Opinião

Alíquota zero nos combustíveis, o grande desafio

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15 de março de 2020, 6h31

Em fevereiro, Jair Bolsonaro lançou um grande desafio aos governadores dos estados e do Distrito Federal ao declarar que irá zerar as alíquotas dos tributos federais sobre os combustíveis, se estes também o fizessem em relação ao ICMS.

As declarações do presidente causaram um grande mal-estar entre os governadores e a população em geral, de modo a imputar a responsabilidade dos altos preços dos combustíveis à alta carga tributária, e não da própria Petrobras, que segue uma política de preços em paridade com o mercado internacional de combustíveis.

O assédio aos estados é mais uma das tentativas do governo federal de transferir responsabilidades, neste caso, para legitimar uma política de preços totalmente injusta, que favorece os acionistas da empresa em detrimento da população brasileira e ainda desvirtua a finalidade essencial de nossa maior empresa estatal, capaz de prejudicar o mercado interno.

A discussão traz à tona uma das grandes falhas no nosso atual sistema de arrecadação, especialmente quanto à excessiva carga tributária no consumo das famílias, através dos tributos indiretos, aqueles que são possíveis a transferência do encargo tributário ao destinatário final do produto ou serviço.

Mas afinal, há possibilidade jurídica da adoção de “alíquotas zero” tanto em relação aos tributos federais quanto aos tributos estaduais? Em um primeiro momento, podemos dizer que sim, mas não como os nossos governantes acham que deve ser. Isso porque, à luz da Constituição Federal, a legalidade tributária atua como um grande limitador do poder estatal, sendo necessária a atuação da lei para instituir, extinguir, reduzir ou majorar tributos. É claro que esta é a regra, logo, comporta exceções, e as mitigações ao princípio da legalidade tributária possuem escopo na própria lei maior de nosso Estado.

É premissa, antes de adentrar o tema sugerido, entender a composição de preços dos combustíveis, especialmente quanto à gasolina, afinal, também é de grande importância observar quanto a carga tributária influencia no valor final destes. Pois bem, de acordo com a Petrobras, os percentuais referentes ao valor final da gasolina se dividem da seguinte forma: 13% em relação à distribuição e revenda, 29% correspondente à “realização Petrobras”, 14% em relação ao custo do etanol anidro (composto essencial à produção da gasolina do tipo “C”, aquela que você abastece seu veículo), 15% de tributos federais e 29% de tributos estaduais.

Quanto aos tributos federais, temos as contribuições especiais, divididas entre as contribuições de intervenção no domínio econômico — Cide combustível — e as sociais — PIS/Pasep e Cofins — que, no ano de 2019, somaram o montante de R$ 27,4 bilhões aos cofres da União.

Em relação aos tributos estaduais, contamos tão somente com o ICMS, que à exemplo do estado do Rio de Janeiro, somente no ano de 2019, arrecadou o valor correspondente à R$ 5 bilhões, mesmo valor gasto na área da saúde do estado, de acordo com o secretário estadual de Fazenda, Luiz Cláudio Rodrigues.

Em que pese os tributos aventados possuírem a mesma natureza jurídica, as suas finalidades são diferentes.

O ICMS, sem sombra de dúvidas, constitui a maior receita de qualquer estado da federação, sendo o ICMS-combustível uma das hipóteses de incidência deste imposto, abrangendo ainda outras situações tributáveis.

Ainda sobre o ICMS, único imposto incidente sobre os combustíveis, por sua essência são não vinculados, isso quer dizer que o produto de sua arrecadação, dentro dos limites legais, serve para o custeio geral da administração pública, seja para investimentos públicos nas áreas da saúde, educação, transporte, lazer, fazer frente às despesas com as instalações públicas, obras, pessoal, enfim.

A Cide combustível por sua vez, instituída pela União por meio da Lei 10.336/01, tem como destinação do produto arrecadado, na forma da lei orçamentária, ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, de gás natural e seus derivados e de derivados de petróleo, além do financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás e ao financiamento de programas de infraestrutura de transportes, logo, sua instituição é plenamente vinculada aos fins que à instituiu.

As contribuições sociais também são vinculadas, o PIS/Pasep e a Cofins servem, precipuamente, para o custeio da seguridade social e têm papel importante na manutenção dos direitos sociais mais básicos conferidos aos cidadãos.

Assim, podemos observar a grande importância dos aludidos tributos na cadeia produtiva dos combustíveis, deste modo, passamos a análise dos fundamentos constitucionais e infraconstitucionais acerca da fixação da alíquota zero destes tributos, como proposto pelo presidente.

Bolsonaro não está errado ao dizer que pode, por si só, zerar as alíquotas dos tributos federais. Isso porque estes tributos, incidentes na cadeia produtiva do combustível, não estão sujeitos ao princípio da legalidade, ou seja, não prescindem de lei para que as suas alíquotas sejam reduzidas, bastando tão somente um ato do Poder Executivo tanto para majorar, quanto para reduzir, desde que dentro dos limites legais.

Com o advento da Emenda Constitucional 33/2001, a Cide combustível passou a ter expressa previsão Constitucional quanto a esta exceção à legalidade, o artigo 177, parágrafo 4°, I, “b”, da Constituição Federal, é claro ao dizer que esta Cide poderá ter suas alíquotas reduzidas ou restabelecidas por ato do Poder Executivo, bastando, por exemplo, um decreto presidencial.

Já em relação ao PIS/Pasep e a Cofins, a mesma exceção não encontra amparo no texto constitucional, e sim na Lei 10.865/2004, mais precisamente em seu artigo 27, parágrafo 2°, que diz: “O Poder Executivo poderá, também, reduzir e restabelecer, até os percentuais de que tratam os incisos I e II do caput do artigo 8º desta Lei, as alíquotas da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins incidentes sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de não-cumulatividade das referidas contribuições, nas hipóteses que fixar”.

Deste modo, não há que se falar em inconstitucionalidade ou ilegalidade na fala do presidente, pois é faculdade do Poder Executivo reduzir ou majorar, especificamente, estas espécies tributárias.

Entretanto, não podemos dizer o mesmo dos estados e do Distrito Federal, pelo menos não com essa mesma facilidade conferida ao presidente da República. Isso porque, em que pese o ICMS-combustível também possuir uma exceção à reserva de lei, outra vez por advento da EC 33/2001, sua alíquota poderá ser definida por ato administrativo diverso de lei, só que não dos governadores dos estados e do Distrito Federal, e sim do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), o que traz ainda mais dificuldades à adoção da alíquota zero deste imposto.

O artigo 155, parágrafo 4°, IV, da Constituição, expressa que as alíquotas do ICMS monofásico incidente sobre os combustíveis, serão definidas mediante deliberação dos estados e Distrito Federal, nos termos do parágrafo 2º, XII, "g", ou seja, por meio do Confaz.

O conselho é formado, basicamente, pelos representantes dos estados e do Distrito Federal, competindo-lhe, principalmente, celebrar convênios para efeito de concessão ou revogação de isenções, incentivos e benefícios fiscais e financeiros do ICMS, e isso possui uma razão bem lógica, apaziguar a guerra fiscal entre os estados e o Distrito Federal em relação a este imposto.

Assim, podemos concluir que realmente se trata de um grande desafio aos estados e ao Distrito Federal, pois não é nada fácil abrir mão de uma arrecadação tão volumosa como esta. João Dória por exemplo, governador do estado de São Paulo, disse que os estados não têm espaço fiscal para reduzir ICMS de combustíveis. Portanto, o que nos resta agora é aguardar as cenas do próximo episódio.

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1998. Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 15 fev. 2020.

BRASIL. Contribuição de intervenção no domínio econômico. Brasília, DF, 19 dez. 2001. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10336.htm>. Acesso em: 15 fev. 2020.

BRASIL. Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social. Brasília, DF, 30 abr. 2004. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L10.865.htm>. Acesso em: 15 dez. 2020.

PETROBRAS. Composição de preços ao consumidor. Disponível em <https://petrobras.com.br/pt/produtos-e-servicos/composicao-de-precos-de-venda-ao-consumidor/gasolina/>. Acesso em: 15 dez. 2020.

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