Diário de classe

As diferentes perspectivas teóricas no contexto pós-1945

Autor

  • Matheus Vidal Gomes Monteiro

    é doutor em Direito pela Unesa mestre em Direito pela Unisal e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Grupo de Estudos em Jurisdição Constituição e Processo da UFF membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (IBMEC-RJ) e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos).

21 de março de 2020, 8h00

Na coluna de hoje abordaremos os principais desdobramentos teóricos a partir da II Guerra Mundial no que tange à busca por uma nova relação entre o direito e valores. E diante da pluralidade dogmática existente utilizaremos a perspectiva de António Manuel Hespanha com alguns apontamentos adicionais. Sigamos, então.

O resultado trágico dos totalitarismos contemporâneos impactou sobremaneira a consciência jurídica, obrigando-nos a repensar a função do direito como garantidor de valores civilizacionais, fomentando um novo “vigor antilegalista” nas décadas que se seguiram à II Guerra Mundial.i

Relembremos, também, que a cultura jurídica e a Constituição da República de Weimar podem ser consideradas fruto da ética formalista e axiologicamente neutral do kantismo e da pandectística, e, independentemente da intenção teórica original, a teoria pura do direito ainda reforçou esta proposta de fechamento da dogmática a considerações de ordem política ou ética. Assim, a partir do fortalecimento do nacional-socialismo o que se percebeu foi um afastamento progressivo do direito interno das aquisições tidas como mais fundamentais da cultura jurídico-política europeia, seja no plano internacional, ou no próprio plano interno (especialmente do direito constitucional e direito penal).ii

Gerou-se, portanto, após 1945, certo movimento espontâneo de “refundamentação do direito em valores suprapositivos, indisponíveis para o legislador”iii, diante das imensas violações ocorridas.

Por outro lado, nos EUA, os sentimentos imanentes de justiça, sempre presentes na teoria da interpretação da Constituição, receberam novo fôlego a partir do pensamento dito “comunitarista”, especialmente na obra de Amitai Etzioni.iv Outro autor mais conhecido e inserido nessa perspectiva é Ronald Dworkin, principalmente a partir de Law’s empire. Para Dworkin, “o direito (e, antes de tudo, a Constituição) integra um património ético-jurídico implícito, progressivamente explicitado pelo conjunto da tradição jurídica constitucional, património esse que representa o casco mais autêntico e inamovível da ordem jurídica […], perante o qual existe uma vinculação absoluta do juiz”.v Nesse sentido, os princípios que Dworkin defende não se tratam dos antigos princípios do direito natural (incorporados na própria natureza das coisas), mas antes “valores que uma comunidade aceita de forma sustentada e consistente como norma de vida coletiva, a partir das suas concepções profundas acerca dos valores que tem por supremos e do que eles exigem da prática.”vi Posição esta que lhe conduziu à tese da resposta correta, a partir da integridade do direito e de sua reconstrução interpretativa.vii

No entanto, a dificuldade filosófica quanto à fundamentação (ontológica ou epistemologicamente, pois, “em que se fundava? Como se conhecia?”viii) deste novo direito natural contemporaneamente festejado foi facilmente percebida, pois não se tornava simples proceder à substituição do anterior formalismo jusfilosófico de raiz kantiana, que se esgotava numa exigência de liberdade individual, por uma certa referência axiológica com conteúdo material. A reticência da cultura europeia em reconhecer princípios jurídicos de caráter universal e absoluto era forte, com exceção das correntes ligadas ao cristianismo, nomeadamente ao catolicismo.ix

De outro lado, a aceitação quanto à possibilidade de fundamentação do direito em princípios objetivamente válidos e reconhecíveis não antecipa o conteúdo que venha a preencher tais princípios, ou seja, podem ser tidos como “progressistas” ou “conservadores”.x Contudo, “uma atitude cognitivista implica certas assunções sobre a natureza do mundo humano – ou seja, que é regulado por valores independentes das opiniões e das vontades – e sobre a natureza do conhecimento – ou seja, que este pode atingir esses valores”.xi

Dessa maneira, mediante uma necessária relembrança e confluência de questões históricas, políticas e jurídicas, Hespanhaxii reconhece que esse novo “assertivismo e cognitivismo axiológico” (anteriormente denominado como “novo jusnaturalismo”)xiii tenha trilhado uma das seguintes orientações:

a) Uma, intitulada pelo autor como “jusnaturalismo evolucionista”, reconhecia que existiam “aquisições ético-jurídicas irreversíveis da humanidade, ligadas, nomeadamente, a uma progressiva revelação da dignidade humana”, e que tais aquisições “não poderiam ser postas em causa pela lei positiva, constituindo antes uma medida da legitimidade desta” (na mesma seara aquelas perspectivas que defendiam a impossibilidade de retrocesso em aquisições civilizacionais no âmbito jurídico). xiv Essa orientação, advinda de uma perspectiva evolucionista e progressista da história (inspirada em Hegel), poderia ser visualizada na tendência de criação de um direito supraestatal, em matéria de direitos humanos ou de crimes contra a Humanidade. É possível reconhecermos tal orientação, p. ex., em Ernst Bloch, a partir de seu Naturrecht und menschliche Würde.xv

b) Outra, nomeada como “jusnaturalismo fenomenológico”, possivelmente reconhecida já em Max Scheler (Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik),xvi apelava “para os ditames da consciência jurídica de cada um que, perante situações concretas, não podia deixar de ditar uma solução justa”. Assim,

[…] apelavam para os valores de que as próprias situações da vida eram em si mesmas portadoras. O direito decorreria, assim, da própria ‘natureza das coisas (Natur der Sache)’, que tanto resistiria às intenções normativas ‘artificiais’ (eventualmente, contra naturam) do legislador, como seria capaz de sugerir, positivamente, soluções jurídicas adequadas (‘ajustadas’, gerechtige, ‘justas’, richtige). As ‘coisas’ tornam-se, assim, numa fonte de direito, de onde decorreriam um ‘direito natural concreto’. Em todo o caso, estas coisas a que esta corrente se refere não são as realidades sociais empíricas observáveis nos termos da sociologia descritiva. Compreendem também uma dimensão não empírica, normativa: o apelo para uma certa ordenação, uma ideia condutora, uma ‘lógica’ interna, uma expectativa de desempenho de certos papéis pelos agentes envolvidos.xvii

c) Outras correntes, denominadas como “otimismo axiológico logicista” defendiam que mal-entendidos gerados por “erros de linguagem” provocavam a “pulverização e antinomia dos valores jurídicos” (já denunciadas por J. Bentham como usuais no discurso jurídico). Assim, uma rigorosa análise da linguagem do direito proporcionaria a clareza dos princípios jurídicos. Fomentaram, desta forma, uma aposta num novo positivismo, por influência da filosofia analítica da linguagem e da lógica jurídica, reduzindo questões filosóficas ou metafísicas a questões de “polícia da linguagem”, contudo, não reconstruindo um direito natural, mas sim, instituindo critérios (pelos menos formais) para validação de proposições jurídicas e legislativas.xviii

Outra orientação (d.1), intitulada “axiologia consensual”, defendia a ideia de que, mesmo reconhecendo a impossibilidade de se encontrar valores certos e absolutos que limitassem o arbítrio do legislador, não poderíamos deixá-los totalmente livre para legislar qualquer direito, e que, na falta de valores “naturais” legitimadores e limitadores do direito, deveriam valer como tais os valores “consensuais”.xix Assim, algumas perspectivas consensualistas partiram de uma renovação do contratualismo primo-liberal ao propor que os valores suprapositivo da ordem jurídica seriam “o produto de um contrato estabelecido entre indivíduos racionais e que, pelo facto de o serem, têm que convir num catálogo de princípios racionais de convivência”.xx

Para garantir que este contrato não está viciado, nem enviesado por interesses particulares ou pela desigualdade real dos contratantes, estabelecem uma série de pressupostos processuais que devem presidir ao contrato: (i) ou que cada contraente desconhece a sua situação real em relação aos outros (o que o leva a decidir-se por princípios que não o possam prejudicar seja qual for essa situação – o famoso “véu de ignorância” proposto por John Rawls); (ii) que o diálogo que precede o estabelecimento dos princípios de convivência seja “transparente e igualitário” (J. Habermas); (iii) que a interpretação do sentido verdadeiro de uma norma é uma tarefa interminável, mas para a qual se tem sempre de tender (R. Dworkin); ou (iv) que não há valores “incomensuráveis” (i.e., incomprimíveis, ilimitáveis) e que existe uma fórmula rigorosa para ponderar entre si os valores conflituais [R. Alexy].xxi

Ainda nesse contexto, outros (d.2) defensores da perspectiva consensualistas, duramente criticados por Hespanha como sendo defensores de teorias “teoricamente degradadas, ingénuas ou hipócritas”, simplesmente naturalizavam o senso comum, tornando-o “como algo que está aí e que deve ser aceite”.xxii

Isto é típico de uma época em que a massificação da cultura e da informação – quer extensivamente, ao mundializar a comunicação de massa sobre os indivíduos – reduziu drasticamente os dissensos, criando uma cultura de base, expressa pelo senso comum, suficientemente forte para poder servir de apoio a tecnologias disciplinares duras como o direito. A esta cultura superficial pertencem noções ingénuas de ‘direitos humanos’, ‘democracia’, ‘globalização’, ‘multiculturalismo’, ‘ambientalismo’, ‘terrorismo’, sobre as quais se pretende construir uma ordem indiscutida (e, frequentemente, indiscutível).xxiii

De um modo geral sobre os consensualistas, embora defendam um relativismo de base, não afirmando o caráter absolutamente racional ou natural das suas opções normativas, naturalizam (ou racionalizam), pelo menos, a ideia de que “se deve viver consensualmente”.xxiv Contudo, as necessidades práticas não geram, automaticamente, soluções teóricas corretas, e desse modo, adeptos de tal perspectiva correm o risco de “fabricar formas de legitimar teoricamente consensos espúrios, mal construídos, pouco inclusivos, tingidos de violência, manipuladores”.xxv

Hespanhaxxvi, então relembra Zygmunt Baumanxxvii e o reconhecimento de um “processo continuado de atomização e individualização da sociedade, um enfraquecimento e final aniquilação (chama-lhe ‘liquefação’) dos valores, um indiferentismo moral, que teriam fomentado o estabelecimento de formas despóticas de poder”. E a partir deste diagnóstico voltado à comunicação social, entende sua relação com o “triunfo de um consensualismo sem limites, em que vale tudo aquilo sobre que parece haver acordo, seja ele qual for”.

Um antídoto, nesse contexto, seria o aumento da capacidade de reflexão, vigília e crítica em relação ao senso comum, restaurando-se a complexidade da realidade (dos valores sociais conflituais, vigentes numa sociedade. E, diante desse redescobrimento da complexidade, teríamos a necessária revalorização das capacidades autênticas (menos manipuladas, menos liquefeitas) de julgar numa “situação de diálogo e de abertura e aceitação dos pontos de vista alternativos”.xxviii

E é a partir desta perspectiva que podemos falar de uma revalorização da tópica jurídica (obras clássicas: T. Viehweg, Topik und Jurisprudenz, e J. Esser, Grundsatz und Norm in der richterlichen Fortbildung des Privatrechts) ou de alguma da teoria da argumentação (esta, principalmente desenvolvida a partir de Perelman, Traité de l’argumentation).

Toda essa renovação teórica pós-bélica quanto aos valores, pulverizada em diversas perspectivas, unia-se à já conhecida jurisprudência dos interesses e à função criadora do juiz.xxix E, analisando-se sobre o viés da tensão entre vontade e razãoxxx, inúmeras discussões e posições doutrinárias surgiram a partir da necessidade de racionalização deste novo Direito que sofreu a reaproximação com valores – registradas as inúmeras divergências e alternativas doutrinárias não raro conflitantes entre si –, buscando, de certa forma, algum nível de controle/objetividade/racionalidade às decisões judiciais.xxxi

Nesse contexto, numa análise mais direta acerca da função jurisdicional e seu caráter interpretativo-decisório, na Alemanha pós-1945 pode-se notar um retorno à jurisprudência dos interesses, anteriormente sufocada pelo nazismo em 1933, nesse momento “atualizada”: “interesses agora entendidos em sentido mais amplo, considerando que eles estão baseados em valores não apenas empiricamente constatáveis”.xxxii Assim, as correntes pós-bélicas que renovaram a “jurisprudência dos interesses” foram reunidas sob o título de “jurisprudência dos valores”xxxiii, propondo uma nova perspectiva teórica aberta a todos os valores (incluindo-se espirituais) que pudessem inspirar o juiz/intérprete, porém, com uma grande lição histórica: “os valores precisavam ser compatíveis com os já presentes no ordenamento”.xxxiv

Por hoje, essas foram minhas observações sobre um tema normalmente trabalhado pela dogmática de outras formas. Outras considerações sobre o desenvolvimento da “jurisprudência dos valores” ficam, então, para um próximo momento.


i HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 469.

ii HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. Coimbra: Almedina, 2012, p. 536.

iii Idem.

iv Ibidem, p. 537. Em referência à obra do autor The Spirit of Community: Rights, Responsibilities and the Communitarian Agenda.

v Ibidem, p. 538.

vi Idem.

vii STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Saraiva, 2014, passim.

viii HESPANHA, 2012, p. 538.

ix Ibidem, p. 538-539.

x Ibidem, p. 539.

xi Idem.

xii Ibidem, p. 539 e ss.

xiii HESPANHA, 2005, p. 473.

xiv HESPANHA, 2012, p. 539.

xv Idem.

xvi Idem. Hespanha também vê textos significativos dos defensores de tal perspectiva em Kaufmann e Maihoffer, Die ontologische Begründung des Rechts.

xvii Ibidem, p. 539-540.

xviii Idem.

xix Ibidem, p. 541.

xx Idem.

xxi HESPANHA, 2012, p. 541. Obras referenciadas: John Rawls, A Theory of Justice; Jürgen Habermas, Vorstudien und Ergänzungen zur einer Theorie des kommunikativen Handelns, e Robert Alexy, Theorie der juristischen Argumentation: Die Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der juristischen Begründung.

xxii Ibidem, p. 542.

xxiii Idem.

xxiv Idem. Hespanha registra as posições de Etzioni a esse respeito. Para o autor, existem também aqueles que duvidam dos consensos e prefiram defender a existência de valores plurais irredutíveis na sociedade (HESPANHA, 2012, p. 550 e ss).

xxv Idem.

xxvi HESPANHA, 2012, p. 542-543.

xxvii Obras referenciadas de Bauman: Liquid Modernity, Cambridge, Polity Press, 2000; Community. Seeking safety in an Insecure World, Cambridge, Polity Press, 2001, The Individualized Society, London, Polity Press, 2002.

xxviii HESPANHA, 2012, p. 543

xxix LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no direito: o Século XX. Vol. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 245.

xxx Sobre tal ponto, v. LOSANO, op. cit., p. 142 e ss.

xxxiCAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. Renovar, 2003, p. 135.

xxxii LOSANO, op. cit., p. 243.

xxxiii Ibidem. p. 249.

xxxiv Ibidem, p. 243.

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    é doutor em Direito (Unesa), mestre em Direito (Unisal) e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Grupo de Estudos em Jurisdição, Constituição e Processo da UFF, membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (IBMEC-RJ) e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos).

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