Paradoxo da Corte

Embargos de declaração contra decisão denegatória de REsp e RE

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

24 de março de 2020, 8h00

O cerne do presente artigo se insere na problemática do cabimento ou não de embargos de declaração contra a decisão que nega trânsito aos recursos especial e/ou extraordinário.

Trata-se de temática simples e pacificada no âmbito da ciência processual civil, mas descortina-se verdadeiramente complexa e controvertida na experiência forense, devendo, portanto, ser examinada com o devido comedimento, para, ao final, assinalar qual a orientação que me parece mais adequada.

É certo que os atos processuais postulatórios deduzidos pelas partes demandam que o respectivo órgão julgador, nos termos do artigo 489 do Código de Processo Civil, pronuncie-se de forma tanto quanto possível explícita.

A atuação de cada parte, com o objetivo de prevalecer seus respectivos argumentos, na emblemática metáfora de Piero Calamandrei (Il processo come giuoco, in Opere giuridiche, vol. 1, Napoli, Morano, 1976, pág. 540), compara-se a um “giuoco per vincere”, no âmbito de uma disputa racional entre interesses colidentes, ganha aquele que efetivamente possui razão, sendo certo que incumbe ao juiz escolher qual das partes fez melhor uso dos meios técnicos apropriados para demonstrar seu respectivo razões.

Com efeito, dentro dessa perspectiva de contraditório e ampla participação das partes na construção e alcance de um resultado justo e adequado (tutela jurisdicional), é evidente que ainda possa existir falhas e vícios no pronunciamento judicial.

Como assevera Vicente Miranda, “a finalidade, pois, dos embargos de declaração é a de obter esclarecimento ou complementação do decisum. Aí está delineado o âmbito do recurso. Esclarecer significa aclarar, eliminar dúvidas, tornar claro, espancar contradições. E complementar quer dizer tornar completo, preencher, perfazer. Nada é alterado ou modificado. Apenas se esclarece ou se completa. Interpõe-se o recurso perante o mesmo juízo prolator do despacho, decisão, sentença ou acórdão. É o mesmo juízo que vai completar ou esclarecer ato seu. Nessa modalidade recursal, juiz a quo e juiz ad quem se identificam em um mesmo órgão jurisdicional. A expressão ‘embargos de declaração’ bem delineia a ideia central do presente recurso. Declarar, na acepção comum, significa expressar, explicar. Na linguagem técnico-processual brasileira, declarar tem significado próprio, peculiar, diverso daquele comum que os dicionaristas registram. Declarar, em direito processual civil brasileiro, quer dizer aclarar ou complementar” (Embargos de declaração no processo civil brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1990, págs. 9-10).

Igualmente, vale lembrar a esse respeito a clássica lição de Pontes de Miranda, ao asseverar que:

“Qualquer decisão judicial, seja interlocutória ou sentença, é suscetível de embargos de declaração. Basta que tenha havido obscuridade, dúvida ou contradição, ou omissão. A lei não se refere à decisão fora do que se tinha de decidir, mas seria absurdo que se pudesse recorrer com embargos de declaração tendo sido omissivo o julgado, e não pudessem opor embargos de declaração contra a decisão que, devendo ater-se a x, decidiu x e y. Se a decisão é irrecorrível, a irrecorribilidade somente concerne aos outros recursos, e não ao recurso de declaração (cf. Comentários ao Código de Processo Civil de 1939, t. 12, 2ª ed., p. 131, em que levantamos o problema e damos a solução)
(…)
Todavia, há omissão nos artigos 463, II, e 464, pois apenas se referem à sentença, como se não pudesse haver o recurso de embargos de declaração contra decisões interlocutórias e nos próprios despachos de expediente, como se foi contraditória, ou obscura ou omissa” (Comentários ao Código de Processo Civil, t. 7, Rio de Janeiro, Forense, 1975, págs. 400/401 – destaquei).

Veja-se, portanto, que desde há muito a doutrina processual brasileira defende, como não poderia ser diferente, que “qualquer decisão judicial” é suscetível de embargos de declaração.

Não foi por outra razão que o vigente Código de Processo Civil houve por bem estender o cabimento dos embargos de declaração “contra qualquer decisão judicial” (artigo 1.022), eliminando assim dúvida que pudesse existir quanto à interpretação distorcida do artigo 535 do revogado diploma processual, visto que in claris cessat interpretatio.

Trilhando esse raciocínio, despontam os comentários de Luis Guilherme Aidar Bondioli, ao examinar o artigo 1.022, caput, do atual Código de Processo Civil, in verbis:

“Ao estabelecer que ‘qualquer decisão judicial’ é passível de embargos de declaração, o caput do art. 1.022 do CPC expõe todos os pronunciamentos judiciais a esse recurso específico. Não há mais menção apenas a “sentença” ou “acórdão”, tal qual fazia o inciso I do art. 535 do CPC de 1973. Procura-se, assim, eliminar de uma vez por todas posturas restritivas diante dos embargos declaratórios, tendentes a excluir da sua alça de mira determinados pronunciamentos judiciais.
(…)
Nos procedimentos em curso perante os tribunais, há a emissão de pronunciamentos colegiados (acórdão – art. 204 do CPC) e monocráticos, quer por relator (art. 932 do CPC), quer por presidente ou vice-presidente (por exemplo, art. 1.030, caput, do CPC). Todos eles são embargáveis, sem exceção” (Comentários ao Código de Processo Civil, v. XX, 2ªed., Saraiva, São Paulo, 2017, pág. 161/163 – destaque meu).

Diante do inarredável consenso encontrado na antiga e na atual literatura processual acerca do cabimento dos embargos de declaração contra toda e “qualquer decisão judicial”, dúvida não pode haver, portanto, que as decisões que negam trânsito aos recursos dirigidos aos tribunais superiores podem (e devem) ser embargadas, nas situações em que a parte identificar os requisitos para sua adequada oposição.

Nota-se, portanto, que não se descortina mais compatível com a atual sistemática processual que o Superior Tribunal de Justiça continue prestigiando obsoleto entendimento jurisprudencial no sentido de que se faz “inadmissível embargos de declaração contra despachos denegatórios de recursos especial e extraordinário e, assim, reconhecendo-se a intempestividade do recurso de agravo sucessivamente interposto”, em detrimento do direito do recorrente.

Bem é de ver, outrossim, que o próprio Superior Tribunal de Justiça vem sinalizando que a alteração desse entendimento jurisprudencial se mostra cada vez mais imperiosa.

Nessa esteira, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do julgamento do Agravo Regimental em Agravo em Recurso Especial n. 37.144/RS, sob a relatoria do ministro Teori Albino Zavascki, assentou o seguinte entendimento, in verbis:

“Não se desconhece a existência de jurisprudência desta Corte no sentido de que são incabíveis embargos de declaração contra a decisão que não admite o recurso especial na origem (AgRg no Ag 1.340.591/PR, 5ª T., Min. Jorge Mussi, DJe de 01/02/2012; AgRg no AREsp 30.109/BA, 2ª T., Min. Mauro Campbell Marques, DJe de 13/10/2011; AgRg no AREsp 83.519/SP, 6ª T., Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 19/12/2011; AgRg no Ag 734.465/RJ, 4ª T., Min. Maria Isabel Gallotti, DJe de 28/04/2011), razão pela qual sua oposição não interrompe o prazo para a interposição do único recurso cabível, que é o agravo.

No entanto, o caso concreto apresenta a peculiaridade de que o Tribunal de origem conheceu dos embargos para, a seguir, rejeitá-los (fls. 392/393). Assim, dada a existência de justa expectativa da parte de que os embargos de declaração opostos haviam interrompido o prazo para a interposição do agravo em recurso especial, esta não pode se penalizada com a declaração da intempestividade de seu recurso. Nesses termos, deve ser mantido incólume o entendimento da decisão agravada” (destaques meus).

E, assim, por esta significativa circunstância, salta aos olhos a justa expectativa do embargante acerca da interrupção do seu prazo recursal, de modo que não há que se falar em intempestividade de seu recurso de agravo, tal como tem sido restou decidido (conforme, por exemplo, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 1.359.596/SP).

Além desse pormenor, em muitas ocasiões, como é cediço, a decisão denegatória do recurso especial e/ou do recurso extraordinário reveste-se de extrema generalidade, a exigir explicita e pontual fundamentação acerca de questões suscitadas no âmbito das razões deduzidas nas respectivas impugnações., quando nada, para que a parte interessada possa atacar, de modo satisfatório, os fundamentos do ato decisório que será objeto do agravo.

Seguindo esse mesmo entendimento, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do emblemático Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial n. 275.615/SP, sob a relatoria do ministro Ari Pargendler, assentou que:

“O desate do thema decidendum depende de saber se a oposição de embargos de declaração à decisão que na instância ordinária nega seguimento a recurso especial interrompe o prazo para a interposição de agravo para o Superior Tribunal de Justiça.

A jurisprudência, sem explicitar a respectiva motivação, tem se orientado no sentido de que esse prazo não é interrompido.
(…)

Decidido que o julgado tem mais de uma motivação e que o recurso deixou de atacar todas, o recurso de agravo só teria viabilidade se explicitados quais fundamentos a irresignação deixou de impugnar.

Em casos que tais, é de rigor a oposição de embargos de declaração.

Voto, por isso, no sentido de conhecer dos embargos de divergência, dando-lhes provimento para que o agravo seja conhecido” (destaques meu).

Conclui-se, portanto, que não me parece sustentável a tese de que a única impugnação cabível contra ato decisório negativo do trânsito do recurso especial e/ou extraordinário é o agravo!

Melhor dizendo: trata-se de mais uma criação pretoriana que, a par de violar a literalidade do Código de Processo Civil, apresenta-se como inarredável óbice ao acesso à justiça!

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