Olhar econômico

A minuta de portaria da Senacon sobre publicidade infantil precisa ser mais discutida

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

26 de março de 2020, 8h00

Spacca
A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça, realizou, em inícios do corrente ano, consulta pública sobre minuta de Portaria regulamentadora da publicidade infantil, objetivando harmonizar a proteção constitucional da criança e do adolescente, com o direito, também constitucional, da livre iniciativa dos fornecedores. O prognóstico era de que a portaria seria expedida ainda neste primeiro semestre. Entretanto, é provável que as presentes circunstâncias, que dificultam discussão cabal do assunto, aconselhe seu retardamento.

O gatilho para a intenção da Senacon foi disparado, devido à crescente veiculação de vídeos em plataformas digitais, com conteúdo dirigido a crianças, em que os influenciadores, por vezes crianças ou adolescentes, demonstram produtos de maneira chamativa. Geralmente desembrulham (unbox) presentes ou compras de determinadas marcas etc., auferindo lucro.

Abaixo o teor resumido da minuta de consulta pública.

Observa a Portaria, que sua aplicação deve ser feita à luz da Constituição Federal e da Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), conceitua anúncio publicitário e estabelece uma série de normas.

Para ela, anúncio publicitário é “qualquer mensagem, veiculada de forma escrita, por meio de sons ou por meio de sons e imagens, que, direta ou indiretamente, em mídia analógica ou digital, procure promover o consumo de produtos ou serviços postos no mercado por fornecedor nos termos do art. 3º da Lei 8.078, de setembro de 1990.”

Em suma, determina: que o desenvolvimento completo da criança deverá ser preservado pelo anúncio publicitário, que não poderá provocar discriminação; associar a situações incompatíveis; ligar consumo de produto à superioridade; provocar constrangimento para impingir consumo; utilizar pressão psicológica ou violência; e apresentar anúncio como se fosse notícia.

Os anúncios dirigidos ao consumo de crianças e adolescentes deverão contribuir para: desenvolver positivamente seus relacionamentos; respeitar a dignidade, ingenuidade etc. do público alvo; levar em conta as características psicológicas; evitar distorções psicológicas nos modelos publicitários e no público alvo; e estimular comportamentos civilizados.

Ficam proibidos merchandising ou publicidade indireta com a participação de crianças ou artifícios, que chamem sua atenção, em qualquer veículo. Os conteúdos e a publicidade somente poderão ser transmitidos em intervalos e espaços comerciais.

A avaliação de conformidade com a portaria levará em conta: o público-alvo ser o adulto; não dever ser anunciado produto ou serviço por crianças; linguagem e outros artifícios não deverão ser de modo a chamar atenção das crianças; crianças não poderão ser modelos publicitários, em anúncios de bem incompatível com sua condição.

Criança, com padrão biométrico atípico, não poderá ser utilizada em anúncio de refrigerantes, nem objeto de estímulo imperativo de compra ou consumo, salvo em campanhas educativas institucionais. Crianças e adolescentes não podem ser público-alvo, nem figurantes de anúncio de bebidas alcoólicas. Anúncio de produto farmacêutico, livre de prescrição, não poderá ter seu uso induzido a criança. Menores de idade não poderão figurar em anúncio de arma de fogo. Quando um produto for de venda proibida para criança ou adolescente, o respectivo anúncio deve dizê-lo expressamente.

Dentro do prazo, findo em 27 de março passado, dez associações, lideradas pela Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), responderam à consulta pública. Suas grandes linhas foram as seguintes:

As mais de 3.000 empresas, representadas pelas associações, estão comprometidas com o desenvolvimento sustentável da publicidade dentro dos parâmetros da livre iniciativa, liberdade econômica e responsabilidade social.

O controle público da publicidade infantil é feito pela Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor – CDC), em conformidade com a Constituição (arts. 22, inc. XXIX e 220, §§ 3º e 4º), complementado pelo Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (CBAP), controle privado.

A comunicação comercial é protegida constitucionalmente, tanto no exercício do princípio da livre iniciativa, quanto no direito fundamental de expressão de pensamento e circulação de ideias. A publicidade é meio vital de comunicação, contribui para o avanço econômico, promove a informação e last but not the least, viabiliza a existência da mídia. Mundialmente, anúncios publicitários possibilitam a disponibilização gratuita da internet, TV, rádio etc.

O CBAP, órgão de controle privado, congênere de órgãos existentes em vários outros países, implementa normas e códigos estabelecidos, seguindo requisitos de operação e governança, com estruturação orgânica e secretarial autônoma, manejo de queixas, serviços de orientação prévia e solução de disputas. Os processos são céleres, acompanhando o dinamismo do mercado. É grande a eficácia de tal controle, pois a adesão ao cumprimento das decisões do CONAR é de 100%; havendo respeito mesmo por parte de anunciantes não associados.

A substituição da autorregulamentação por uma portaria — instrumento infralegal — minimizaria o compromisso com o mercado, além do esforço de implementação de medidas preventivas, orientação prévia, medidas corretivas e repressivas, que vem sendo autoaplicadas nos últimos 40 anos.

Não pode ser esquecido o afã do Estado brasileiro em evitar instabilidade e excessiva intervenção na livre iniciativa, sem avaliação de impacto, que provocou a promulgação da Lei 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), que proclamou a intervenção mínima do Estado em qualquer setor econômico.

As dez associações requereram, afinal, que a Senacon “reconheça … a validade e vigência das normas autorregulamentares da publicidade e o seu regime de aplicação realizado pelo Conar a todos os anúncios, independentemente do meio e forma de veiculação, bem como as limitações auto-impostas pelos diversos atores envolvidos com publicidade no Brasil”.

É natural que haja posicionamentos sobre a consulta pública da Senacon. O manifesto do Instituto Alana e outras entidades, em forma de abaixo-assinado, em síntese, é o seguinte:

A legislação brasileira (art. 227 da Constituição Federal, CDC, Marco Legal da Primeira Infância e a Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA), já proíbe a publicidade infantil, em razão de ela causar malefícios. Por essa razão, não é o caso de abrir possibilidade para que empresas possam dirigir publicidade às crianças, que são incapazes de diferenciar entretenimento de publicidade. Os direitos da criança frente a interesses comerciais precisam continuar protegidos integralmente.

Do acima exposto, podemos extrair três opiniões acerca do tema sob exame: (i) necessidade de edição de Portaria pela SENACON; (ii) desnecessidade dessa emissão, pois já existe controle público da publicidade infantil, por meio do CBAP; e (iii) desnecessidade pois a publicidade infantil já se encontra proibida, legalmente, no Brasil.

A única pretensão do presente texto é apresentar subsídios iniciais básicos e interessar mais e mais pessoas a discutir e sugerir soluções a esse tema importante, atualmente em debate público. Obviamente, na mídia há trabalhos que exploram vários aspectos sobre a questão. [1] Os textos legais e jurisprudenciais que podem dizer a respeito ao assunto estão listados abaixo. [2]

O Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (CEDES), “think tank”, sem fins lucrativos, dedicado à promoção de debates a respeito dos grandes temas jurídicos que afetam a sociedade e a economia, propôs-se a servir de local de debate, entre a SENACON e demais interessados diretos no assunto. Tendo o Secretário Luciano Benetti Timm concordado em participar dos debates, será o Secretário convidado a indicar e disponibilizar data para a realização do encontro que poderá ser virtual, na impossibilidade de que tal se faça presencialmente, devido às restrições presentes. A pré-inscrição para os debates poderá ser feita por e-mail, encaminhando manifestação de interesse para [email protected].


[1]

Sabino, Marco. Não existe "publicidade infantil". Publicado na Revista Uol em 21 de fevereiro de 2020. Disponível em https://economia.uol.com.br/colunas/2020/02/21/nao-existe-publicidade-infantil.htm

Pasqualotto, Adalberto e Martins, Fernando Rodrigues, "Publicidade infantil entre regular, editar, copiar e colar”, Revista Consultor Jurídico, 6 de fevereiro de 2020. Disponível em www.conjur.com.br/2020-fev-06/opiniao-publicidade-infantil-entre-regular-editar-copiar-colar

(sem autor) "Organizações sociais lançam manifesto contra portaria da publicidade infantil". Revista Consultor Jurídico, 9 de fevereiro de 2020. Disponível em www.conjur.com.br/2020-fev-09/organizacoes-lancam-manifesto-portaria-publicidade-infantil

Adalberto Pasqualotto e Fernando Rodrigues Martins". Ministro Sergio Moro demonstra desconhecer regras de publicidade infantil. Revista Consultor Jurídico, 14 de fevereiro de 2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-fev-14/opiniao-moro-demonstra-desconhecer-regras-publicidade-infantil

Aidar, Bruna. Governo Estuda Multar Influenciadores por publicidades infantis. Público no Jornal Metrópoles em 24 de janeiro de 2020. Disponível em https://www.metropoles.com/brasil/economia-br/governo-estuda-multar-influenciadores-por-publicidade-infantil

Timm, Luciano. Publicidade no âmbito digital: entre livre-iniciativa, marco civil e defesa do consumidor. Publicado no Jornal Estadão em 10 de fevereiro de 2020. Disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/publicidade-no-ambito-digital-entre-livre-iniciativa-marco-civil-e-defesa-do-consumidor/

Cury, Renato José; Garcia, Talita N. Sabatini; Castro, Caroline Lerner. A polêmica da publicidade infantil no Brasil. Publicado no portal JOTA em 13 de janeiro de 2019. Disponível em https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-polemica-da-publicidade-infantil-no-brasil-13012019

Coutinho, Diogo R. Publicidade Infantil: ilegal e ponto final. Publicado no portal JOTA em 3 de fevereiro de 2020. Disponível em https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/publicidade-infantil-ilegal-e-ponto-final-03022020

Consulta Pública – Portaria Senacom. Publicado no Portal Criança e Consumo, em 10 de março de 2020. Disponível em https://criancaeconsumo.org.br/acoes/consulta-publica-portaria-senacon-janeiro2020/

Entidades questionam no MJ a flexibilização da publicidade infantil. Publicado no Portal Migalhas em 6 de março de 2020. Disponivel em https://www.migalhas.com.br/quentes/321337/entidades-questionam-no-mj-a-flexibilizacao-da-publicidade-infantil

Motta, Cláudia. Publicidade infantil: o peso da propaganda, oculta ou escancarada, na vida das crianças. Publicado no Portal Rede Brasil Atual, em 15 de março de 2020. Disponível em https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/03/peso-publicidade-infantil-vida-familias-criancas/

Andrade, Marcelo; CASTRO, Gisela G. S. Youtubers mirins e os vídeos unboxing: uma reflexão sobre a criança conectada nas tramas da publicidade contemporânea. Publicado na Revista Mídia e Cotidiano, em 29 de janeiro de 2020. Disponível em https://periodicos.uff.br/midiaecotidiano/article/view/38458/23444

Silva, Michael César; Silva, Samuel Vinícius; Novos contornos da Publicidade Infantil no Brasil após a decisão do Leading Case "é hora do Shrek". Publicado em Centro de Investigação de Direito Privado – Lisboa, em fevereiro de 2020. Disponível em https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2020/2/2020_02_0957_1000.pdf

Rebecka Santana Ribeiro, Priscilla Santana Silva, Paulo Victor Dafico moreira da Costa Gomes. Aspectos legais do reflexo da publicidade infantil na criança. Publicado em https://revistas.pucsp.br/aurora/article/view/37230/pdf

Cristian Silva Tavares de Moura, Grayce Nogueira Vidal de Souza, Giovana Azevedo Pampanelli Lucas. Youtube como canal para a publicidade infantil e sua influência no consumo: coisa séria ou brancadeira. Publicado Episteme Transversalis, em 2019. Disponível em http://revista.ugb.edu.br/ojs302/index.php/episteme/article/view/1345

Todos acessados em 23/03/2020

[2]

Constituição Federal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm (Art. 1 – IV, Art. 22 – XXIX, Art. 170 e Art. 227).

Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor – CDC). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm (Art. 36, Art. 37 e Art. 39).

Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069compilado.htm (art. 3, Art. 17, art. 71, art. 79, art. 87 e art. 88

Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (CBAP)1978. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8242.htm (art. 2).

Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Disponível em http://www.conar.org.br/codigo/codigo.php (art. 28, art. 29, art. 34 e art. 37). Acessando em 23 de março de 2020.

Lei 13.874/2018 (Lei de Liberdade Econômica). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm (art. 4).

Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet – MCI). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm (art. 2 e art. 19).

Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). Disponível em https://www.direitosdacrianca.gov.br/conanda/resolucoes/163-resolucao-163-de-13-de-marco-de-2014/view (art. 2) .

Regimento da SECOM. Disponível em http://www.secom.gov.br/acesso-a-informacao/legislacao

STJ – Recurso Especial nº 1.558.086 – https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/113808/Julgado_1.pdf

Acordo entre MP/SP e Google – https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/acordo-entre-mp-sp-google1.pdf

Todos acessados em 23/03/2020

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    é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

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