Segunda Leitura

Estudo de decisões judiciais merece mais estudo e análise

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

15 de março de 2020, 10h30

Spacca
O Brasil não tem tradição no estudo de decisões judiciais. A falta de tal tipo de iniciativa, somada ao desconhecimento do seu potencial e ao receio de desagradar os autores de sentenças ou votos em acórdãos, faz com que se perca um vasto campo de pesquisa científica. Mas, de qualquer forma, de forma e em locais diversos, começam a surgir pesquisas típicas ou semelhantes, ora por instituições privadas (por exemplo, FGV)[i], ora por órgãos públicos (por exemplo, CJF)[ii].

Andressa Amaral Eller Silva discorre sobre o estudo de caso, afirmando que “no Direito brasileiro, seja na pesquisa ou no ensino, esse método é pouco utilizado, pois a pesquisa jurídica, principalmente nos programas de pós-graduação stricto sensu, é na maioria das vezes apenas documental, recorrendo somente a material bibliográfico, enquanto as aulas ministradas nos cursos de Direito são eminentemente expositivas ou magistrais”.[iii]

Artigos vêm pesquisando o potencial jurídico que pode ser extraído de tais estudos. Como apontam Mônica Mota Tassigny e outros “no Direito brasileiro, seja na pesquisa ou no ensino, esse método é pouco utilizado, pois a pesquisa jurídica, principalmente nos programas de pós-graduação stricto sensu, é na maioria das vezes apenas documental, recorrendo somente a material bibliográfico, enquanto as aulas ministradas nos cursos de Direito são eminentemente expositivas ou magistrais”.[iv]

Fácil é, pois, concluir, que no Brasil as decisões judiciais, regra geral, não são discutidas em classe, continuando o ensino a ser feito por exposição do professor, baseada na lei e na doutrina. Além disto, elas raramente são estudadas e analisadas através de um exame que leve em conta todas as peculiaridades que envolvem o conflito levado a Juízo.

Aqui, todavia, não será analisada a forma de ensino jurídico atual, tema este objeto de diversas e bem conduzidas pesquisas científicas. O foco, neste artigo, será apenas o da relevância e da forma do estudo de decisões judiciais. Vejamos porque tal iniciativa é importante.

Um precedente judicial pode decidir questão corriqueira, com jurisprudência consolidada, mas pode, também, enfrentar caso que se revele pioneiro ou de grande importância social, econômica ou política. Hoje mais do que nunca, o Poder Judiciário assume um papel que vai muito além da interpretação da lei, alcançando, inclusive, regras de políticas públicas.

Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, ao decidir que os aposentados devem continuar a contribuir para a Previdência Social, muito embora desta contribuição não lhes advenha nenhum benefício do qual não disponham, baseando sua decisão na “obediência aos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial, bem como aos objetivos constitucionais de universalidade, equidade na forma de participação no custeio e diversidade da base de financiamento”[v], ditou decisão de grande relevância social, mas que admite uma séria de pontos de vista contrários. Evidentemente, este é um julgado que merece discussão científica, principalmente no âmbito acadêmico.

Ainda no STF, no âmbito do Direito Indígena, cita-se o polêmico caso conhecido como Raposa Serra do Sol, área situada no nordeste do Estado de Roraima e habitada tradicionalmente por índios pemons e capons, povos que se subdividem em diversos subgrupos e que ocupam também terras na Venezuela e Guiana. Parte da referida área foi cultivada por agricultores que lá se estabeleceram para o plantio de arroz nos anos 1970. O Supremo Tribunal Federal determinou, em junho de 2007, a desocupação da área. A execução foi objeto de inúmeros incidentes, inclusive com a ação de tropas do Exército. O voto condutor do ministro Menezes Direito determinou a “preservação da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, ”mas impôs 18 restrições, como as definidas no parágrafo 3º do artigo 231 da Constituição Federal referentes à pesquisa e lavra de riquezas minerais e à exploração de potenciais energéticos, além de questões envolvendo a soberania nacional”.[vi] Como é evidente, o caso é de notório interesse nas discussões sobre o tema.

Mas, registre-se, não é necessário que o acórdão seja do STF, podendo ser de outros Tribunais, inclusive Tribunais de Justiça e Regionais Federais.

A forma da análise da decisão é outro ponto de discussão. Os trabalhos acadêmicos são regulados pelo Manual da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), denominado “Regras gerais de estilo e formatação de trabalhos acadêmicos”.[vii] Referido guia põe em ordem as pesquisas realizadas, facilitando a delimitação do tema e a compreensão pelo leitor. No entanto, ele não dá indicações de como deve ser um estudo de decisão judicial.

Portanto, tal análise não tem regras imutáveis, o que não é novidade alguma, pois assim é também na maioria dos países. Por exemplo, na Argentina, a Revista de Derecho Ambiental 41, traz dois acórdãos sobre o reconhecimento da orangotanga Sandra como sujeito de Direitos. O primeiro dividiu-se em três partes: introdução, contribuições sobre a ética animal e construção de perguntas.[viii] O segundo tem preliminar, considerações sobre a evolução dos grandes símios, animais como sujeitos de direitos e conclusões.[ix]

Se assim é, creio que no Brasil o estudo de decisão judicial deve seguiras regras da ABNT já mencionadas, adaptando-se, todavia, o formato para este especial tipo de estudo. Sugere-se, pois, que siga a seguinte ordem:

a) No alto o tema sob pesquisa, seguido por “Comentários ao Acórdão nº … do Tribunal … e, logo abaixo a data do julgamento.

b) Dois espaços abaixo, com recuo à direita, o nome de quem comenta e um CV, máximo de cinco linhas, em nota de rodapé.

c) Mais dois espaços abaixo e vem o início dos comentários, subdividido em itens.

d) O item 1 deve conter a cópia da ementa do acórdão. O inteiro teôr deve ser indicado com a fonte de pesquisa em nota de rodapé, mas nunca ser reproduzido na íntegra. Por vezes a própria ementa não deve ser reproduzida totalmente, pois, muitas há que possuem dezenas de itens.

e) No item 2 poderá dar-se um resumo de cinco ou seis linhas sobre o relator, a fim de que o leitor possa conhecer sua formação e personalidade, que certamente influíram na redação do voto.

f) O item 3 deve ser o resumo do conflito. Este detalhe é importante porque situa o leitor sobre qual é o conflito, o que foi discutido. Infelizmente, os acórdãos atualmente cada vez descrevem com menos precisão o cerne do litígio, limitando-se a oferecer cópias de trechos da inicial ou outra peça.

g) No item 4, o contexto histórico. Nele será dada uma noção sobre o momento e o local da decisão, permitindo ao leitor do presente e do futuro entendam as razões que influenciaram o julgamento de mérito.

h) Em seguida vem a análise do voto do relator, que conduziu à conclusão e, eventualmente, de voto vencido.

i) Efeitos da decisão, políticos, sociais ou econômicos, também são recomendáveis. Expor as consequências do julgado não constitui preocupação no Brasil, mas é algo de extrema relevância.

j) O comentarista deve apontar o fato. Da mesma forma o chamado obiter dictum, que são afirmações que na maioria das vezes nada tem a ver com a discussão. O “copia e cola” hoje tão comum tem originado referências genéricas totalmente dispensáveis.

k) Finalmente, as referências bibliográficas.

Encerrando, um registro necessário. O estudo de caso judicial é uma peça científica, uma oportunidade de colaboração para aprimorar o sistema. Portanto, críticas são admissíveis, mas com respeito e elegância. Vulgarizar a sustentação dos argumentos, elogiando de forma desnecessária ou criticando de maneira vulgar, tornará a pesquisa inútil, destituída de valor, mais uma manifestação de mal gosto das tantas que tomamos conhecimento diariamente.


i Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/noticias/580418534/observatorio-da-fgv-vai-monitorar-precedentes-judiciais. Acesso em 14/3/2020.

ii Disponível em: https://www.cjf.jus.br/observatorio/. Acesso em 14/3/2020.

iii Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43999/como-delinear-um-estudo-de-caso. Acesso em 14/3/2020.

iv TASSIGNY, Mônica Mota Tassigny, FREIRE, Cylviane Maria Cavalcante de Brito Pinheiro, NOTTINGHAM, Andréa De Boni e KARAM Andréa Maria Sobreira, a aplicabilidade do método do estudo de caso em pesquisas jurídicas. Recife: Revista Acadêmica, volume 88, número 1, p. 43, jan./jun. 2016.

v STF, ADI 3.105, rel. p/ o ac. min. Cezar Peluso, j. 18-8-2004, P, DJ de 18-2-2005.

vi Notícias do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=100567. Acesso 14/3/2020.

vii Disponível em: http://biblioteca.fecap.br/wp-content/uploads/2016/03/Manual-ABNT_-regras-gerais-de-estilo-e-formata%C3%A7%C3%A3o-de-trabalhos-acad%C3%AAmicos.pdf. Acesso em 14/3/2020.

viii BARROS Valéria RDA 41, pgs. 154-164.

ix ROSA, Maria Elisa. RDA 41, pgs. 164-172.

Autores

  • Brave

    é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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