Opinião

Estratégias de controle da pandemia e o imperativo de preservação da vida

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24 de março de 2020, 17h25

Com a chegada do novo coronavírus ao Brasil, tal como já se podia antever à vista do cenário global, também as nossas autoridades governamentais e o meio médico-científico começaram a discutir o modo de encarar e lidar com o grave problema, sem contudo, conseguirem chegar a um acordo e compromisso minimamente afinado quanto a uma estratégia em escala nacional, racionalmente articulada e capaz de transmitir à população um sentimento de coesão e firmeza na condução do processo de enfrentamento e superação da crise que tem assolado tantos países em tantas regiões do Planeta.

Pelo contrário, embora se tenha tido a possibilidade de acompanhar a evolução da pandemia desde o seu nascedouro, na República Popular da China, até a sua instalação, igualmente devastadora, em outros países na Ásia, Oriente Médio e Europa, monitorando erros, acertos, alternativas, etc., o Governo Federal brasileiro, sem prejuízo de vozes isoladas, inclusive nos quadros governamentais, quedou inerte, praticamente como se não pudéssemos ser alcançados pelo vírus do outro lado do Atlântico. 

A despeito — e apesar — disso, a chegada da Covid-19 no nosso espaço territorial, começou a mobilizar os atores públicos e a sociedade civil, seguindo-se a tomada de medidas em ambas esferas, por cada vez mais governos estaduais e municipais, paralelamente a providências levadas a efeito de modo induzido e mesmo, em não poucos casos, antes das instauradas pelas esferas governamentais.

Ainda que, ao longo especialmente da última semana, as medidas decretadas tenham sido enrobustecidas em ritmo acelerado e em praticamente todos os estados da Federação, incluindo municípios, não se chegou a uma concepção minimamente coesa, articulada, para todo o país, ainda que se deva, à evidência, observar as peculiaridades — por vezes significativas — regionais e locais, v.g., dimensão territorial, densidade habitacional, vulnerabilidade maior ou menor de determinados grupos da população, configuração e capacidades do sistema de saúde, acessibilidade, dentre outros.

À falta de diretrizes claras, cientificamente balizadas, transparentes e não contraditórias (basta invocar a dissonância entre discursos e ações internas) da parte do Governo Federal, em nada auxilia, pelo contrário, compromete uma ação integrada, solidaria e eficaz nos demais níveis da estrutura estatal nacional, gerando insegurança, desconfiança e mesmo medo.

O problema se torna mais agudo, quando governadores e prefeitos, ainda que ao seu modo, têm sido protagonistas de ações mais fortes, sendo, contudo, publicamente desautorizados e mesmo repreendidos pelo chefe do Executivo brasileiro, como se não estivessem legitimados a agir, o que não afasta, à evidência, a necessidade de uma vigilância relativamente a legitimidade constitucional de todas as medidas, seja de onde provenham, quando impõe pesadas restrições a direitos fundamentais.

Se esta última opção corresponder de fato à concepção assumida publicamente como discurso e prática oficial do Governo Federal, patrocinada pelo seu representante máximo, trata-se possivelmente de uma das orientações governamentais mais gravemente incompatíveis com a dignidade humana e os direitos fundamentais já adotadas no Brasil, ainda que tais consequências não tenham sido diretamente quistas.  

É o que passamos a esclarecer.

Como ainda não há vacina contra o corona-vírus, as medidas de enfrentamento da epidemia são "não-farmacêuticas". Tomando como referência — sem prejuízo de outras perspectivas de alto quilate — estudo do prestigiado Imperial College da Inglaterra, duas estratégias, baseadas nessas medidas, podem ser adotadas: a da supressão e a da mitigação.[1] Há ainda a possibilidade de não tomar medida nenhuma.

Na estratégia da supressão, assim que o vírus é identificado no país, o governo determina que as pessoas se mantenham em casa, e restrinjam ao máximo o contato externo. Com isso, a contaminação da população, embora também ocorra em larga escala, é protraída no tempo, e o sistema de saúde consegue atender aos doentes graves. O efeito indesejável da estratégia é o maior custo econômico. Como as pessoas ficam confinadas em casa por alguns meses, muitas empresas fecham, e as demissões ocorrem generalizadamente. Preservam-se as vidas, mas se sacrifica a economia e, com isso, se criam outros problemas graves para a sociedade.

Na estratégia da mitigação, a população não é instada a se manter em casa. Apenas as pessoas que tenham contraído o vírus ou que estejam no grupo de risco são isoladas do convívio social. As demais continuam trabalhando: evitam apenas as aglomerações, além de adotarem medidas especiais de higiene. Seguida essa estratégia, o cume do ciclo de contaminações é muito mais agudo, e grande número de paciente graves não consegue atendimento hospitalar. Por outro lado, grande parte da população é imunizada e a epidemia termina em menos tempo. Sacrificam-se as vidas, mas o impacto sobre a economia é menor que se adotada a estratégia da supressão.

Se nenhuma medida é tomada — opção também possível —, a epidemia se alastra ainda mais rapidamente, e a imunização, por consequência, também é mais rápida. Das três estratégias, é a que produz menor impacto econômico. Mas morre o dobro das pessoas que morreriam se a abordagem mitigadora fosse adotada: uma proporção maior da sociedade é contaminada e, no momento de pico da epidemia, a demanda supera em muitas vezes a quantidade de leitos disponíveis.

A estratégia da mitigação estava sendo adotada pela Inglaterra. Porém, o Imperial College, instituição científica daquele país, apresentou dados revelando que, em razão disso, morreriam 250 mil ingleses — se nenhuma medida fosse tomada, morreriam 500 mil. De imediato, o gabinete de Boris Johnson a abandonou, e passou a adotar medidas de supressão.[2] Com base no mesmo modelo, os cientistas do Imperial College concluíram também que, nos EUA, a adoção da estratégia da mitigação levaria à morte de 1 a 1,2 milhões de pessoas.

Diante dos dados, também nos EUA vêm sendo tomadas medidas supressivas mais rigorosas, sobretudo pelos governos estaduais, além de se verificar um esforço nacional de redução do impacto da epidemia por meio de medidas mitigadoras conjugadas. Trump declarou o coronavírus emergência nacional. Hoje, o apoio aos estados já conta com um orçamento de US$ 50 bilhões.

O Congresso americano agora discute qual será o valor empregado na recuperação da economia, que inclui medidas como a concessão de apoio financeiro para todos os americanos e o aumento do auxílio desemprego, que, numa primeira etapa, deverá ser de pelo menos US$ 1 trilhão.

No Brasil, a estratégia da supressão foi adotada pela maioria dos governadores e prefeitos, que têm suspendido aulas, comércio, transportes e eventos públicos, além de recomendar fortemente a permanência das pessoas em casa. Em sentido diametralmente oposto, o Executivo nacional parece ter decidido não enfrentar o avanço da epidemia, senão  por meio de algumas medidas de mitigação, avançadas e, de resto, progressivas, adotadas pelo Ministério da Saúde, aparentemente, pelo que se infere dos pronunciamentos vindos do Palácio do Planalto, buscando contornar, dentro das possibilidades, a passividade então vigente.

Há países que, por meio da testagem generalizada da população, isolamento dos contaminados e rastreamento eletrônico de todos as pessoas que possam ter sido expostas ao vírus, alcançaram bons resultados, como ocorreu na Coreia do Sul. Foram aplicados 250 mil testes — 15 mil por dia. O país registrou 91 mortes. Só não foi necessário o isolamento total da população em decorrência dessa organização superior para enfrentar a epidemia.

No Brasil, em contraste, o que se tem visto são autoridades surpreendidas com a dimensão do problema. Até o momento, o país não dispõe, por exemplo, de kits de testagem rápida e de organização logística para aplicá-los em larga escala, o que poderia permitir atenuar o rigor do isolamento e garantir, com segurança, a continuidade de atividades econômicas essenciais e serviços públicos básicos.

As manifestações contrárias ao fechamento de estabelecimentos comerciais, shopping centers, igrejas e locais de culto, os quais reúnem centenas de pessoas, não são compreensíveis no presente contexto. A racionalidade da estratégia do Governo Federal (sabe-se que não sem dissenso interno) de, ao menos por ora, não investir no enfrentamento generalizado, contundente e articulado mediante um pacto federativo, não se justifica para enfrentar uma epidemia tão letal, que se alastra tão rapidamente. Reunir muitas pessoas em um mesmo local é procedimento que não se harmoniza sequer com a estratégia da mitigação.

Ao fim e ao cabo, opta-se por salvar a economia e os interesses de alguns setores privados, ainda que às custas de um número muito maior de vítimas da pandemia.

O problema que aqui se quer desnudar e enfrentar do ponto de vista do direito constitucional e dos direitos humanos e fundamentais, é justamente o de que a estratégia da mitigação — mesmo que se admita, como um objetivo constitucionalmente legítimo — o discurso econômico, em especial se voltado à preservação de empregos, mínimo bem estar social, etc., e não à satisfação da gula de alguns setores empresariais, é manifestamente ilegítima e injustificável do ponto de vista jurídico.

No Brasil, se adotadas apenas medidas mitigadoras, tudo seria muito mais grave que na Inglaterra e nos EUA, caso seguissem trilhando esse caminho. Temos leitos em menor quantidade que aqueles países, e menos recursos para ampliar rapidamente a capacidade instalada, isto sem falar no número de médicos, enfermeiros, equipamentos, etc. Nas áreas mais pobres das grandes cidades brasileiras, há casebres e barracos muito próximos uns dos outros. É comum que, em habitações de cerca de 30 m2, morem 8 pessoas ou mais, incluindo idosos. Nesses locais, não é possível isolar a população de risco, nem quem já está contaminado.

À vista disso, mesmo sem adentrar a dimensão jurídico-constitucional do problema, a estratégia — ao menos por ora — ostensivamente privilegiada no Palácio do Planalto, se revela manifestamente destoante em relação à praticamente totalidade das políticas de enfrentamento da crise e de suas trágicas sequelas, no restante do Mundo.

Embora tal cenário não retire do Governo Federal brasileiro a prerrogativa de seguir o seu próprio caminho, já em uma perspectiva pragmática, é de se estranhar (para dizer o mínimo) que o investimento, a esta altura dos acontecimentos, na estratégia da mitigação, seja razoável, como se em todos os outros casos, em caráter ilustrativo, os da China, Coreia do Sul, Singapura, Irã, Itália (veja-se as consequências de uma ação efetiva retardada), Espanha, Alemanha, Inglaterra e EUA, se estivesse equivocado.

Independentemente do número de Países que adotaram e ainda venham a adotar uma ou outra solução (superação ou mitigação), o que importa para o caso brasileiro, é que uma opção política que implique, por mais relevante que seja conter uma crise econômica, ainda que grave, é manifestamente incompatível com os princípios estruturantes e os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, e isso por um somatório de razões, que aqui não se pretende exaurir.

Numa primeira aproximação, pelo fato de que os princípios fundamentais insculpidos no primeiro Título da Carta Política, em especial a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), mas também os da solidariedade e da prevalência dos direitos humanos (respectivamente artigo 3º, inciso I,  e 4º, inciso II), conformam e informam toda a ordem constitucional, que, além disso, é fundada na simetria entre os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV). Além disso, a própria ordem econômica constitucional — e, portanto, o sistema econômico — deve observar os ditames da justiça social e assegurar a todos uma existência digna (artigo 170, caput).

Some-se a isso o expressivo conjunto de direitos civis, políticos, sociais e ambientais, em especial os direitos à vida, integridade física e o direito à saúde, não deveriam restar dúvidas minimamente plausíveis para dar sustentação a uma estratégia que resulte em um maior (e expressivamente mais alto) sacrifício de vidas humanas.

Dito de outro modo, procedendo-se a um sopesamento (ponderação) entre a proteção da saúde econômica (que inegavelmente também implica benefícios para a sociedade) do país — pressupondo-se ser este um objetivo constitucionalmente legítimo —, e o intento de evitar a morte de milhares de pessoas além do montante de vidas ceifadas, no caso de adotada da forma mais eficaz possível a estratégia da superação, não admite outra resposta constitucionalmente consistente que a refutação da primeira alternativa.

Em apoio a tal solução, fala o argumento de que também o Governo Federal brasileiro, assim como os governos das demais esferas federativas, tem à sua disposição instrumentos que permitem a adoção de planos de natureza emergencial, contingenciando gastos em alguns setores para dar cobertura às despesas indispensáveis à execução das medidas de superação da pandemia. Ainda que não se possa comparar a pujança da economia norte-americana com a nossa, e mesmo com a de outros países, tal circunstância não justifica, guardadas as proporções, a aposta em uma estratégia que potencialize, em termos geométricos, a morte de seres humanos.

Nesse contexto, não há como deixar de referir que também o Poder Judiciário já tem sido convocado a se pronunciar sobre a legitimidade jurídica das medidas adotas por estados e municípios. Em decisão proferida nesta terça (24/3), o STF acabou se pronunciando sobre o tema, ainda que em caráter provisório, quando o Ministro Marco Aurélio de Mello deferiu, em parte, medida liminar para explicitar que a MP 926/20, que transfere para os órgãos reguladores (Anvisa, Anac e Antaq) o poder de restrição da locomoção em todo o território nacional, não afasta a competência de estados e municípios para tomar medidas para conter a pandemia do coronavírus.

Outrossim, numa perspectiva para além do estritamente jurídico,  deve ser enfatizado que também no Brasil, a cidadania aguarda das autoridades públicas, mais do que nunca, objetividade, organização e ciência, clamando por uma ação racional e organizada por parte do governo, que, reitere-se, não é a de priorizar outra coisa a não ser a garantia da vida, da saúde, e, em especial, a dignidade humana.

De outra parte, como bem acentuou a chanceler alemã Ângela Merkel em recente e amplamente difundido pronunciamento, a cuida-se, acima de tudo, de uma responsabilidade compartida entre poder público e sociedade civil organizada. Apenas se todos os cidadãos compreenderem a seriedade do problema e assumirem também como sua a tarefa de agir em prol de sua superação.

Mais. Nada obstante se tratar de afirmação multicitada e mesmo, para alguns, piegas, nunca é demais relembrar o famoso discurso de John F. Kennedy quando de sua posse como Presidente dos EUA, em 20.01.1961: não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer pelo seu país (ask not what your country can do for you—ask what you can do for your country).

Que tal assertiva assume dimensão particularmente atual e relevante em tempos difíceis, que exigem grandes, senão mesmo imensos sacrifícios, coragem e determinação coletiva, não nos parece necessário sublinhar, tornando o imperativo da solidariedade ainda mais significativo.


[1] Imperial College COVID-19 Response Team. Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce COVID19 mortality and healthcare demand. DOI: https://doi.org/10.25561/77482

[2] https://www.bbc.com/news/health-51915302

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