Limite penal

Para entender standards probatórios a partir do salto com vara

Autores

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

20 de março de 2020, 8h00

Spacca
A despeito de sua crescente circulação na comunidade jurídica brasileira, a expressão “standards probatórios” ainda produz questionamentos. Com origem conceitual no common law e considerável difusão entre espanhóis e italianos, já é possível dizer que, entre nós, as terminologias relativas aos standards de prova passaram a integrar um caminho argumentativo quase obrigatório da motivação das decisões judiciais.

Uma ida às sentenças e acórdãos dá-nos conta da franca adoção do “além de toda dúvida razoável”, sem que, entretanto, isso represente clareza quanto ao que de fato a exigência representa. Em outro texto, aliás, um dos autores deste artigo já trabalhou sobre o uso retórico-argumentativo do além de toda dúvida razoável, o qual, contudo, não reflete um conteúdo que vá além do mero convencimento íntimo e subjetivo do julgador1. É do entender dos autores deste artigo que a falta de controle quanto à racionalidade do julgador, tão necessário em democracias, serve-se justamente da pouca compreensão geral do que seja um standard probatório.

Como as metáforas servem de pontes que ligam situações já conhecidas àquelas que precisamente queremos compreender melhor, sugerimos ao leitor que recupere o que já sabe da modalidade esportiva do salto com vara. Com auxílio de uma vara, o atleta deve saltar por cima de um sarrafo. O sarrafo, por sua vez, é posicionado em alturas cada vez mais elevadas conforme a competição se desenvolve, de modo que, o que era necessário para ingressar na prova não será suficiente para finalizá-la. Invariavelmente, o atleta não consegue realizar seu salto sem provocar a queda do sarrafo (“Um atleta falha se: após o salto, a barra não permanece nos suportes devido à ação do atleta durante o salto”2). Nessas condições, o salto não conta para a competição.

Pois bem, é exatamente neste ponto que gostaríamos de propor a conexão entre os conhecimentos já acumulados sobre salto com vara e a melhor compreensão que se quer alcançar sobre os standards probatórios3: um standard probatório funciona como o sarrafo no salto com vara, podendo ser posicionado mais baixo ou mais alto. A maior ou menor altura imporá, tal como no salto com vara, graus distintos de dificuldade ao jogador. No contexto do processo penal – que, ao menos supostamente, parte do pressuposto de que a condenação de inocentes é erro que deve ser mais evitado do que o erro da absolvição de culpados – a estratégia consiste em posicionar o sarrafo alto para a hipótese acusatória, dificultando que hipóteses acusatórias de menor qualidade cheguem a produzir resultados. Isso mesmo, a hipótese acusatória é o saltador; é ela quem deve superar o standard, saltar mais alto do que o sarrafo está posicionado.

Para explorar com mais detalhe o potencial explicativo da metáfora: se no salto com vara os limites demarcados à área de corrida e à área de queda devem ser respeitados pelo saltador, o mesmo se diz sobre a hipótese fática acusatória: a corrida que precede o salto não é indefinida; a queda que se segue a ele tampouco. Não pode o saltador correr o quanto queira para então dar seu salto; nem buscar saltar tão alto sem a preocupação de respeitar os limites da área de queda. Ou seja, a hipótese fática acusatória (saltador) precisa superar o standard (saltar mais alto que o sarrafo) com a observância de limites predeterminados (não há vale-tudo probatório). O standard probatório precisa ser alcançado para que dada hipótese acusatória seja tomada como suficientemente provada (considerada juridicamente verdadeira). Não vale recorrer a certezas íntimas que não podem ser racionalmente explicadas. Portanto, está fora do poder do julgador (árbitro), afirmar que o salto é válido “porque sim”; antes, terá de recorrer à satisfação das condições previamente impostas de modo a atestar o resultado do julgamento (competição). Assim sendo, a adoção de um standard probatório corresponde ao objetivo institucional de se promover uma determinação dos fatos mais rigorosa e racional, cuja regularidade dos passos constitutivos do resultado final possa ser verificada por outros sujeitos interessados.

A partir dessas reflexões, queremos colocar em evidência a incorreção do atual estado de coisas do jogo processual brasileiro. O mundo cada vez mais acelerado (Paul Virilio) valoriza a lógica da eficiência que, por sua vez, dá prioridade a uma atitude decisória de superfície4. A intenção aqui não é de condenar os magistrados, mas, de mostrar que, diante da aceleração do mundo da vida, da pressão por resultados (números), a atividade decisória acaba recorrendo mais a algo que se denomina heurística da satisfatoriedade. Trata-se de um atalho mental tomado por aquele que decide antes do momento adequado. Diz-se que emprega a satisfatoriedade exatamente aquele que decide mesmo sem ter examinado toda a informação relevante para que pudesse tomar a melhor decisão. O sujeito se contenta com menos do que poderia ter, não apura todas as opções e, com isso, antecipa a decisão. Sobre a satisfatoriedade, Sternberg5 esclarece:

Consideramos as opções individualmente e, então, selecionamos uma opção logo que encontramos aquela que é satisfatória ou suficientemente boa para atender ao nosso nível mínimo de aceitabilidade. (…) Desse modo, examinaremos o menor número possível de opções necessário para chegar a uma decisão que, acreditamos, satisfará nossas exigências mínimas. Algumas provas indicam que, quando existem disponíveis recursos limitados de memória de trabalho, pode haver aumento do uso da satisfatoriedade para tomar decisões. Evidentemente, a satisfatoriedade é apenas uma entre diversas estratégias não tão boas que as pessoas podem usar.

É o que ocorre quando vamos ao cinema e, já nos primeiros minutos gostamos ou não do filme, mesmo não tendo assistido até o final. O julgamento antecipado do filme logo nas primeiras cenas contamina a nossa capacidade cognitiva e faz com que, inclusive, deixemos de prestar a devida atenção a todo o seu desenrolar. Esse mesmo atalho explica também a tranquilidade que experimentamos quando abandonamos a sessão antes de que o filme acabe. Nessas situações, decidimos “gastar melhor” o nosso tempo. Mas decidir com base em dados e informações reduzidos pode ser uma estratégia útil a várias situações da vida cotidiana, mas é extremamente perigoso no processo penal. No âmbito processual penal, a adesão antecipada à tese de um dos lados bloqueia o que virá adiante. A recompensa pela tomada de decisão a partir do menor esforço cognitivo contamina o desenrolar probatório.

Ao menos na realidade do sistema penal brasileiro, essa adesão antecipada é dirigida à hipótese fática acusatória. Sem a divisão de tarefas entre acompanhar a investigação e cuidar da gestão da prova no curso do processo, o juiz brasileiro acaba por aproximar-se mais da hipótese inculpatória. O deferimento das cautelares – interceptações, devassas fiscais e bancárias, infiltrações e prisões preventivas – representa, sem qualquer dúvida, uma aproximação mental do julgador à explicação fática edificada pela acusação.

Pesquisas como a realizada pelo IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa nos oferecem dados alarmantes. Dispostos a investigar o funcionamento das audiências de custódia6, seus pesquisadores examinaram um total de 2774 casos, distribuídos entre 13 cidades, 9 estados, durante o ano de 2018. Para o que aqui interessa, foi constatado que em 85,5% dos casos houve convergência entre o pedido do órgão acusador e a decisão do julgador, em face de apenas 6,96% dos casos em que o juiz deu ouvidos à defesa. O que o Ministério Público pede, o juiz dá.

Não menos inquietantes são os resultados trazidos por Ricardo Gloeckner7. No âmbito das cautelares, Gloeckner pôs-se a investigar os reflexos que a decretação de prisão preventiva pode acarretar à decisão de mérito. Entre 03/10/2012 e 31/12/2013, foram examinados os desfechos de todos os processos que contaram, em seu decorrer, com a decretação de prisão preventiva. No universo de 90 processos com decretação de cautelar, constatou-se 90 acórdãos condenatórios. Ou seja, em 100% dos casos a existência de uma prisão cautelar foi critério definitivo para a condenação penal. A circularidade do raciocínio dos magistrados é evidente: a prisão preventiva das etapas iniciais pressupõe que o julgamento de mérito será ao fim do processo; o julgamento de mérito ao fim do processo justifica-se na prisão preventiva decretada nas etapas iniciais do processo.

A pesquisa de Marcelo Semer8 também serve a denunciar o caminho aberto que a heurística da satisfatoriedade encontra entre nossos julgadores. A palavra do policial eleva-se ao máximo objeto de satisfatoriedade nos processos de tráfico de drogas. Em 800 sentenças, colhidas em 8 estados diferentes, 315 municípios, proferidas por 665 juízes ao longo do período compreendido entre 2013 e 2015, é impossível fechar os olhos para o valor conferido à palavra do policial. O juiz brasileiro entende que a palavra do policial deve prevalecer “à luz da dignidade e da importância da função que exercem”, por serem “possuidores de boa-fé”, porque são “pessoas sérias e idôneas”, porque têm “especial credibilidade”. O policial sempre fala a verdade, enquanto o réu sempre mente. Incoerências no relato do policial são tidas como “pequenas discrepâncias”; presentes nos depoimentos do acusado são sinais indubitáveis de “notáveis divergências”9. A presunção de veracidade de tudo o quanto é afirmado pelo policial destoa, de modo manifesto, a mínimas exigências de racionalidade na valoração das provas. Com isso, não estamos aqui afirmando que o policial sempre mente (o que seria equivalente a tentar justificar uma presunção de mentira), mas estamos sim, colocando em destaque a distinção que nunca deve se perder de vista entre a alegação de um fato e o fato mesmo. O que é afirmado por alguém deve ser corroborado por elementos probatórios diversos e independentes. Ainda mais em tempos de tantos avanços tecnológicos capazes de determinar com mais acurácia os fatos que ao direito parecem relevantes.

Neste cenário, a aplicação séria de standards probatórios representa um considerável desafio. Para recuperar o início de nossas reflexões sobre standards a partir do salto com vara, fica evidente que o sarrafo não está posicionado em altura condizente à fase final do processo; não se se quer garantir uma distribuição que dificulta a condenação de inocentes. A genuína adoção de um standard probatório exigente em matéria penal faz necessário alguns ajustes. Sem pretensão de esgotar todas as modificações necessárias, aqui vão algumas:

a) em primeiro lugar, que exijamos mais de nossos saltadores. Uma hipótese fática acusatória fundada em conjunto probatório capaz de excluir as explicações alternativas trazidas pela defesa;

b) em segundo lugar, que estejam mais bem demarcados os limites da área da corrida e queda pós salto do atleta. Não há espaço para vale-tudo probatório, Isso significa: proibição da prova ilícita e juízo de admissibilidade cuidadoso para as provas irrepetíveis e elementos informativos colhidos no decorrer do inquérito. Assim:

b.1) a forma como as provas são produzidas (e também os elementos informativos na fase pré-processual) importa ao resultado do processo;

b.2) a preservação da cadeia de custódia é elementar à confiabilidade do desfecho do processo judicial. As competições olímpicas são gravadas e a produção das provas também devem receber registro adequado.

Em tempos de pandemia, nos quais temos boas razões para esperar o cancelamento dos Jogos Olímpicos, fica aqui o incentivo para que o salto com vara – com sarrafo elevado – seja realidade ao menos em nossos tribunais.


1. Matida, J.; Vieira, Antonio. “Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção do standard de prova ‘para além de toda a dúvida razoável’ no processo penal. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, Dossiê Provas no Processo Penal (coord: Aury Lopes Jr. e Yuri Felix), 2019, pp. 221-248.

2. http://www.cbat.org.br/repositorio/cbat/documentos_oficiais/regras/regras_oficiais_2018_2019.pdf

3. A aproximação do standard probatório com o salto com vara foi tema do episódio de estréia do podcast Improvável, que traz uma conversa dos dois autores deste artigo. Acesso por: https://podcasts.apple.com/us/podcast/id1497556068 ou outro agregador favorito.

4. MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforma a Teoria dos Jogos. Florianópolis: EMais, 2020.

5 STERNBERG, Robert J. Psicologia Cognitiva. Trad. Anna Maria Luche. São Paulo: Cengage Learning, 2012, p. 432.

6. IDDD, Relatorio Nacional “O fim da liberdade”, 2019.

7. Gloeckner, Ricardo Jacobsen. Prisões cautelares, confirmation bias e o direito fundamental à devida cognição no processo penal. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 117, pp. 263-286, São Paulo: RT. 2015.

8. Semer, Marcelo. Sentenciando tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.

9. Semer, Marcelo. op cit, 206.

Autores

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    é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

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