Direito Civil Atual

A Covid-19 pode impactar a responsabilidade de administradores no Brasil?

Autor

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

23 de março de 2020, 9h29

Ameaçados pela volumosa e gigantesca onda que afeta a todos os brasileiros, especialmente a partir das duas últimas semanas, o Coronavírus (COVID-19) vem mostrando uma capacidade até então desconhecida, talvez comparável àquela detida pelas primeira e segunda guerras mundiais: o isolamento forçado imposto a todos os cidadãos.

Não havendo vacina disponível no momento, o “remédio” alardeado pelas autoridades é singelo: permanecer no recesso do lar, medida que vem sendo acompanhada por uma série de restrições impostas pelos poderes públicos em nome da segurança e da saúde de todos.1

As consequências financeiras decorrentes da onda viral são terríveis. Por mais que haja esforço no sentido de procurar manter os negócios em andamento, não é possível precisar, no curto ou no médio prazo, como estarão os mais variados setores da economia nacional. O governo brasileiro vem anunciando medidas com o objetivo de estimulá-la, mas, com o País praticamente parado, é difícil imaginar que os efeitos serão pouco deletérios, infelizmente. Se as grandes companhias vêm perdendo bilhões em valor de mercado, o que pensar do pequeno ou do médio empresário que, de inopino, simplesmente não consegue mais produzir, vender e/ou entregar o serviço até então naturalmente prestado.

Nesse contexto de pandemia global, pergunta-se: os administradores de companhias no Brasil estariam sujeitos a riscos decorrentes da COVID-19? O leitor desavisado pode pensar que não, que seria um exagero, talvez uma especulação precipitada, imaginar que os administradores poderão responder, pessoalmente, pelas consequências financeiras decorrentes da ameaça referida, mas, um olhar para os Estados Unidos da América já quer dizer o contrário.

De maneira ágil, investidores sentindo-se lesados por informações equivocadas prestadas por duas companhias ajuizaram ações coletivas (class actions). A primeira demanda foi proposta contra a Norwegian Cruise Lines 2 no distrito sul da Flórida. Em síntese, a causa de pedir corre no sentido de que a companhia teria omitido informações relevantes quanto aos males causados pela doença com o objetivo de, assim, preservar o seu volume de vendas.

A segunda class action foi proposta contra a Inovio Pharmaceuticals e está relacionada à divulgação, pela companhia, de que num curtíssimo intervalo de tempo a mesma desenvolveria a vacina contra a COVID-19.3 Instantaneamente, o valor das ações teve uma alta espetacular, mas, com a sequência dos fatos e o não desenvolvimento da mesma, as ações sofreram queda ainda mais acentuada do que a subida.

As duas class actions têm, em comum, o fato de que foram ajuizadas contra as companhias e alguns de seus administradores, o que revela, portanto, que as pessoas físicas também estão sendo tocadas pelo vírus, mas não apenas sob a perspectiva de sua saúde, mas de seu patrimônio.

E, naturalmente, enrijecendo-se as consequências financeiras sobre os ombros dos administradores, quase que de maneira automática as apólices de seguro D&O serão chamadas a responder por essas demandas de responsabilidade, sejam elas fundadas ou não.4

Os impactos decorrentes da COVID-19 vêm sendo muito duramente sentidos pelos mercados de bolsa de valores no Brasil e no mundo.5 A CVM, por essa razão, publicou o OFÍCIO-CIRCULAR/CVM/SNC/SEP/n.º 02/2020, chamando a atenção das companhias reguladas e seus administradores à necessidade de que, entre outros fatores, avaliem a necessidade de divulgação de fatos relevantes como consequência dos impactos sofridos, bem como à necessidade de que os resultados financeiros sejam corretamente divulgados.6

Para além das grandes companhias abertas, observa-se com preocupação o cenário enfrentado por pequenos e médios empresários que, com menos fluxo de caixa, menor estofo para suportar a crise, serão chamados a responder, ainda que subsidiariamente, pelas dívidas das sociedades que compõem.7

Os tempos são e serão difíceis para toda a população sob as perspectivas econômica e de saúde. Esta realidade, infelizmente, não será diferente para os administradores de sociedades. Que o seguro D&O possa funcionar como resposta adequada às demandas que, fatalmente, surgirão.

(Com a valiosa colaboração do caro amigo, Gustavo Galrão.)

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


1 É obrigatória aqui a referência à obra de Ulrich Beck. Pode-se afirmar que a ‘sociedade de risco’ nunca esteve tão presente. “Essa mudança categorial deve-se simultaneamente ao fato de que, a reboque das forças produtivas exponencialmente crescentes no processo de modernização, são desencadeados riscos e potenciais de autoameaça numa medida até então desconhecida. […] Argumentando sistematicamente, cedo ou tarde na história social começam a convergir na continuidade dos processos de modernização as situações e os conflitos sociais de uma sociedade que ‘distribui riqueza’ com os de uma sociedade que ‘distribui riscos’. […] Quem – como Colombo – saiu em busca de novas terras e continentes por descobrir assumiu riscos. Estes eram, porém, riscos pessoais, e não situações de ameaça global, como as que surgem para toda a humanidade com a fissão nuclear ou com o acúmulo de lixo nuclear. A palavra ‘risco’ tinha, no contexto daquela época, um tom de ousadia e aventura, e não o da possível autodestruição da vida na Terra.” (BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34. 2011. p. 23-25).

2 A petição inicial pode ser encontrada no link a seguir, visitado em 19.3.2020. https://www.dandodiary.com/wp-content/uploads/sites/893/2020/03/norwegian-cruise-lines-complaint.pdf

3 A petição inicial desta demanda por ser encontrada aqui: https://www.dandodiary.com/wp-content/uploads/sites/893/2020/03/inovia-complaint.pdf, visitado em 19.3.2020.

4 A propósito da cobertura securitária em apólices de responsabilidade para demandas fundadas ou, até mesmo, infundadas, remete-se à clássica doutrina de HÉMARD, J. Théorie et pratique des assurances terrestres, 1924. nº. 556. Jean Bigot, ao comentar a percepção de Hémard, o fez ressaltando que a separação da dívida de responsabilidade civil do sinistro em responsabilidade civil ampliaria, formidavelmente, o espectro do segundo. « Il en a été déduit que le sinistre résidait dans la réclamation, ej J. Hémard a pu ainsi, dans une formule célèbre, ‘détacher l’assurance de responsabilité de la dette de responsabilité : « Ainsi peut-il y avoir tant sinistre sans responsabilité, qu’il inversement responsabilité sans sinistre. Le sinistre est réalisé sans qu’il y ait responsabilité quand le demande du tiers a été jugée mal fondée ; alors, l’indemnité d’assurance ne comprend que les frais judiciaires exposés. La responsabilité existe sans sinistre quand l’assurance responsable n’est l’objet d’aucune poursuite, en raison de la négligence ou de l’ignorance de la victime ». […] En effet, cette assurance devait alors couvrir, sauf clause contraire, les dépens auxquels l’assuré pouvait être condamné même en l’absence de responsabilité. » (BIGOT, Jean. Traité de droit des assurances terrestres. v. III. Paris: LGDJ, 2002. p. 651-652).

5 As notícias são mesmo terríveis. E.g. “Bovespa despenca quase 14% após 5º 'circuit breaker' em 6 pregões
Índice fechou a 71.168 pontos. Mercados globais desabaram nesta segunda-feira (16) mesmo com novo corte surpresa da taxa de juros dos EUA.” (Fonte: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/16/bovespa.ghtml, visitado em 19.2.2020).

6 Trechos do Ofício Circular CVM/SNC/SEP/n.º 02/2020: “Em relação às Companhias que encerraram o exercício em 31 de dezembro de 2019, esses impactos devem ser registrados como eventos subsequentes em consonância com o disposto na Deliberação CVM nº 593 de 15 de setembro de 2009, que aprova o CPC 24 – Evento Subsequente. Já em relação àquelas que possuem data de encerramento de exercício posterior a 31 de dezembro de 2019 ou que já estejam em processo de preparação da 1ª ITR de 2020, ressalta-se que os riscos e incertezas aqui referidos podem impactar diretamente a elaboração das demonstrações financeiras do período. Adicionalmente, é importante que as Companhias avaliem, em cada caso, a necessidade de divulgação de fato relevante, nos termos da Instrução nº 358 de 03 de janeiro de 2002, e de projeções e estimativas relacionados aos riscos do COVID-19 na elaboração do formulário de referência, nos termos da Instrução CVM nº 480 de 7 e dezembro de 2009. As Áreas Ténicas da CVM entendem que, apesar da difícil tarefa de quantificação monetária dos impactos futuros, é necessário que as Companhias Abertas e seus Auditores Independentes, cada qual exercendo o seu papel, empenhem os melhores esforços para prover informações que espelhem a realidade econômica da entidade que reporta e que possuam potencial preditivo. Nesse sentido, a CVM ratifica a necessidade de manutenção da qualidade do processo de elaboração e auditoria das demonstrações financeiras, em consonância com os padrões internacionais de contabilidade e de auditoria.”

7 Tratar de responsabilidade subsidiária de empresários no Brasil, hoje, não é mais um exagero, lamentavelmente. Como referência, a obra de Bruno Salama é cirúrgica, a começar pelo seu título: “SALAMA, Bruno Mayerhof. O fim da responsabilidade limitada no Brasil. História, direito e economia. São Paulo: Malheiros, 2014. “Embora não se tenha pura e simplesmente abolido a responsabilidade limitada de sócios no Brasil em todos os casos, na prática caminhou-se para um regime próximo disso. O caso mais emblemático surgiu na esfera trabalhista, em que sócios e administradores foram definitivamente alçados pela jurisprudência à condição de de facto garantidores – logo, responsáveis subsidiários – por dívidas da empresa.”

Autores

  • é advogado e parecerista, doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Regulação e Concorrência pela Universidade Cândido Mendes (UCAM), pós-Graduado em Direito Empresarial LLM pelo IBMEC, professor convidado da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) e da Escola Nacional de Seguros (ENS-Funenseg), membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC), e sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

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