Embargos Culturais

Amélia Beviláqua na Academia Brasileira de Letras

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

15 de março de 2020, 8h00

Spacca
Há fato ocorrido na vida do jurista cearense Clóvis Beviláqua e de sua esposa, a escritora Amélia Freitas, envolvendo a Academia Brasileira de Letras, que justifica pequena nota, em espaço que se dispõe a resgatar e comentar referências de nossa cultura, o que justifica — inclusive — o título da coluna: embargos culturais. Refiro-me ao episódio da candidatura de Amélia Beviláqua à Academia Brasileira de Letras, tratado por quase todos os biógrafos de Clóvis, especialmente por Silvio Meira e por Antonio Joaquim de Figueiredo, de onde colhi as observações que seguem.

Clóvis foi membro fundador da Academia; ocupou a cadeira 14, cujo patrono é Franklyn Távora, autor de O Cabeleira, não menos importante representante da chamada Escola do Recife, que radica em Tobias Barreto e em Silvio Romero. A partir de 1906, quando passou a morar no Rio de Janeiro (onde atuou como Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores), Clóvis frequentou o Petit Trianon. Renomado jurista (autor do Código Civil de 1916) Clóvis também fazia crítica literária.

Há uma anedota, de autoria incerta, dando conta de que Clóvis teimava em ir à Academia com a esposa, o que provocava entre alguns outros imortais, algum constrangimento, o que provocou do jurista uma resposta elegante e altiva: “Lá fora deixo o meu chapéu e a minha bengala. Onde minha mulher não pode entrar, eu também não entrarei!”. Clóvis era um homem simples, dedicado ao trabalho, um estudioso obsessivo.

Amélia, sua esposa, era culta, escrevia com muita elegância. Filha do Desembargador José Marques de Freitas, conviveu na infância e na juventude com literatos que frequentavam a casa do pai, em Recife. Em 1907, publicou, com Clóvis, um livro que tratava de literatura e direito. Publicou também textos esparsos, organizou uma revista (Ciência e Letras), ainda que, bem entendido, dois historiadores de nossa literatura, à época, não mencionaram seu nome. Refiro-me a Silvio Romero e a José Veríssimo, o que, relevante, dada a amizade de Romero por Clóvis Beviláqua.

Em 1930, com o falecimento de Alfredo Pujol, Beviláqua teria sugerido à esposa que se candidatasse à vaga então aberta na Academia. Amélia enviou carta ao Presidente da Casa, Aloísio de Castro, propondo candidatura. O regulamento da Casa previa que brasileiros poderiam participar da confraria de letras; a expressão incluía mulheres? Para Clóvis, em artigo de jornal, segundo Antonio Joaquim Figueiredo, a resposta era positiva; Clóvis sustentou essa afirmação com base em noção do Digesto e de Gaio, isto é, no direito romano, que nos dá conta que “hominis appellatione tam foeminam quam masculum contineri non dubitatur”. Em bom português: o substantivo homem compreende tanto homens quanto mulheres. A regra, portanto, segundo Clóvis, não excluiria mulheres da Academia.

Laudelino Freire, Adelmar Tavares, Luiz Carlos, Augusto de Lima, Fernando de Magalhães, João Ribeiro e Afonso Celso votaram em favor da candidatura da esposa de Clóvis. Entre os opositores da pretensão, Gustavo Barroso, Rodrigo Octávio, Olegário Mariano, Constâncio Alves, Silva Ramos, Coelho Neto e o próprio Aloísio de Castro. Publicada originariamente no Jornal do Comércio de 1930, a decisão da ABL, informa-nos Antonio Joaquim Figueiredo, foi no sentido de que na expressão os brasileiros do Art. 2º dos Estatutos só se incluíam indivíduos do sexo masculino”. Clóvis insistia, no entanto, que, “se os estatutos não proíbem, permitem”.

Vencido, Clóvis aceitou a situação, como se lê em carta que escreveu a Laudelino Freire, reproduzida no livro de Antonio Joaquim Figueiredo:

“Fecharam, rudemente, as portas da Academia, para Amélia, a quem se não pode recusar o título de fina artista da palavra escrita, à vista de numerosos trabalhos publicados, nos quais o sentimento e a ideia se exprimem por forma correta e límpida. Ainda quando lhe recusem uma cadeira no recinto acadêmico, por não quebrarem a norma rotineira, devia merecer a atenção, e o tratamento delicado, a quem tem direito, como escritora e como mulher da sociedade”.

Ao que consta, Clóvis não teria voltado à Academia. Afinal, onde à sua esposa era vedada a entrada, ele não pisava. A presença de uma mulher na Academia Brasileira de Letras ocorreu somente em 1977 quando Rachel de Queiroz ocupou a cadeira nº 5

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