Direto do Carf

"IOF-crédito" sobre fluxos financeiros derivados de contratos de conta corrente

Autores

  • Diego Diniz Ribeiro

    é advogado tributarista e aduanerista ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento professor de Direito Tributário Direito Aduaneiro Processo Tributário e Processo Civil doutor em Processo Civil pela USP mestre em Direito Tributário pela PUC-SP pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV/SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

  • Débora R. March

    é advogada tributarista pós-graduanda em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas – GVLaw.

25 de março de 2020, 8h00

Spacca
A incidência de Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF) sobre fluxos financeiros provenientes de contratos de conta corrente é objeto de relevantes e, digam-se, contumazes debates perante as Turmas Ordinárias do CARF, dos quais defluíram recentes manifestações veiculadas em acórdãos proferidos pela 3ª Turma da CSRF.

Para compreensão da discussão, esclarece-se que a controvérsia reside, em rigor, na aplicação de regras de hermenêutica com relação ao art. 13 da lei n. 9779/991. Quer dizer, notam-se divergências de interpretação em relação à definição, conteúdo e alcance dos institutos, conceitos e formas de Direito Privado subjacentes ao assunto2, capazes de atrair ou afastar a incidência do referido art. 13 da lei n. 9779/99, na disponibilização de recursos financeiros escorada em contratos de conta corrente. Tais divergências advêm da redação conferida ao art. 13 da lei n. 9779/99, verbis:

Art. 13. As operações de crédito correspondentes a mútuo de recursos financeiros entre pessoas jurídicas ou entre pessoa jurídica e pessoa física sujeitam-se à incidência do IOF segundo as mesmas normas aplicáveis às operações de financiamento e empréstimos praticadas pelas instituições financeiras. (grifos nosso)

De fato, a hipótese de incidência delineada pela norma alhures reproduzida detém como antecedente normativo a ocorrência de operações de crédito correspondentes aos contratos de mútuo (o qual possui regime jurídico próprio, nos artigos 586 a 592 do Código Civil). Daí resulta a indispensabilidade da definição do alcance das normas de Direito Privado em âmbito tributário3, assim como da aplicação das regras de hermenêutica, eis que há remissão às operações correspondentes aos contratos de mútuo.

Uma primeira questão que poderia ser suscitada, seria a respeito da (in)constitucionalidade de uma hipótese de incidência que se utiliza de uma locução aberta, de caráter analógico, que remete a operações que correspondam a mútuo, sem esclarecer se se tratam de mútuos com elementos contratuais adicionais, mas que preserva seu núcleo causal, ou se abrange quaisquer operações que tenham como efeito a movimentação de recursos entre pessoas, com obrigatoriedade da sua devolução. Esse ponto, conquanto relevante, passa ao largo da discussão no âmbito do CARF, por força do art. 27-A do Decreto 70.235/72 e da súmula CARF n. 024.

Avançando, para compreender a incidência ou não da regra em testilha, é imprescindível averiguar se o contrato de conta corrente5 corresponde, em sentido estrito, ao de mútuo6. Esta verificação pressupõe detida análise dos elementos característicos das duas figuras: (i) se o contrato é típico ou atípico; (ii) se o contrato é convencional ou real; (iii) seus objetos; (iv) a natureza das tradições; (v) se o contrato é bilateral ou unilateral; (vi) se o contrato é oneroso ou gratuito; (vii) seu aspecto subjetivo (credores ou devedores); (ix) a cobrança de juros e (x) o prazo (determinado ou indeterminado).

Em uma primeira análise, observa-se que o contrato de mútuo consiste em empréstimo de coisas fungíveis, por meio do qual o mutuário obriga-se a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade, definição esta que é transportada do Direito Civil (art. 586 do CC), à luz do que preconiza o art. 110 do CTN.

O contrato de conta corrente, por sua vez, conquanto expressamente previsto pela lei n. 7.357/85 (art. 4º, parágrafo 2º, “b”), possui seus elementos típicos moldados a partir dos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao negócio (fenômeno reconhecido como tipicidade social).

Trata-se de espécie contratual da qual derivam contas nas quais são mutuamente registrados débitos e créditos decorrentes de transferências efetuadas pelos sujeitos contratantes, sendo incerta a existência prévia de credores e devedores, que são constatados, habitualmente, somente com a liquidação e encerramento das contas, ocasião em que (i) não serão apurados valores devidos pelos contratantes em função da correspondência entre débitos e créditos por eles registrados, ou (ii) um deles assumirá a posição de credor em relação ao outro em função de disponibilização de recursos financeiros em montante superior no período em que foram mantidas tais contas78

A partir do posicionamento retratado acima, não se falaria em incidência do “IOF-crédito” sobre operações derivadas de contratos de conta corrente, sob a justificativa de que este tipo de negócio jurídico (conta corrente) não guarda qualquer semelhança com os contratos de mútuo, à exceção da existência de fluxos financeiros nos dois casos. Haveria, na hipótese de exigência do tributo, emprego de analogia alicerçada em critérios econômicos para instituir indevida exigência tributária não prevista em lei.9

Em sentido semelhante, é possível citar o acórdão CARF n. 3402-003.018 segundo o qual os contratos de conta corrente e de mútuo são essencialmente distintos e o emprego daquele não implica, automaticamente, operação de crédito correspondente a este10. No sobredito caso, contudo, restou consignada ressalva no sentido de que incidirá o IOF se nos contratos de conta corrente ou na utilização do conta corrente contábil haja, concomitantemente, operações de concessão de crédito correspondentes a mútuo. Somente em tais situações é que haverá evento capaz de ensejar a tributação pelo IOF, como expressamente estabelecido pelo artigo 13 da Lei n. 9.779/99.

Em sentido diametralmente oposto, entretanto, é o posicionamento majoritário refletido em diversos acórdãos proferidos pelo CARF11, atualmente consolidado pela 3ª Turma da CSRF (acórdãos n.s 9303­005.583, 9303-009.257, 9303-009.884, 9303-009.885, 9303-009.960 e 9303-010.184), nos termos do voto a seguir transcrito que, inclusive, reformou o acórdão CARF n. 3402­005.232, alhures comentado:

O Contribuinte assevera que as operações que levaram aos lançamentos tributários são relativos a conta corrente, cujo objeto é a centralização de caixas das empresas, com gestão unificada das disponibilidades. Assim, ao tributar tais valores pelo IOF, que fora do mercado financeiro só incide sobre os contratos de mútuo, a Fiscalização estaria infringindo o princípio da legalidade, ao ir na contramão do artigo 13 da Lei nº 9.779, de 1999. Afirma ainda, a inexistência de elementos necessários ao contrato de mútuo, tais como a formalização em contrato escrito, a executoriedade, o risco, os juros, dentre outros.

Discordo do fundamento da decisão recorrida, de que haja diferênça [sic] ontológica entre o contrato de mútuo e o contrato de conta corrente, utilizado para gestão de caixa único. Com todas as vênias, entendo, em sentido diametralmente oposto, que a execução de um contrato de conta-corrente sempre implica a existência de um contrato de mútuo.

(…)

É claro que todos os recursos postos à disposição do mutuário/mandatário, caso não sejam utilizados no pagamento de despesas, devem ser devolvidos ao mutuante/mandante, o que confirma a ocorrência do mútuo no âmbito dessa operação complexa.” (destaques apostos)

Diante disso, atualmente, a posição mantida pelo órgão julgador responsável por unificar a jurisprudência no âmbito da 3ª Seção do CARF, é no sentido de que a existência de um contrato de conta corrente sucede um contrato de mútuo, tornando os fluxos financeiros dele decorrentes sujeitos à hipótese de incidência do “IOF-crédito”.

Finalmente, vale registrar que a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por ocasião do julgamento do recurso especial n. 1.239.101 – RJ, em 13.9.2011, asseverou que o art. 13 da lei n. 9779/99 incide sobre as operações realizadas ao abrigo de contrato de conta corrente entre empresas coligadas12.

Em que pese a ementa do aludido acórdão ilustrar o posicionamento pela incidência de IOF sobre fluxos financeiros decorrentes de contratos de conta corrente, é imprescindível registrar que, ao se analisar a íntegra do acórdão, constata-se que a exigência no caso concreto decorria de contratos de abertura de crédito em conta corrente, havendo a disponibilização de determinada quantia à contratante, com a obrigação de pagamento do valor sacado em prazo determinado, afastando-se, pois, das operações realizadas ao abrigo de contratos de conta corrente habituais, os quais carecem de qualquer previsão prévia de concessão de crédito.

Nesse sentido, apesar da posição consolidada do CARF para a matéria, permanece ainda uma possível discussão a ser deflagrada no palco judicial, em especial no âmbito do STJ.

Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


1 E.g. artigos 108, 109 e 110, todos do CTN e art. 11, inciso I, alínea “a” da lei complementar n. 95/98.

2 E.g. artigos 114 e 116, ambos do CTN.

3 Art. 110 do CTN.

4 O CARF não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária.

5 No contrato de conta corrente não se faz um mútuo nem se abre um crédito, mas se determina o destino de créditos futuros entre dois sujeitos, adotando uma conta na qual vão sendo lançados débitos e créditos que se excluem mutuamente e cujo saldo só é exigível quando se dá o vencimento do contrato ou mediante extinção voluntária deste. (Acórdão CARF n. 3402­005.232).

6 Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade.

7 Os contratos de conta corrente são usualmente utilizados em grupos econômicos para a prática do “caixa único”, que consiste na centralização no controle financeiro das pessoas jurídicas por meio de uma master account, normalmente gerida por uma holding.

8 Um quadro sinótico elucidativo, com as diferenças entre os dois tipos contratuais, pode ser compulsado no Acórdão CARF n. 3402-005.232.

9 Nesse diapasão, v. Acórdão CARF n. 3101-001.094.

10 No mesmo sentido, v. 3402-005.232.

11 Cf. acórdãos n.s 3402-007.303. 3301-006.706, 3402-006.645, 3401-005.393, 3302-005.802, entre outros.

12 TRIBUTÁRIO. IOF. TRIBUTAÇÃO DAS OPERAÇÕES DE CRÉDITO CORRESPONDENTES A MÚTUO DE RECURSOS FINANCEIROS ENTRE PESSOAS JURÍDICAS. ART. 13, DA LEI N. 9.779/99.

1. O art. 13, da Lei n. 9.779/99 caracteriza como fato gerador do IOF a ocorrência de "operações de crédito correspondentes a mútuo de recursos financeiros entre pessoas jurídicas" e não a específica operação de mútuo. Sendo assim, no contexto do fato gerador do tributo devem ser compreendidas também as operações realizadas ao abrigo de contrato de conta corrente entre empresas coligadas com a previsão de concessão de crédito.

2. Recurso especial não provido.

(REsp 1239101/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/09/2011, DJe 19/09/2011).

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    é advogado tributarista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia e Consultoria Tributária, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Processo Tributário e Processo Civil. Doutorando em Processo Civil pela USP e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet.

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    é advogada tributarista, pós-graduanda em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas – GVLaw.

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