Sentimento de pertencimento

Autodeclaração tem primazia em reserva de vagas por cotas raciais, diz TRF-4

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22 de março de 2020, 9h45

Embora as características físicas aferíveis de um indivíduo se constituam em critério primordial para decidir vaga pelo sistema de cotas nas universidades públicas, a autodeclaração do candidato tem primazia sobre a decisão da comissão de verificação racial. Afinal, a autodeclaração busca o direito de pessoas que, mesmo sem fenótipo marcante, experimentaram os efeitos do preconceito racial na sua trajetória de vida.

Com a prevalência deste entendimento, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) declarou nula a decisão da Comissão Permanente de Verificação da Autodeclaração Étnico-Racial da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que não homologou a autodeclaração de uma candidata. Com o provimento da apelação, por maioria, a autora teve reconhecido o direito à matrícula na condição de cotista étnico.

A relatora da apelação, desembargadora Vânia Hack de Almeida, disse que não é papel do Poder Judiciário fixar critérios para as políticas afirmativas, que devem ficar a cargo do Poder Executivo. Entretanto, a inexistência de regulamentação específica do procedimento de aferição não impede que o Judiciário se manifeste a partir da análise da legalidade e da finalidade desta política pública. Principalmente, levando em conta o princípio da dignidade humana, guindado a critério orientador da fiscalização na Administração Pública, segundo o Supremo Tribunal Federal.

"Com efeito, especialmente em razão das características do preconceito racial na sociedade brasileira e de seus efeitos históricos os quais se encontram, infelizmente, incrustados no íntimo da população objeto do preconceito, a autodeclaração representa não só a confirmação de um fenótipo, mas também a exteriorização do sentimento de pertencimento a um determinado grupo social estigmatizado pelo preconceito", escreveu no acórdão.

Para Vânia, os séculos de miscigenação dificultam o estabelecimento de parâmetros objetivos para que se possa definir com precisão a parcela da sociedade brasileira considerada preta ou parda. Tal dificuldade científica, contudo, não pode ser obstáculo para uma efetiva política de reparação histórica a esta parcela da população estigmatizada.

Matrícula negada
A autora foi aprovada no Vestibular 2018 da UFRGS para o curso de Relações Internacionais, tendo concorrido mediante inscrição na modalidade de quotas raciais L2. A modalidade se destina a candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo, desde que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, nos termos da Lei de Cotas (Lei 12.711/12).

A Comissão Permanente de Verificação da Autodeclaração Étnico-Racial da Universidade, no entanto, não homologou a sua autodeclaração de parda, por não vislumbrar as "caraterísticas fenotípicas exigidas", o que a fez recorrer da decisão em nível administrativo. Como a Comissão não deu provimento ao recurso, a autora ajuizou ação anulatória da decisão perante a 10ª Vara Federal de Porto Alegre.

Na inicial, ela sustentou que a decisão exarada pela Universidade se baseou em critérios subjetivos e de foro íntimo, carecendo de fundamento que justifique a invalidade da autodeclaração. Defendeu a ilegalidade dos critérios de aferição, informando ser parda, descendente de avó e bisavós pretas e mãe mulata. Invocou, ainda, a teoria do fato consumado, alegando que seu irmão bilateral, que possui a mesma carga genética, ingressou na UFRGS pelo sistema de cotas no curso de Engenharia da Computação. Assim, não seria plausível nem legal ser barrada quando tem um irmão aceito pelo sistema de cotas na condição de pardo.

Sentença improcedente
Ao analisar o mérito, a 10ª Vara Federal de Porto Alegre julgou improcedente a ação anulatória. A decisão levou em conta os termos do item 8.2 do edital do concurso vestibular: no caso de candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, a autodeclaração do candidato tem de ser avaliada pela Comissão Permanente de Verificação da Autodeclaração Étnico-Racial. Ou seja, as autodeclarações com base em fenótipo (aparência física) têm de ser validadas pelos membros desta Comissão.

A juíza federal Ana Maria Wickert Theisen disse que o edital adotou o critério de fenótipo, e não de genótipo, para a análise do grupo racial. Assim, mesmo que a autora tenha ancestrais negros, isso não basta para garantir-lhe a disputa pelas vagas na condição de cotista. Para a julgadora, o critério se justifica, porque, normalmente, é a aparência do indivíduo que atrai para si atitudes sociais discriminatórias.

‘‘Não se pode negar que a sociedade analisa e discrimina a partir da aparência dessa ou aquela etnia, e isso é refletido na política de quotas. Trata-se de estabelecer, a partir do exame das características étnicas mais evidentes (fenotipia), se o candidato se inclui como beneficiário da política de quotas raciais’’, justificou na sentença.

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Processo 5022677-97.2018.4.04.7100/RS

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