Opinião

Sobre os cuidados post mortem das vítimas da Covid-19: uma análise jurídica

Autor

  • David Pimentel Barbosa de Siena

    é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

22 de março de 2020, 6h31

A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou, em 11 de março de 2020, a pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). No estudo preliminar Demographic science aids in understanding the spread and fatality rates of COVID-19, pesquisadores da Universidade de Oxford estimaram que poderão ocorrer até 478 mil mortes pelo novo coronavírus somente no Brasil (DOWD 2020). Muito se tem falado sobre medidas de enfrentamento da emergência, porém, por mais eficaz que seja a prevenção do contágio e tratamento da doença, ocorrerão muitos óbitos durante o período calamitoso.

O governo chinês interditou os funerais de vítimas do coronavírus, impondo a imediata cremação dos corpos em equipamentos instalados nas cercanias dos nosocômios onde os pacientes estavam internados. Até mesmo no Irã, país duramente atingido pela pandemia, os rituais fúnebres, como a tradição islâmica de lavar os corpos antes do sepultamento, foram suspensos, devido os riscos de contaminação. Já a Itália, também vigorosamente atingida pelo coronavírus, em especial na Lombardia, interditou toda sorte de cerimônias, inclusive os ritos fúnebres durante a quarentena. Em Portugal, a Direção-Geral de Saúde editou uma norma sobre cuidados post-mortem com cadáveres de pessoas infectadas pelo coronavírus, recomendando a cremação dos corpos e determinando, em caso de sepultamento, que a urna fúnebre não seja aberta.

No Brasil, quais são os cuidados que estão sendo adotados no post mortem com os corpos infectados? Tratando-se o Direito Funerário de matéria reservada à competência dos municípios, diversas cidades como São Paulo e Rio de Janeiro limitaram o acesso aos velórios (no máximo dez pessoas), além de proibirem a abertura da urna funerária, não sendo exigidas, até o presente momento, as zincadas.

Mas se tais medidas se revelarem insuficientes, do ponto de vista epidemiológico, o artigo 77, da Lei de Registros Públicos, estabelece que a cremação de cadáver poderá ser feita no interesse da saúde pública e se o atestado de óbito houver sido firmado por dois médicos. O termo saúde pública é equívoco, sendo por vezes tratado como um equivalente de saúde coletiva ou comunitária. A saúde pública já foi definida como o“campo de conhecimento e de práticas organizadas institucionalmente e orientadas à promoção da saúde das populações (SABROZA, 1994). Em outros termos, saúde pública diz respeito às formas de agenciamento político/governamental (programas, serviços, instituições) no sentido de dirigir intervenções voltadas às denominadas necessidades sociais de saúde (FIOCRUZ, 2020).

Na hipótese, a necessidade social de saúde, a depender da taxa de mortalidade decorrente da pandemia, poderá exigir a cremação, como forma de medida sanitária. Se houver considerável acúmulo de corpos infectados pelo coronavírus em nosocômios ou em serviços de verificação de óbito, restará agravados os riscos de infecção pela coletividade. Assim, com arrimo no princípio da supremacia do interesse público, a Administração Pública poderá determinar a cremação desses corpos. Isso porque, “a ordem responde à peste; ela tem como função desfazer todas as confusões: a doença que se transmite quando os corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições (FOUCAULT, 2015:163).

Nessa esteira, foi editada a Lei 13.979/2020 para dispor sobre as “medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. Em seu artigo 3º foi prevista a exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver, como uma das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública.

A Portaria Interministerial 5/2020 dispõe sobre a compulsoriedade das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública previstas na Lei 13.979/2020. O seu artigo 2º prevê curiosamente que com relação às medidas emergenciais previstas no artigo 3º da Lei 13.979/2020, entre elas, como dito, a cremação, “as pessoas deverão sujeitar-se ao seu cumprimento voluntário”. Ora, se essa norma verdadeiramente tem força cogente, a voluntariedade do seu cumprimento é de todo irrelevante.

Conforme o caput do artigo 77 da Lei de Registros Públicos, para a realização do sepultamento ou cremação, é indispensável o chamado atestado de óbito, que é exclusivamente ato médico. Assim sendo, qual é o serviço de saúde competente para expedir o atestado de óbito?

Em se verificando morte violenta (v.g., homicídios dolosos ou culposos, latrocínios, suicídios etc.), o que não é o caso das mortes decorrentes de Covid-19, a competência para diagnosticar a causa da morte é do Instituto Médico-Legal, ou seja, do perito oficial (médico-legista), tendo em vista o interesse na produção probatória indispensável para a persecução penal de crimes contra a vida. Existem ainda situações limites, costumeiramente denominadas de morte suspeita[1], em que há dúvida se o óbito se deu por fatores endógenos ou exógenos. Tais hipóteses igualmente são de competência do perito oficial. Nesses casos, o médico-legista poderá se deparar com casos de Covid-19, principalmente quando o óbito se der fora do nosocômio. Se assim for, o perito oficial deverá encaminhar o corpo ao Serviço de Verificação de Óbito, nos termos do artigo 8º da Portaria MS 1.405/2006

Tratando-se de morte natural[2][3], com ou sem assistência médica, sem esclarecimento diagnóstico e, principalmente aqueles por efeito de investigação epidemiológica, como no atual cenário de pandemia, a competência para diagnosticar a causa da morte é do Serviço de Verificação de Óbito. Poderá ainda, no caso em que houver assistência médica, a morte natural ser atestada pelo médico que estava acompanhando o paciente, e na sua falta ou impedimento, por um médico substituto do nosocômio.

Com efeito, as mortes decorrentes das complicações da Covid-19 deverão ser atestadas pelo Serviço de Verificação de Óbito, e nunca pelo Instituto Médico-Legal, sem descartar a hipótese em que havendo acompanhamento médico e, por exemplo, a vítima ser devidamente testada, o óbito ser atestado pelo profissional do nosocômio. Contudo, nem todas localidades contam com um SVO, sendo que nessas hipóteses a competência para atestar esses óbitos será do “médico do serviço público de saúde mais próximo do local onde ocorreu o evento; e na sua ausência, por qualquer médico” (artigo 2º da Resolução 1.779/2005).

Infelizmente, estamos experimentando uma pandemia sem precedentes, na qual falecerão milhares de pessoas em todo território nacional. Esse período de absoluta excepcionalidade exige esforços extraordinários e a sinergia dos serviços de saúde, segurança pública, justiça, registros públicos, assistência social, entre outros. Os cuidados post-mortem são tão indispensáveis quanto as técnicas terapêuticas da Covid-19, pois em um cenário de pandemia, o contágio do coronavírus pode se dar inclusive pelo contato físico com o corpo da vítima. Será necessário o desembolso de investimentos públicos[4] para atender às demandas que surgirão em virtude da necessidade desses cuidados, com a finalidade de que se evite situações como aquelas vivenciadas no Irã ou na Itália, em que centenas de corpos estão se acumulando nos equipamentos públicos, vilipendiando os sentimentos aos mortos e colando em risco à saúde pública.

Inevitável, mesmo nos períodos ordinários, a morte é uma experiência de amplo conhecimento pela sociedade, uma vez que, pelas mais variadas causas, cerca de 60 milhões de pessoas morrem anualmente, pelas número que representa aproximadamente 1% da população mundial. Conforme aponta nossa literatura, “parece mesmo que cada época pode ser definida por uma forma de morrer típica, como, por exemplo, a peste e a cólera na Idade Média, a morte por tuberculose no Período Romântico, o câncer na Sociedade Industrial e a AIDS na Sociedade Pós-industrial” (MATTEDI, 2007:319). Será que a Covid-19 será nossa forma de morrer típica? Se assim for, devemos estar preparados, inclusive com os cuidados post mortem.

Referências:
DOWD, Jennifer Beam et al. Demographic science aids in understanding the spread and fatality rates of COVID-19. Disponível em: <https://osf.io/se6wy/?view_only=c2f00dfe3677493faa421fc2ea38e295>. Acesso em: 20 de março de 2020.

FIOCRUZ. Biblioteca de Saúde Pública. Disponível em: <http://www.fiocruz.br/bibsp/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=145&sid=103>. Acesso em: 20 de março de 2020.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42ª ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

MATTEDI, Marcos Antonio; PEREIRA, Ana Paula. Vivendo com a morte: o processamento do morrer na sociedade moderna. Cad. CRH, Salvador, v. 20, n. 50, p. 319-330, Aug. 2007.

SABROZA, P. C. Saúde pública: procurando os limites da crise. Rio de Janeiro: Ensp/Fiocruz, 1994.

[1] No âmbito do Estado de São Paulo, o artigo 2º, da Portaria DGP 14/2005, estabelece que devem ser consideradas como morte suspeita, a seguintes situações: (i) encontro de cadáver, ou parte relevante deste, em qualquer estágio de decomposição, no qual inexistam lesões aparentes ou quaisquer outras circunstâncias que, mesmo indiciariamente, apontem para a produção violenta da morte; (ii) morte violenta em que subsistam dúvidas razoáveis quanto a tratar-se de suicídio ou morte provocada por outrem; (iii) morte não natural onde existam indícios de causação acidental do evento exclusivamente por ato não intencional da própria vítima; (iv) morte súbita, sem causa determinante aparente, ocorrida de modo imprevisto, com a vítima fora do respectivo domicílio e sem a assistência de médico, familiar ou responsável. O diagnóstico da causa da morte em todas essas hipóteses é de competência do Instituto Médico-Legal.

[2] A Portaria MS 1.405/2006 instituiu a Rede Nacional de Serviços de Verificação de Óbito e Esclarecimento da Causa Mortis (SVO). O artigo 8º dispõe que “os SVO serão implantados, organizados e capacitados para executarem as seguintes funções: I – realizar necropsias de pessoas falecidas de morte natural sem ou com assistência médica (sem elucidação diagnóstica), inclusive os casos encaminhadas pelo Instituto Médico Legal (IML); II – transferir ao IML os casos: a) confirmados ou suspeitos de morte por causas externas, verificados antes ou no decorrer da necropsia; b) em estado avançado de decomposição; e c) de morte natural de identidade desconhecida.

[3] No âmbito do Estado de são Paulo, o artigo 3º, da Portaria DGP 14/2005, dispõe que “será empregado o título 'Morte Natural' para os casos de óbitos verificados no domicílio da vítima, ou com a assistência de familiares ou responsáveis, de causas aparentemente naturais, porém ausente atendimento atual por profissional de saúde ou inexistente médico a atestar a causa da morte, com a decorrente necessidade de encaminhamento ao Serviço de Verificação de Óbito”.

[4] A cremação no Brasil tem custo variável, de R$ 6.000,00 a R$ 10.000,00.

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    é professor de Criminologia, Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol), da Strong Business School (Strong FGV) e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

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