. Peço desculpas pela “ousadia”.

Porém, reincido. Por teimosia epistêmica. A decisão que critiquei – muito mais pelo seu aspecto simbólico, do que o real – é um monumento ao arbítrio, ao solipsismo e à antiteoria do Direito. E até mesmo contra a cambaleante dogmática jurídica, que nunca se preocupou com a decisão jurídica, optando, por parcela majoritária, em sacramentar uma espécie de empirismo-realismo-pragmatismo jurídico (para cada um dos termos, há um verbete no Dicionário de Hermenêutica).

Em particular, dois argumentos usados contra minha crítica chamaram a atenção: um deles é a de que, afinal, o juiz decidiu assim porque “tem liberdade para decidir” e que “cada cabeça, uma sentença”. Outro argumento é que “decisão também tem a ver com o coração” ou algo desse jaez.

O que dizer? Se um sistema jurídico e uma democracia dependem do adágio “cada cabeça, uma sentença” e até mesmo “do coração”, então devemos nos questionar qual é o papel do Direito. Para que servimos, afinal? O que estamos fazendo aqui?

Por que critiquei a decisão do juiz? Simples. Porque o juiz, não fosse sua decisão cassada pelo Tribunal, poderia ter causado-piorado uma disseminação de coronavírus em um ou mais cultos da igreja do Malafaia.

Mutatis, mutandis, minha pergunta foi e tem sido: pode o juiz – ou qualquer juiz da República -, decidir como quer, porque “cada cabeça, uma sentença”? Para mim, mesmo alguém que tenha lido de forma defeituosa a questão da “ponderação”, não cometeria um erro desse quilate.

E isto por uma razão singela: qual é o periculum in mora em favor de se fazer cultos no meio de uma pandemia? Permissa vênia, mas o periculum não estaria, justamente, do lado da saúde? Embora não comungue da teoria alexyana, sugiro: poderia o juiz ter perguntado se a medida que estava prolatando era necessária. E se ela era adequada.

Porém, a pergunta fundamental seria: qual é o direito fundamental a ser fazer cultos no meio de um estado de emergência sanitário? Esse é o ponto. Dizendo-se defender direitos, muitas vezes sequer se sustentaria a argumentação de que se trata de um direito fundamental em primeiro lugar. O prédio rui porque sequer tinha alicerce.

Tenho responsabilidade acadêmica como professor. Por isso, sou obrigado a perguntar: Seria o Direito algo tão singelo e tão disponível, a ponto de um juiz invocar o princípio da legalidade para, a critério dele, deixar, contra tudo e contra todos, que um pastor realize cultos no meio de uma pandemia? É esse o conceito de legalidade que temos? Bom, se é esse o conceito, teremos que começar tudo de novo. Porque fracassamos.

Mas o que mais me intrigou não foi o argumento do uso do coração – afinal, ouço o argumento da sensibilidade seguidamente, no adágio ‘sentença vem de sentire’ (sic) – e, sim, o adágio “cada cabeça, uma sentença”.

Também não me impressiona (mais) a critica de que “Streck é contra os juízes”, quando, na verdade, toda a minha obra é uma ode à jurisdição ordinária e constitucional. Reconheço meu pecado: exigir responsabilidade política da magistratura e ministério público e rechaçar decisionismos, ativismos e arbitrariedades. Eis, aí sim, meu pecado capital, o de exigir uma ortodoxia constitucional.

Isto é, meu pecado é o de insistir em uma legalidade autêntica, não num legalismo (ou, de outra ponta, um pamprincipiologismo) que reivindica princípios e desvirtua seu verdadeiro propósito em nome de fins previamente estabelecidos.

Pamprincipiologismo não é só quando o princípio não existe; é também quando um princípio constitucional, ainda que autêntico, é invocado sem que se explique o devido ajuste institucional que o faça incidir na decisão.

Legalidade-liberdade-religiosa-liberar cultos no meio de uma pandemia: em nome de quê? Os elos são frágeis, muito frágeis, demasiadamente frágeis para que se reivindique a fidelidade ao Direito em um caso desses. O Direito é um conjunto a ser interpretado em seu todo, com coerência e integridade. Não pode ser assim. Não pode ser o velho adágio.

Na outra face da moeda está aquele juiz federal de Recife que, sem lei, sem eira e nem beira, deferiu tutela antecipada para um estagiário, “transformando-o” em causídico.

De fato, vou para o inferno face a esses meus pecados de exigir respeito à Constituição.

Cada cabeça, uma sentença? O que tem por trás disso?

Respondo. Há por trás uma anuência às decisões sem fundamento jurídico adequado, decisões baseadas em qualquer coisa que sequer dialogue com o ordenamento jurídico, ou que reivindique o Direito para dar um caráter de juridicidade a decisões que são, no fundo e no limite, escolhas. Só que decisão não é uma escolha.

Também fui criticado porque usei o exemplo dos cães na plataforma e que não seria cabível. De fato, permito-me um “tim tim por tim tim”, o juiz não decidiu nada em relação à cães e nem às plataformas de trens e tampouco a qualquer cego com seu cão guia. Metáforas, alegorias e exemplos servem para universalizar compreensões e as facilitar. Não se pega uma metáfora ao pé da letra.

Portanto, explico: quando falei desse conceito estrito e reducionista de legalidade, quis dizer que é o que faria um juiz, diante da placa “Proibido cães na plataforma”, proibir o cão-guia e autorizar o urso. “Liberdade religiosa”, logo, autorize-se os cultos – no meio da pandemia que obriga, e com razão de ser, universidades, comércios, que obriga praticamente tudo a fechar? E o exemplo não se aplica? Não há lei que proíbe cultos, logo, liberemos…! É isso?

É o velho problema dos recortes. Atacam a metáfora e criticam a metáfora, não a crítica por trás da metáfora. Mas, bem, isso é mesmo típico do raciocínio a partir do qual “legalidade” é interpretar “liberdade religiosa” como “que o Malafaia faça o que bem entender, é tudo da lei”.

Além disso, estamos em face da “tese ou falácia do espantalho” (the straw man fallacy), isto é, as críticas não são dirigidas a mim. São, na verdade, dirigidas à versão distorcida de mim. Cria-se um espantalho de Lenio Streck, para nele bater. Algo como “não li e sou contra”.

Cada cabeça, uma sentença. E assim vamos.

A distopia é real. Em mais de um sentido. E agora não é metáfora.

Post scriptum: O tempora, o mores!

Despiciendo registrar quantas dissertações e teses de membros do MP e da magistratura que já orientei e de quantos foram meus alunos. Todos que tiveram esse face to face comigo e os que me conhecem mais amiúde (de juízes, promotores, desembargadores, presidentes de Tribunais, Procuradores Gerais, Presidente da AMB e de associações de MP e magistratura) sabem do meu respeito ao Poder Judiciário e ao MP, ao qual prestei serviço por quase 30 anos. Não preciso ser juiz – ou ter sido – para fazer crítica, respeitosa e fundamentada teoricamente, ao Poder Judiciário. Caso contrário, os doutrinadores que fazem criticas ao STJ ou ao STF deveriam, primeiro, ter sido membros desses Tribunais. Grandes e magistrais teóricos do Direito do mundo não foram magistrados. Claro que muitos o foram. E muitos foram do Ministério Público.

De “um é” não se tira “um deve ser”. Lei de Hume.

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