Reflexões trabalhistas

A Justiça do Trabalho em tempos de crise decidindo para salvar vidas

Autor

  • Raimundo Simão de Melo

    é consultor Jurídico advogado procurador regional do Trabalho aposentado doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP professor titular do Centro Universitário do Distrito Federal-UDF/mestrado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e autor de livros jurídicos.

20 de março de 2020, 9h30

Spacca
De uma semana para cá parece que o Brasil virou de ponta cabeça, sem poder escapar da grave situação que vem atingindo o mundo inteiro pela contaminação do coronavírus (Covid-19).

A situação não escolhe e não separa ricos e pobres. Todos estão expostos aos perigos dessa contaminação infernal, que, certamente, quando passar, vai deixar lições para todas as pessoas, em todos os cantos do planeta.

Por conta da grave ameaça do coronavírus as notícias são tantas que não conseguimos acompanhá-las, tendo que escolher as que mais nos interessam e, no nosso caso, estamos atentos ao que vem ocorrendo no âmbito trabalhista, diante dos impactos que já estão atingindo empregados e empregadores nas relações de trabalho e, claro, sobre o papel da Justiça do Trabalho para resolver os conflitos inerentes.

Na Justiça do Trabalho, como nos outros ramos do Judiciário brasileiro, as audiências, sessões e prazos processuais foram suspensos provisoriamente, estando seus membros e servidores trabalhando online e, aí, tem-se ouvido que haverá, por conta disso, uma paralisação total dos seus serviços. Todavia, não é isso que está acorrendo, porque a paralisação atinge a presença física de juízes e servidores nos locais de trabalho, como forma de prevenção da doença, pois pelo processo eletrônico (PJe), providências estão sendo tomadas e algumas da maior importância para salvar vidas.

Foi o que ocorreu ontem, 19 de março, às 22h23m25s no Processo ATOrd – 0000556-18.2016.5.21.0006, com decisão proferida pelo juiz do Trabalho Cacio Oliveira Manoel (ID 3d43f3a).

Esse juiz recebeu o Ofício 118/2020-GP do prefeito de Natal (RN), o qual requereu, na condição de integrante do Sistema Único de Saúde (SUS), a cessão de uso do espaço físico do imóvel em que funcionava o Hotel Parque da Costeira, para utilização como Hospital de Campanha para o tratamento dos pacientes em condições intermediárias para o COVID-19 e decidiu rapidamente.

Então, constou da decisão: … "Como é de conhecimento público, o coronavírus (Covid-19) é uma doença infecciosa causada por um novo vírus que nunca havia sido identificado em humanos. De acordo com informações divulgadas na mídia, há o registro de mais de 9 mil mortes por Covid19 no mundo, sendo reconhecida como pandemia a patologia pela Organização Mundial de Saúde – OMS, desde o último dia 11 de março, dada a contaminação de mais de 230 mil pessoas. No Brasil, as notícias recentes apontam para 621 casos confirmados e 7 mortes, com indicação de um crescimento exponencial da doença, sendo motivo inclusive de Decretação de Estado de Calamidade Pública já reconhecida pela Câmara dos Deputados, a pedido da Presidência da República. Nesse contexto, todas as medidas preventivas e prévias a difusão da contaminação são as melhores alternativas possíveis para o combate a essa pandemia, sendo o requerimento formulado pelo Município extremamente viável nessa linha de enfrentamento".

O imóvel acima referido, antigo Hotel Parque da Costeira, aguarda leilão judicial para a quitação do passivo trabalhista e dos débitos federais, além de outros débitos. O seu fechamento definitivo se deu em setembro de 2019 e o imóvel se encontra em estado de deterioração, tendo sido designado o leiloeiro oficial como seu depositário fiel. O primeiro leilão foi frustrado e novo leilão ocorrerá não se sabe quando e qual será o seu resultado, pois a venda é difícil.

Trata-se de uma propriedade privada parada, sem nenhuma utilização iminente, com riscos para segurança e saúde públicas, sem perspectivas concretas de venda judicial em curto prazo, pelo que nada melhor do que se permitir sua utilização social neste momento grave, em favor da sociedade, para garantia da saúde coletiva, diante do surto mundial do Covid-19, como afirmou o juiz em sua decisão, exigindo do Judiciário decisão diferente e corajosa, mas necessária.

A iniciativa do Poder Público Municipal de utilizar esse imóvel privado é mais do que justificável, porque vai ao encontro das políticas internacionais de saúde coletiva e, dentro da lógica de funcionamento do Sistema Único de Saúde para permitir a atuação de todos os atores necessários para o enfrentamento da pandemia do coronavírus.

Ademais, a utilização desse imóvel privado guarda perfeita sintonia com a eficácia da função social da propriedade privada, princípio constitucional de eficácia plena e que, no presente caso assumirá um papel de vanguarda no combate ao Covid-19.

Por esses e outros fundamentos o juiz do Trabalho Cacio Oliveira Manoel deferiu o pedido do prefeito local para autorizar o município de Natal, na condição de membro do SUS, a utilizar o antigo hotel, por meio de Termo de Cessão de Uso Temporário para atender exclusivamente pacientes com indicação clínica do COVID-19. A Cessão de Uso será não onerosa para o município de Natal, o qual arcará com as despesas necessárias para limpeza e desinfecção do imóvel, tanto no seu ingresso, quanto no momento da sua devolução, cabendo ainda ao município a realização de toda e qualquer manutenção que seja necessária para o exercício da atividade, bem como pela compra dos mobiliários para a atividade autorizada.

Noutra importante decisão de Tutela Antecipada Antecedente (Proc. 0000203-98.2020.5.12.0034) a Justiça do Trabalho deferiu em favor dos trabalhadores: a) o fornecimento, antes do início da jornada, para cada um dos empregados arrolados nas condições referidas na exordial, com respectivo recibo de entrega, máscaras eficazes a proteger do contágio pelo coronavírus, álcool gel antisséptico 70% para higienização, e luvas para proteção; b) a orientar os empregados, por meios em que seja possível a comprovação documental, sobre a utilização dos equipamentos de proteção referidos, a correta forma de lavar as mãos e a importância de não compartilhar os itens de uso pessoal; c) a manter o ambiente de trabalho limpo e arejado; d) a não enviar os empregados para locais com alto risco de contágio, exceto em situação de excepcional interesse público.

Eis a Justiça do Trabalho, tão criticada por muitos, especialmente pelos setores que querem acabar com as garantias mínimas dos trabalhadores e da sociedade, cumprindo seu papel social na dianteira dos graves temas de interessa geral da sociedade.

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    é consultor jurídico, advogado, procurador regional do Trabalho aposentado, doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e professor titular do Centro Universitário UDF e da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (SP), além de membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Autor de livros jurídicos, entre outros, Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador e Ações acidentárias na Justiça do Trabalho.

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