Opinião

Direitos sociais em tempos de crise do coronavírus

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18 de março de 2020, 6h31

Estamos presenciando nestes últimos dias uma crise de proporções inimagináveis, sem prazo para acabar e que certamente entrará para a história como um grande marco.

Despiciendo tratar aqui, nesta breve reflexão, sobre todos os impactos que o novel vírus têm causado. As mazelas na saúde e economia estão aos montes pelos jornais e redes sociais mundo afora. Tempos difíceis como estes, onde os efeitos colaterais de uma gripe atingem as mais diversas áreas da vida em comunidade, incitam grandes reflexões.

Coube, neste cenário então, uma reflexão sobre o ramo da ciência que existe justamente como substrato, com a finalidade de estruturação e balizamento do nosso convívio como sociedade: o Direito.

E ao falar em Direito como substrato, o que logo vêm à mente do operador da ciência jurídica (ou deveria vir) são os direitos sociais. Mas o que são estes direitos sociais?

Muitos se perdem pela simplicidade da denominação, ou relegam a sua importância, mas os direitos sociais são aqueles que justamente mais necessitamos para a vida em sociedade, em um ambiente de fraternidade.

Os direitos sociais são produto de algo bem maior, algo que esteve fora de moda há algum tempo, mas que aparece justamente em tempos de crise. É a justiça social que serve de fundamento para a existência dos direitos sociais.

E vejamos.

Dentro do catalogo de direitos que um sistema jurídico oferece, existem aqueles que pela sua importância são erigidos à condição de direitos fundamentais. A fundamentalidade não é meramente semântica, é existencial, é material.

Os direitos fundamentais, assim, são aqueles elencados mediante uma convenção dentro de um sistema jurídico como essenciais para aquela comunidade de pessoas, dentro de seu território. Esta é uma definição simples e prática para entender a diferença entre o elenco de direitos fundamentais mundo a fora. Cada comunidade constrói sua história e elenca seus próprios direitos fundamentais.

No caso do Brasil, temos de maneira expressa, no bojo de nossa Constituição Federal, os direitos sociais elencados como direitos fundamentais. O artigo 6º, portanto, deixa certo que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desemparados.

São estes direitos que foram elencados pelo constituinte como direitos fundamentais sociais para a instituição de nosso Estado Democrático de Direito, nossa comunidade no Brasil.

Mais do que isso, temos também no artigo 1º da nossa Constituição, como fundamento da República, a dignidade da pessoa humana.

Não é difícil entender que os direitos sociais existem na exata medida da dignidade da pessoa humana. O aspecto do direito muda. O direito social garante a dignidade da pessoa humana dentro de um ambiente coletivo.

No artigo 3º, ainda, temos não à toa como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Por fim, no que tange à justiça social, podemos extrair de nosso próprio texto constitucional, na leitura do artigo 170, que a justiça social é aquela que visa assegurar a todos uma existência digna. E como isso é feito? Por meio daqueles direitos sociais elencados acima.

E o que tudo isso tem a ver com o presente momento de crise econômica?

Nos dias de hoje, mais do que que qualquer momento histórico antecedente (talvez pela força e alcance dos meios de comunicação e fácil formação de massas), vivemos uma luta de “lados”. A todo tempo nos deparamos com manchetes, posts, vídeos e as mais diversas formas de oposição de modos de ver a vida.

E esta velha luta de lados envolve o também já antigo conceito de Estado de bem-estar social. Este, por sua vez, pode ser conceituado como uma forma de organização de Estado que coloca o Estado como agente da promoção social, de modo a organizar a economia a fim de que esta finalidade seja alcançada.

No Estado de bem-estar, portanto, haveria um compromisso profundo de tutela estatal no âmbito dos direitos sociais.

Tal forma de Estado muito foi e continua sendo criticada, sob o principal fundamento de que os direitos sociais custam caro. Custaria muito ao Estado a tutela estatal ampla quanto à direitos como, por exemplo, saúde pública e educação acessíveis gratuitamente a todos aqueles que delas necessitem.

Sabemos, entretanto, que a forma que o Estado tem para prover os serviços públicos é através da arrecadação de impostos. Dizendo de outro modo: todos nós, cidadãos que pagamos impostos estamos recolhendo dinheiro aos cofres públicos, que, por sua vez, devem ser traduzidos em serviços à sociedade. É uma troca.

Dessa forma, nos Estados de bem-estar, há uma maior oferta de direitos sociais através dos serviços públicos, como a saúde gratuita e benefícios previdenciários.

Na presente crise sanitária mundial e, por decorrência, econômica, fortes e mais preparados estarão os países que possuem, ainda que de forma branda, um Estado de bem-estar. Seja com a oferta de saúde publica a todos, seja com a existência de benefícios previdenciários e uma legislação trabalhista hígida e assecuratória.

A saúde gratuita garantida pelo Estado é de fácil percepção de importância, o que não ocorre com os direitos previdenciários, assistenciais e trabalhistas, que ao fim, conterão os nefastos efeitos da grave recessão econômica que iremos enfrentes nos próximos meses.

Sobretudo no caso dos direitos trabalhistas, que são duramente combatidos, em breve resplandecerá a importância de uma legislação que garanta licença remunerada; férias coletivas; garantias de emprego; seguro desemprego; entre outras possibilidades.

É claro que a oferta destes direitos trabalhistas não se desvincula do próprio sistema de seguridade social, que é um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

O caráter mais importante da seguridade social é que, como seguro social, é financiada por todos para um momento como o atual, garantindo a sobrevivência e mantendo a economia girando.

Sendo assim, torna-se nítido que os direitos sociais trabalhistas, previdenciários e assistenciais irão ser protagonistas para conter a grande recessão do mercado que iremos enfrentar. Países sem tutelas sociais, como Estados Unidos, tem ainda um enorme problema a resolver diante da ausência de referidos direitos “anticrise”.

Como prova disso, a manifestação pública do presidente da França, Emanuel Macron[i][ii], conhecido crítico de direitos sociais, no sentido de que a pandemia relevou que a saúde gratuita e o Estado de bem estar social não são custos, mas bens precisos, revela que podemos ter uma virada mundial em termos de politicas estatais.

Logicamente que não se está aqui a propor uma hegemônica forma de se pensar. É utópico e nossas diferenças se explicam justamente pela multiforme personalidade humana. Mas de uma coisa podemos ter certeza: todos no nosso íntimo buscamos um convívio social digno para todos nossos semelhantes.

Será que esta crise vai nos transformar? Transformar governantes, gestores, políticos, trabalhadores, investidores, jovens… enfim.

Qual tipo de sociedade queremos ser? Queremos uma sociedade fraterna, que busca a justiça social, com um patamar mínimo civilizatório de direitos? Quais direitos fundamentais sociais queremos para nossa garantia? Em tempos de mundo globalizado e crises frequentes, é sempre bom lembrar que nunca podemos antever quando nós mesmos estaremos necessitados destes mesmos direitos.

[i] https://oglobo.globo.com/mundo/contra-trump-nacionalismos-macron-tenta-coordenar-resposta-da-ue-coronavirus-24304796;

[ii] https://www.euractiv.com/section/coronavirus/news/france-to-close-schools-to-curb-coronavirus-spread/

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