Contas à vista

O drible federativo à Garrincha e a câmara técnica de normas contábeis

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

17 de março de 2020, 8h00

Dias atrás escrevemos – Onofre Batista e eu, com quem tenho a honra de também escrever esta coluna a quatro mãos – que a PEC 188 queria transformar o TCU em um tribunal de contas da federação, expondo a tendência centralizadora da política financeira da União e a ofensa ao princípio federativo. Eis que, no mesmo dia, foi editado o Decreto 10.265/20, instituindo a Câmara Técnica de Normas Contábeis e de Demonstrativos Fiscais da Federação. Juramos, de pés juntos, que não tínhamos conhecimento desse decreto.

Nenhum destaque na mídia, seguramente por ser uma Câmara Técnica, criada por decreto, e para tratar de Normas Contábeis e de Demonstrativos Financeiros. Só uns poucos abnegados estudiosos da matéria leram seu texto, e menor número ainda chegou a tecer comentários aqui e ali, de forma bastante pontual. De certo modo, essa Câmara faz lembrar aquela definição de água, que estudamos no colégio: algo insípido, incolor e inodoro. – recordam?

Pois creiam, caros leitores, esse decreto é um verdadeiro drible, atalhando a obtenção de resultados centralizadores, de modo a dilapidar o que resta da autonomia federativa. Afinal, quem controla o dinheiro, controla em grande parte o poder. Sendo este controle financeiro centralizado, para que autonomia federativa? Apenas para se escrever livros e ensinar nas aulas de história do direito brasileiro? De novo estamos defronte a mais Brasília e menos Brasil – lembro que o slogan governamental era o oposto.

Essa Câmara surge com o objetivo de assessorar o órgão central de contabilidade da União na elaboração das normas gerais relativas à consolidação das contas públicas.

O decreto regulamenta o §2º do art. 50 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o qual determina que caberá ao órgão central de contabilidade da União a edição de normas gerais para consolidação das contas públicas, enquanto não implantado o Conselho de que trata o art. 67. Ocorre que esse art. 67 estabelece a necessidade de um Conselho de Gestão Fiscal, constituído por representantes de todos os Poderes e esferas de Governo, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da sociedade, visando a harmonização e coordenação entre os entes da Federação, dentre outras importantes funções. Esse Conselho deverá ser criado por lei (§2o do art. 67 da LRF ) – para que não restem dúvidas: ato do Poder Legislativo. Trata-se, pois, de um Conselho com as atribuições de homogeneizar e acabar com as dificuldades dos órgãos de controle, sobretudo os TCE, no cumprimento de sua missão, dando maior segurança para a gestão das contas públicas – o que é do interesse de toda a sociedade.

Aqui ocorre o primeiro drible, pois, ao invés de ser proposta a criação desse Conselho federativo, previsto na LRF, através de um projeto de lei, atalha-se, vinte anos após, e resolve-se criando uma Câmara Técnica através de um decreto.

É possível um decreto federal vincular Estados e Municípios? Pelo Direito que se estuda nos livros a resposta é não. Porém, esse é o alcance buscado desde o pomposo, insípido e inodoro nome de Câmara Técnica “da Federação”, dentre outras passagens do decreto. É sabido que o art. 24 da CF (caput, inciso I e §§ 1º a 4º) estabelece que para o exercício da competência federativa concorrente é necessário que haja lei, mesmo para a veiculação de normas gerais, o que contraria o art. 50, §2º, da LRF e impede o uso de um singelo decreto. Inconstitucionalidade à vista.

O decreto pretende disciplinar, por exemplo, como deve ser feito o Anexo de Riscos Fiscais e o Anexo de Metas Fiscais do projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Em outras palavras, caberá a essa Câmara Técnica disciplinar todos os documentos financeiros, demonstrativos contábeis e a prestação de contas dos entes federados. Busca-se o completo controle financeiro dos entes subnacionais.

Essa Câmara Técnica será composta por um representante: (1) do órgão central de contabilidade da União; (2) do órgão central do Sistema de Planejamento e de Orçamento Federal; (3) do órgão central do Sistema de Controle Interno do Poder Executivo federal; (4) do Comitê dos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal; (5) do Conselho Nacional de Política Fazendária; (6) da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais; (7) da Confederação Nacional de Municípios; (8) da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil; (9) do Instituto Rui Barbosa; e (10) do Conselho Federal de Contabilidade.

Para compor essa Câmara Técnica poderão ainda indicar um representante, com direito a voto: (11) o Senado Federal; (12) a Câmara dos Deputados; (13) o Conselho Nacional de Justiça; (14) o Conselho Nacional do Ministério Público; (14) a Defensoria Pública da União; e (16) o Tribunal de Contas da União.

Suponhamos que todos esses órgãos indiquem representantes e a Câmara Técnica venha a ter 16 membros – qual será sua composição federativa? 09 membros advirão de órgãos da esfera federal de governo, 02 membros do âmbito estadual, 02 membros do nível municipal, 02 membros de órgãos associativos de Tribunais de Contas e 01 membro representando a sociedade civil. Logo, qual será a ótica predominante nesse contexto? A dos entes menores da federação, ou a do maior? A resposta já está dada: a da União.

Ademais, existe o caráter simbólico dessa Câmara, pois se reunirá ordinariamente duas vezes por ano. Quem efetivamente controlará, sob o pálio do argumento técnico, será o órgão de contabilidade da União, pois terá a função de presidir, coordenar e secretariar essa Câmara, e ainda, copiando o péssimo exemplo de outros órgãos, como o CARF, seu representante terá voto duplo, em caso de empate (art. 5º, §2o, Decreto 10.265/20). Ou seja, uma vez realizado o controle financeiro, a reunião, em grande parte, servirá para convalidar o que foi feito, sob o biombo da legitimidade técnica e pretensamente federativa.

Se a PEC 188 trazia o risco de constituir um colegiado político e de concentrar poder no TCU, o decreto centraliza a regência das finanças de todos os entes federados no Poder Executivo da União. O Executivo federal assume, por vias transversas, o comando das finanças dos Estados e dos Municípios, abrindo a possibilidade de ingerência plena nos entes subnacionais pela formatação de normas financeiras e contábeis. Se o Conselho Fiscal da República, na PEC 188, é formatado para se tornar o órgão por meio do qual se pretende comandar financeiramente o país, esta Câmara Técnica garante o tão sonhado controle financeiro completo da República, antes mesmo da aprovação parlamentar. Por meio dos computadores do Ministério da Economia, o Poder Executivo federal assumirá o comando completo das finanças, encerrando a autonomia financeira e de autoadministração dos entes federados. O federalismo assim sucumbe; a autonomia dos entes federados se dissolve.

O decreto dribla a exigência de lei para a criação de um Conselho que seja federativo (art. 67, §2o, da LRF) e dribla a proposta do próprio governo na PEC 188. Em suma: o decreto dribla o Poder Legislativo Federal – a Câmara e o Senado – responsáveis por fazer leis e aprovar emendas à Constituição.

Vamos expor apenas a um exemplo para demonstrar o tamanho do problema. No Estado de São Paulo, há vários anos, é legalmente destinado às Universidades estaduais (USP, Unesp e Unicamp) parcela da arrecadação do ICMS. Pois bem, esta determinação estadual poderia estar ameaçada por tal tipo de controle, sob o errôneo entendimento centralizador do que os Estados devem se ater ao ensino fundamental, e não ao superior. Isso acarretaria a falência do financiamento de algumas das mais importantes Universidades brasileiras. Vale a pena correr esse risco?

Definitivamente é mais difícil gerir uma democracia, pois se governa por meio do debate. O resultado não costuma ser perfeito, nem estético, mas funciona, porque pertence a todos e promove a tão sonhada harmonia e cooperação social.

O Estado Democrático de Direito precisa de normas, que já deviam ter sido feitas, estabelecendo conceitos e procedimentos mais padronizados em matéria contábil, mas os representantes do povo, no Congresso Nacional, precisam aprovar essas leis. Não se admite que o Poder Executivo comande as finanças dos Estados e Municípios, ferindo de morte o federalismo.

Uma democracia reclama divisão de poderes e, em um Estado continental, a separação vertical é tão importante quanto a separação horizontal de poderes. A existência de Estados e Municípios autônomos, sobretudo financeiramente, é um pré-requisito para se constituir um Estado Democrático. Não existe democracia sem separação de poderes e, no Brasil gigante, só existe a possibilidade democrática com Estados e Municípios fortes. Por isso, o federalismo é princípio constitucional e cláusula pétrea.

A União se beneficia de sua própria omissão por não ter proposto a criação do Conselho de Gestão Fiscal ao longo desses anos, e agora busca legitimar o controle das finanças dos demais entes da federação criando uma Câmara, que se seja técnica e de âmbito federativo.

Mais uma vez se reitera que não está em discussão a necessidade de o país contar com normas contábeis mais padronizadas para o setor público, por questões de segurança jurídica – isso é necessário e imprescindível. Porém não se pode fazê-lo aos trancos e barrancos – ou tentando dar dribles à Garrincha.

Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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