Direito em Transe

Prisão em tempos de Covid-19: Sobre a liminar na ADPF 347

Autor

  • Davi Tangerino

    é sócio do Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da FGV-SP.

19 de março de 2020, 8h00

Em decisão liminar na ADPF 347 desta terça-feira (17/3), que acabou não referendada pelo Plenário do STF na quarta (18), o ministro Marco Aurélio, atendendo a pedido do amicus curiae Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), determinou providências para evitar efeitos particularmente danosos do Covid-19 no sistema penitenciário.

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O racional é bem simples: o sistema de atendimento à saúde para encarcerados é pra lá de precária.

Tuberculose, por exemplo, é endêmica nas prisões brasileiras; apenas pouco mais de um terço das unidades prisionais têm unidade de saúde apta a fornecer atendimento básico.

A superpopulação carcerária, mantida nessas condições, faz com que a propagação do Covid-19 se dê com escala sem comparação a outros meios ou grupos sociais. E não "só" junto aos presos, mas junto a todos os servidores, públicos e terceirizados, que trabalham no cárcere.

Marco Aurélio determinou a abertura de todos os portões?

Evidente que não. Aliás, a decisão sequer coloca presos em liberdade diretamente; o relator conclama os juízes a apreciarem, com urgência e maior atenção, as seguintes situações:

a. Liberdade condicional para presos com 70 anos ou mais — não se está a falar de deferir o pedido de liberdade de modo automático, mas apenas priorizar o julgamento desse grupo;

b. Regime domiciliar para portadores de HIV e outras doenças graves "suscetíveis de agravamento a partir do contágio pelo Covid-19" — a Lei de Execução Penal dispõe expressamente que o juiz poderá deferir o recolhimento em residência particular quando o condenador tiver mais de 70 anos, ou acometido de doença grave. Bem verdade que a LEP o prevê para o regime aberto apenas, mas a jurisprudência tem estendido tanto para o regime semiaberto como para o fechado (cf. STJ, HC 521663/RO, DJe 16.9.2019, Néfi Cordeiro);

c. Regime domiciliar às gestantes e lactantes, atendendo a determinação legal expressa;

Até aqui, cuida-se de hipóteses com previsão legal clara.

Conclama, também, S. Exa. os magistrados a ponderarem as seguintes circunstâncias:

d. Regime domiciliar a presos por crime cometidos sem violência ou grave ameaça. As penas por crimes dessa natureza, em regra, são cumpridas em regime aberto, ou semiaberto, sobretudo em decorrência da reincidência;

e. Substituição da prisão provisória por medidas alternativas em razão de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça;

f. Medidas alternativas a presos em flagrante ante o cometido de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça;

Essas três hipóteses podem ser entendidas sob a seguinte formulação: quando da fixação do regime (“d”), ou da análise das hipóteses autorizadoras da prisão provisória (“e” e “f”), os magistrados não tinham como variável a ser ponderada a letalidade do Covid-19, não apenas aos presos, mas aos que com ele mantiverem contato. Cuida-se de convidar o Judiciário a calibrar novamente os elementos fáticos que levaram à fixação de regime mais gravoso, ou à prisão cautelar. Insista-se: apenas para crimes não violentos.

Curiosamente, mas sem nenhum arrepio à lei, além dos componentes “necessidade e suficiência” para “repressão e prevenção” dos crimes (art. 59 do CP), e dos previstos nos artigos 312 e ss. do CPP, urge-se que um vetor fundamental de saúde pública também seja ponderado na reanálise dessas decisões. As cautelares, aliás, podem e devem ser revisitadas quando as condições fáticas se alterarem.

Em português mais claro e direto: um furtador, ainda que reincidente, não deve ser exposto a perigo direto à vida – sua e de terceiros – pois isso inverte, de maneira visível, a relação entre o bem jurídico por ele afetado (em regra, patrimônio), e aquele afetado pela pena (não mais apenas a liberdade, porém, a vida).

g. Progressão de pena a quem, atendido o lapso temporal, aguarda exame criminológico;

A jurisprudência é bem consistente no sentido de que o exame criminológico só pode ser determinado em casos particularmente graves, em que a natureza do delito recomenda um estudo psicossocial mais aprofundado. São, em sua absoluta maioria, crimes hediondos, de onde se conclui que a efetiva progressão para regime aberto só será possível àqueles que já cumpriram 3/5 da pena para o semiaberto; e outros 3/5, para o aberto (aumente para 4/5, em caso de reincidência). A essa altura, inclusive, já seriam elegíveis a livramento condicional (salvo reincidência específica em crime hediondo). Em outras palavras: cerca de 75% a pena já teria sido cumprida. O risco de decidir (não necessariamente de deferir) sem o exame criminológico cede ao risco sistêmico causado por infecção de COVID-19.

h. Progressão de pena antecipada a submetidos ao regime semiaberto;

Esse item, de fato, não encontra respaldo legal direto, mas dialoga com o bloco analisado acima, sobretudo o item “d”. A fixação do regime, como consolidada jurisprudência, conta com discricionariedade do magistrado, que deve fundamentar regimes discrepantes dos parâmetros indicados no artigo 33 do CP. O que S. Exa. parece querer lograr, via indireta, é uma reanálise se, diante do COVID-19, o regime inicial mais indicado não seria o aberto; porém, estando o preso cumprindo a pena em semiaberto, não haveria via legal direta para a readequação do regime. A decisão criaria norma individual e concreta autorizando essa readequação.

A decisão, portanto:

Não coloca ninguém em liberdade;

Conclama os magistrados a reverem suas decisões, quando cautelares;

Conclama os magistrados a considerarem o Covid-19 quando da determinação de novas prisões processuais;

Conclama os magistrados a priorizarem regimes menos gravosos a idosos, portadores de doenças graves, gestantes e lactantes;

Cria espaço para readequação de regimes, seja por crimes sem emprego de violência ou grave ameaça, seja para presos que cumpriram grande parte de suas penas, nos demais casos, e cuja progressão depende apenas de exame criminológico.

A decisão está acertada; não se admite pena de morte no Brasil, e é o que acontecerá quando o Covid-19 chegar ao sistema penitenciário, atingindo, inclusive, os carcereiros e terceirizados.

A vida do preso não é — nem poderia — ser um dos bens afetados pela pena, que restringe apenas, pela lei, a liberdade e, em alguns casos, o patrimônio.

A retirada desse grupo de presos do sistema também impactará de maneira positiva a saúde daqueles que permanecerão presos, pela gravidade de seus crimes. Faço votos que o Colegiado a referende, com urgência, e que os magistrados sejam sensíveis ao vetor saúde pública que se coloca.

E não custa lembrar: praticada infração grave, nos casos de progressão de regime, a regressão de regime não só é possível, como o é "direto para o regime fechado".

No caso do livramento condicional, o Código Penal prevê hipóteses que levam à sua revogação obrigatória, que podem, inclusive, ser complementadas por outras condições estabelecidas pelo juízo das execuções.

Não é "liberou geral", nem de perto. É ponderação racional de funções estatais idênticas em importância: promoção da segurança, de um lado, e garantia da saúde pública, de outro.

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