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Acordo de não persecução penal: rumo ao Direito Penal de segunda velocidade?

Autor

  • Celeste Leite dos Santos

    é promotora de Justiça idealizadora do Memorial Avarc em memória às Vítimas da Covid-19 coordenadora do grupo de trabalho do projeto de lei do Estatuto da Vítima e associada do Movimento do Ministério Público Democrático.

16 de março de 2020, 8h00

A legitimidade do Direito Penal se encontra condicionada a ocorrência de mínimo dano social e mínima violência estatal às vítimas e autores de fatos delitivos. Inspirado nessas premissas foi introduzido no art. 28-A do Código de Processo Penal o acordo de não persecução penal. A mens legis foi a de evitar a instauração de persecuções penais em casos que as pessoas já se encontrem ressocializadas, gerando custos desnecessários ao Estado.

Introduziu-se, portanto, a autorresponsabilização como instrumento ressocializador, uma vez que incontáveis são os estudos criminológicos que atestam sua impossibilidade em ambiente carcerário. Uma das condições impostas para a realização da negociação penal entre o Estado e ofensor é a reparação do dano causado. Ainda que de forma embrionária, foram lançadas as bases para o reconhecimento do instituto do injusto penal restaurável (SANTOS, Celeste Leite dos Santos. Injusto Penal Restaurável: análise da ingerência penal na perspectiva da proteção às vítimas de crimes, 2019, dissertação defendida na PUC/SP em 2019).

O instituto do injusto penal restaurável vem ao encontro do tão desejado combate eficiente a prática de crimes, bem como à própria vitimização, estabelecendo-se resposta estatal célere, uma vez que a vítima é informada do dever do ofensor em indenizá-la pelo delito praticado. A partir da Lei Anticrime ingressa-se definitivamente no Direito Penal do século XXI, adotando-se nos crimes com pena mínima de até 4 (quatro) anos e praticados sem violência ou grave ameaça, a possibilidade da adoção de contrato de não persecução penal. O fenômeno foi cunhado por SILVA SANCHEZ como a segunda velocidade do Direito Penal.

Por outro giro, a pretendida maior eficácia desse instituto coloca paradoxalmente em risco a tutela de bens jurídicos coletivos, uma vez que são tratadas como se fossem “coisa de ninguém”. Já estão surgindo as vozes que propalam a sua aplicação nos casos de tráfico de entorpecentes, desconsiderando-se os custos para o sistema de saúde pública gerado por essa modalidade criminosa no atendimento a usuários. Sem adentrar no mérito da polêmica de sua aplicabilidade a delito que possui pena mínima superior a 4 (quatro) anos, o fato é que os requisitos são cumulativos – confissão e reparação do dano. E por reparação do dano se faz necessário o desenvolvimento de política criminal que considere o crime em seu aspecto macropolítico, com incorporação dos indicadores sociais respectivos para a elaboração de proposta que minimamente sirva de suporte a prevenção à vitimização, seja em seus aspectos primários ou secundários. Portanto, não se incorporou em nosso ordenamento jurídico a unicidade dos injustos cível e criminal, mas resposta estatal diferenciada a prática de crimes cujo eixo central se encontra focado muito mais no seu aspecto preventivo à reincidência e à vitimização, deitando-se pá de cal no modelo exclusivamente repressivo vigente.

De outra parte, o legislador penal perdeu a oportunidade de ouro de estabelecer expressamente a imposição negociada de pena previsto no pacote anticrime do Ministro Sérgio Moro. Entretanto, reputamos que inexiste óbice legal para sua imediata implementação pelo Ministério Público, Poder Judiciário, Defensores Públicos e Advogados, pois nada mais é do que a substituição da ferramenta do processo penal pela ferramenta do Direito Penal Negocial, com benefícios para todos os envolvidos. Ao acusado é dado o benefício da redução de pena pela confissão, bem como um desfecho ágil e efetivo para o delito que praticou. A vítima é poupada da necessidade de nova oitiva perante a autoridade judiciária que, por si só, é fonte de traumas e violência (vitimização secundária). Ao Estado são otimizados os recursos existentes com gestão eficiente da administração da justiça.

Abre-se, com isso, possibilidades restaurativas infinitas. Desde o pedido de desculpas pelo receptador do veículo, ao enfrentamento das consequências geradas pela sua conduta, ao ouvir de Dona Maria que usava o carro para trabalhar e que por conta da conduta do autor do fato delituoso colocou em risco o seu próprio sustento e do pai idoso que com ela reside. A vítima do furto do celular que informa o autor do fato que não anda mais de metrô em razão do trauma desenvolvido pela prática delitiva. Ou por outro lado, o contador idoso que premido por situação emergencial acaba por desviar dinheiro da empresa, sem que nunca tenha praticado um único ato delitivo em toda a sua vida.

A lei anticrime lança as bases para o desenvolvimento de política criminal humana e voltada às partes envolvidas na prática do crime. Ao Ministério Público enquanto órgão responsável pelo exercício ou não da ação penal pública são lançados novos desafios, abandonando-se de vez sua a vestuta figura de órgão acusador (promotor público) para efetivamente ser promotor de justiça.

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    é promotora de Justiça, doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), gerente e coordenadora do Projeto Avarc do MP-SP e membro do Movimento do Ministério Público Democrático.

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