Tribuna da Defensoria

Da inconstitucionalidade e irrelevância do requisito da confissão no ANPP

Autor

  • Emerson de Paula Betta

    é defensor público titular do órgão da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro junto à 2ª Vara Criminal de Nova Iguaçu e pós-graduado em Direito Constitucional pelo IDP.

17 de março de 2020, 8h00

Em 12.2.2020, ensaiamos aqui neste espaço, em artigo intitulado Acordo de não persecução penal e a reincidência, indagações acerca da possibilidade do Acordo de não Persecução Penal (ANPP), sendo norma posterior e mais benéfica ao Indiciado/Réu, retroagir a fatos pretéritos já transitados em julgado, e analisadas as peculiaridades do caso em concreto, afastar a reincidência gerada.

Ainda na esteira de exame do recente instituto Processual/Penal (o ANPP), traçamos os presentes apontamentos e indagações, com o fim de por em debate de ideias, a inconstitucionalidade e irrelevância do requisito da confissão elencado pelo legislador infraconstitucional ordinário no art. 28-A do Código de Processo Penal.

Para tanto, ainda que de forma breve e sucinta, importante discorrer acerca do surgimento e utilização da confissão no processo penal.

Segundo historiadores e estudiosos, remonta da Antiguidade, mais precisamente pelo povo Hebreu na Lei Mosaica (Bíblia), as primeiras menções à confissão, sendo ali destacado que ninguém poderia ser condenado apenas com base na confissão, pois tal forma de imposição de culpabilidade representaria uma contrariedade à natureza humana (NUCCI, 1999, p. 136).

Porém com o passar do tempo e a aglomeração das pessoas em cidades, e a necessidade de organização social com o ordenamento e controle social daquelas, tendo-se por consequência a criação do direito penal e o surgimento de procedimentos para aferição da culpa nas transgressões sociais, o uso da confissão começou a ser utilizado em larga escala, basicamente pelo fato de ser o “meio de prova” que melhor justificava a punição ao indivíduo, sendo considerada durante longo tempo como a Rainha das Provas.

Sucintamente, o que podemos averiguar na história, é que o uso da confissão como prova no Processo Penal, irá variar na sua metodologia, de acordo com sistema processual usado, basicamente dividido entre o sistema inquisitivo e sistema acusatório, sendo na primeira sistemática utilizada de forma autoritária e sem respeito aos direitos individuais, justificando a larga utilização da tortura para obtê-la (sistema inquisitivo), até o desenvolvimento mais recente do sistema acusatório, com influência do Iluminismo, para observância e respeito aos direitos individuais na sua obtenção.

Porém o que se pode constatar e é notório ao longo dos tempos, é a “problemática questão” da confissão no Direito Penal e Processual Penal, principalmente pelo uso indiscriminado da força Estatal (Tortura) para sua obtenção, ora autorizada pelas normas legais (sistema inquisitivo), ora usada ao arrepio da lei e sem o devido controle, ou até obtida sem a observância dos Direitos e Garantias individuais (sistema acusatório).

No Brasil, o cenário não foi, e não é diferente, pois após longos períodos ditatoriais, os quais deixaram pesados resquícios culturais de inquisição onde não eram observadas garantias individuais do cidadão, e apesar da vigência atual da Carta Constitucional de 1988, que garante no seu corpo os direitos individuais do Réu no processo penal, é certo e notório que ainda falta muito para se garantir a efetividade de tais direitos, principalmente no que diz respeito às declarações do Indiciado, seja no ato de abordagem pelos policiais ostensivos, quanto no ato pré-processual (inquérito) por parte dos policiais investigativos, onde não raras vezes é usada a força (tortura), ou outros meios sub-reptícios para obter-se uma confissão.

Também por vezes a confissão é regulamentada e até aplicada sem o devido respeito às regras constitucionais e/ou supralegais que devem permear a legislação infraconstitucional, como em nosso entender deu-se quando a Lei 13.964/2019 a elencou como requisito para o ANPP.

Dentro desta ordem de ideias, o que se constata é que a confissão não pode ser requisito para o Acordo de Não Persecução Penal, eis que viola frontalmente a Garantia Constitucional Prevista no art. 5º LXIII da CRFB/1988, verbis:

(…) LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; (…)”

Tem-se ainda, a apontar à direção da inconstitucionalidade do referido requisito previsto no art. 28-A CPP, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada em 22.11.1969, em São José da Costa Rica, com a garantia prevista no artigo 8º, §2º, g, que foi recepcionada pela CRFB/1988 no art. 5º §2º, e já considerada pelo STJ como norma supralegal, a qual a norma federal deve obediência, verbis:

Artigo 8º. Garantias Judiciais 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada.

É preciso deixar claro que não se está a defender a impossibilidade de confissão no Processo Penal, mas que a mesma deve ser obtida de forma constitucional, dentro da sistemática do Estado Democrático de Direito, o qual vigora em nosso País, onde com a adoção do sistema acusatório o Réu não é mais considerado coisa, e a confissão não é mais considerada como a rainha das provas, devendo ser valorada de acordo com a analise conjunta das demais provas existentes no processo, após a deflagração da ação penal e o exercício do contraditório e ampla defesa, devendo ser o ultimo ato da instrução processual.

Na nossa vigente ordem constitucional, o réu não é obrigado a produzir prova contra si mesmo, vale dizer que, não pode ele ser obrigado, seja direta ou indiretamente, a fornecer dados que levem a sua culpabilidade. Esta é a conclusão inarredável da Garantia Individual acima exposta, o chamado Nemo Tenetur se Detegere.

Ainda que, de acordo com as fundamentações acima feitas, no sentido de se dar oportunidade ao Réu ao ANPP já com o processo judicial em andamento, este fato não descaracteriza sua natureza extraprocessual, visto que configura-se em tratativa entre o acusado, com assistência do seu Defensor, e o órgão acusatório, revelando-se medida extrajudicial, que apenas é analisada nos seus requisitos formais e voluntariedade pelo Judiciário.

Deve-se ainda frisar que apesar de ser questão a ser futuramente enfrentada, qual seja, a utilização da ora discutida confissão extrajudicial no ANPP, no futuro e eventual processo penal, no caso de descumprimento do acordo (o que cremos ser inadmissível), não é esta a questão específica que tratamos aqui, e sim o afastamento da confissão pela inconstitucionalidade deste requisito, o que afastaria a própria discussão da sua eventual utilização futura.

É necessário pontuar, para o que aqui interessa, as diferenças entre o ANPP e o Plea Bargain, para compreender-se a inconstitucionalidade e irrelevância da confissão como requisito no acordo de não persecução penal.

Nada obstante os institutos terem pontos semelhantes, e tratarem do tema geral da imposição de pena negociada, o ANNP diferencia-se diametralmente do Plea Bargain. Para o que aqui interessa na questão de não se admitir a confissão no ANPP, verifica-se:

1 – Apesar de nos dois institutos os Indiciados/Réus se submeterem a uma pena negociada, observa-se que no ANPP está “PENA” (condição), é proposta independente de formação de culpa (a qual pela regra constitucional só pode ser estabelecida em um processo judicial, respeitado seu devido processo e contraditório – art. 5º LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;); enquanto no Plea Bargain, em observância a sistemática estadunidense onde basicamente inspirou-se, bem como do projeto de lei onde o mesmo era previsto para o corpo legislativo brasileiro, a PENA, apesar de negociada, era decorrente de processo penal já instaurado, e devidamente presidido por um juiz competente, o qual seria obrigado inclusive a verificar, além das formalidades do acordo e sua voluntariedade, o cotejo da confissão junto com os outros elementos de prova existentes, para verificar se possível a condenação criminal e a imposição de pena.

2 – no ANPP, cumprido o acordo não se considera o Indiciado/Réu culpado e não será feita anotação em sua ficha criminal, não havendo sentença condenatória e nem gerando reincidência; já no Plea Bargain o Réu seria considerado culpado, com sentença penal condenatória e feita a devida e decorrente anotação em sua ficha criminal, gerando reincidência.

3 – no ANPP, a “pena” (condição), imposta, nunca será privativa de liberdade, sendo tais condições em todo igual às previstas como penas restritivas de direito (ex.: Prestação de Serviços a Comunidade, dentre outras), o que também é previsto nos institutos despenalizadores da Transação Penal e Suspensão Condicional do Processo onde não há o requisito da confissão; já no Plea Bargain, o Réu pode, e em determinadas hipóteses é obrigatório, submeter-se a uma pena privativa de liberdade, a qual nada obstante acordada, é imposta pelo Juiz e decorrente de uma sentença penal condenatória.

Observe-se o que previa o projeto de lei que trazia o Plea Bargain, que não foi aprovado:

"Art. 395-A. Após o recebimento da denúncia ou da queixa e até o início da instrução, o Ministério Público ou o querelante e o acusado, assistido por seu defensor, poderão requerer mediante acordo penal a aplicação imediata das penas.
§ 1º São requisitos do acordo de que trata o caput deste artigo:
I – a confissão circunstanciada da prática da infração penal;
II – o requerimento de que a pena privativa de liberdade seja aplicada dentro dos parâmetros legais e considerando as circunstâncias do caso penal, com a sugestão de penas em concreto ao juiz; e
III – a expressa manifestação das partes no sentido de dispensar a produção de provas por elas indicadas e de renunciar ao direito de recurso.
§ 2º As penas poderão ser diminuídas em até a metade ou poderá ser alterado o regime de cumprimento das penas ou promovida a substituição da pena privativa por restritiva de direitos, segundo a gravidade do crime, as circunstâncias do caso e o grau de colaboração do acusado para a rápida solução do processo.
§ 3º Se houver cominação de pena de multa, esta deverá constar do acordo.
§ 4º Se houver produto ou proveito da infração identificado, ou bem de valor equivalente, a sua destinação deverá constar do acordo.
§ 5º Se houver vítima decorrente da infração, o acordo deverá prever valor mínimo para a reparação dos danos por ela sofridos, sem prejuízo do direito da vítima de demandar indenização complementar no juízo cível.
§ 6º Para homologação do acordo, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua legalidade e voluntariedade, devendo, para este fim, ouvir o acusado na presença do seu defensor.
§ 7º O juiz não homologará o acordo se a proposta de penas formulada pelas partes for manifestamente ilegal ou manifestamente desproporcional à infração ou se as provas existentes no processo forem manifestamente insuficientes para uma condenação criminal.
§ 8º Para todos os efeitos, o acordo homologado é considerado sentença condenatória.
§ 9º Se, por qualquer motivo, o acordo não for homologado, será ele desentranhado dos autos, ficando as partes proibidas de fazer quaisquer referências aos termos e condições então pactuados, tampouco o juiz em qualquer ato decisório.
§ 10. No caso de acusado reincidente ou havendo elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, o acordo deverá incluir o cumprimento de parcela da pena em regime fechado, salvo se insignificantes as infrações penais pretéritas.
§ 11. A celebração do acordo exige a concordância de todas as partes, não sendo a falta de assentimento suprível por decisão judicial, e o Ministério Público ou o querelante poderão deixar de celebrar o acordo com base na gravidade e nas circunstâncias da infração penal."

Não há que se falar que no ANPP também se tem uma sentença e atuação do juiz para justificar a confissão, pois isto não a torna judicializada, tendo em vista que o ato previsto no artigo 28-A §4º CPP, é tão somente para o Juiz aferir a legalidade formal e voluntariedade do acordo firmado entre acusação e Indiciado/Réu, como acima destacado, não havendo valoração de prova como no Plea Bargain.

O que estamos a demonstrar é que a confissão no processo penal é tema que não deve ser tratado de forma despretensiosa, banalizada e sem a devida atenção aos Direitos Individuais.

Para além de não poder se admitir este requisito em seara onde não há controle de mérito do judiciário (ANPP), ferindo o contraditório e o devido processo legal, implicitamente há o risco muitas vezes, do Indiciado/Réu confessar sem ter cometido o delito, ou até o cometido de forma menos grave, ou em causa de justificação, somente para não correr o risco de uma condenação criminal, gerando uma falsa confissão.

De se destacar ainda, que mesmo no âmbito do Plea Bargain, o instituto em si sofre várias críticas e muitas em relação à confissão do réu, ainda que naquela hipótese analisada em seu mérito, diante de toda problemática acima já referenciada.

Neste sentido, colhemos precioso trecho do artigo: O plea bargain e as falsas confissões: uma discussão necessária no sistema de justiça criminal, de autoria de Juliana Ferreira da Silva publicado no IBCCRIM, para onde remetemos: https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/6331-O-plea-bargain-e-as-falsas-confissoes-uma-discussao-necessaria-no-sistema-de-justica-criminal:

(…) Os estudos das falsas confissões no sistema de justiça criminal são mais abundantes em pesquisas norte-americanas do que brasileiras. Assim, será necessário primeiramente recorrer a dados e teorias relacionados ao sistema estadunidense de justiça criminal, com vistas à demonstração de um panorama do corpus teórico dedicado ao estudo da tipologia e dinâmica psíquica das falsas confissões. Tais estudos partem do questionamento sobre se e em quais condições uma pessoa pode confessar um crime que não cometeu. Por mais contraintuitivo que possa parecer, a falsa confissão de um crime é um fenômeno mais comum do que se imagina. Os dados do Innocence Project – Projeto fundado nos EUA, em 1992, por Peter Neufeld e Barry Scheck na Cardozo School of Law, dedicado à exoneração de condenações injustas e reforma do sistema de justiça criminal – demonstram que as falsas confissões estão presentes em aproximadamente um quarto dos casos de pessoas injustamente condenadas que tiveram suas condenações revogadas (KASSIN, 2008). Pode-se afirmar, portanto, que esse seja um fenômeno cujas proporções são ainda pouco conhecidas, mas que deva ser, dado ao que já se sabe, devidamente considerado enquanto importante elemento de risco de erros judiciários. (…)”

Observe-se que o instituto do ANPP, como previsto no seu artigo 28-A CPP, é direcionado aos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça, e que tenham penas mínimas menores que 4 anos.

Significa isto, que o ANPP vem na vertente do que já foi feito com a promulgação da lei 9.099/1995, com a intenção de fomentar a solução extraprocessual dos conflitos penais em casos de menor gravidade, quando trouxe os institutos da Transação Penal e Suspensão Processual do Processo, os quais, diga-se de passagem, não exigem a confissão e também onde não há exame de mérito, não gerando igualmente sentenças penais condenatórias; e não especificamente no sentido do Plea Bargain, o qual é aplicado aos delitos em geral e independente de sua gravidade, havendo efetivo processo judicial, com exame de mérito não só da confissão como do contexto probatório, havendo condenação criminal e imposição de pena decorrente de uma condenação criminal, o que em tudo justifica a confissão.

Ao final do raciocínio fica a indagação para além da inconstitucionalidade: Qual a relevância da confissão no ANPP, eis que trata-se de acordo penal extraporcessual, onde não se afere culpa (e nem poderia se aferir, eis que afrontaria o devido processo legal); onde não há exame de mérito dos fatos; onde não se profere uma sentença penal condenatória?

Cremos que tal indagação talvez possa ser respondida na odiosa consideração de claro ranço inquisitório (ainda infelizmente muito arraigada nos nossos representantes legislativos e executivos), e totalmente contrária ao sistema acusatório e a um processo penal condizente a um Estado Democrático de Direito, onde o suspeito/acusado sempre deverá curvar-se a acusação, assumindo os fatos a ele imputados, para demonstrar arrependimento e purificar-se.

Nesta senda colhe-se a sempre precisa lição de Aury Lopes Jr, in Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, Volume I, 3ª Edição, Lumen Juris, pág. 583:

(…) Deve-se insistir na necessidade de abandonar-se o ranço inquisitório (e a mentalidade nessa linha estruturada), onde a confissão era considerada a ‘rainha das provas’, pois o réu era portador de uma verdade que deveria ser extraída a qualquer custo. No fundo, a questão situava-se (e situa-se, ainda), no campo da culpa judaico-cristã, onde o réu deve confessar e arrepender-se, para assim buscar a remissão de seus pecados (inclusive com a atenuação da sua pena, art. 65 III, “d”, do Código Penal). Também é a confissão, para o juiz, a possibilidade de punir sem culpa. É a possibilidade de fazer o mal através da pena, sem culpa, pois o herege confessou seus pecados. (…)”

Em conclusão, deve ser afastado o requisito da confissão para formulação do ANPP, tendo em vista sua inconstitucionalidade, por afronta as Garantais Constitucionais da não autoincriminação; do Devido Processo Legal, da Ampla Defesa e do Contraditório, bem como por não ser em nada relevante para o que a lei propõe, já que não é caso de imposição de pena decorrente de sentença penal condenatória.

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