Diário de classe

Populismo e ativismo judicial são rupturas institucionais de mesmo tipo

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14 de março de 2020, 8h00

As manifestações programadas para domingo, 15 (se o coronavírus deixar), têm jogado luz a um debate projetado no Brasil com a chamada “República de 46”, quando finalmente as massas foram incorporadas – para além do simulacro inaugurado em 1889 – no sistema eleitoral brasileiro. Trata-se do populismo, fenômeno tradicionalmente alinhado ao interesse acadêmico da Ciência Política e da Sociologia, que, segundo o Populism Team – projeto da Universidade de Brighan Young (EUA) –, vem ganhando força recente no Brasil.

Segundo a pesquisa global, que conta também com pesquisadores alinhados a universidades brasileiras, muito dessa recente escalada, caracterizada, grosso modo, por uma tentativa de aproximação entre demos e poder à margem das instituições[1], é percebida nos recentes discursos do presidente Jair Bolsonaro, sobremodo, em relação às manifestações contra os Poderes Judiciário e Legislativo. Como os extremos de Esquerda e Direita têm mais em comum do que se imagina, olhando para as tais convocações, paradoxalmente, quaisquer semelhanças com as relações institucionais verificadas na Venezuela de Chávez e Maduro não são meras coincidências, enfraquecendo (ou, ao menos tentando enfraquecer) o tão caro componente contramajoritário da democracia.

Diante desse quadro que parece querer agudizar-se, uma das hipóteses – não da pesquisa, mas nossa – dialoga com o simplista imaginário da perspectiva liberal – e sempre atual – de que os problemas de um país têm necessariamente uma raiz econômica. Queremos dizer: diante dessa verdadeira doxa, quando a economia vai mal, a insatisfação popular, em todos os níveis, aumenta. E como o acesso e a manutenção do poder, nas democracias, não se descolam do processo eleitoral, há aí um importante gargalo a quem legitima o próprio poder em cima do voto. Ou seja, é preciso empatia, e o caminho mais curto, nesses casos, é justamente alinhar-se à vontade das maiorias, condição radicalizada em momentos de forte polarização, como o vivido, atualmente, pelo Brasil.

Como se vê, temos nesse caldo atual da brasilidade os ingredientes para novas leituras sobre o populismo, ao menos em relação às chaves explicativas mais tradicionais da academia: severos entraves econômicos – a estreita leitura do mercado, condicionados a reformas estruturantes –, risco de recessão global – impactando duramente essa grande fazenda exportadora de commodities que é o Brasil – e um significativo desgaste institucional envolvendo os últimos governos, incluindo o transitório de Temer e o atual de Bolsonaro – projetando elevados níveis da já mencionada polarização política. Abre-se, assim, a velha caixa do “mito do dado”, imprimindo essências salvadoras (daí o messianismo do populismo) e de danação (em que se vê a também sempre presente ideia do inimigo neste fenômeno).

Desse modo, entre panos de fundo e condições de possibilidade, esse é o contexto do populismo no Brasil: democracia, insatisfação, enfraquecimento institucional e polarizações, moldando uma trama em que a Política aparece categoria centralizadora. Não à toa, talvez justamente por isso o populismo constitua-se como tradicional objeto de interesse, como já dito, da Ciência Política e da Sociologia.

Entretanto, como igualmente pode-se depreender, há um ponto que liga o fenômeno ao Direito. Afinal, entre as aproximações com as massas, os discursos míticos e as saídas extremas e demagógicas (amplamente debatidos pela Sociologia e pela Ciência Política), muito do que hoje pode-se pensar sobre o fenômeno também ressoa na tentativa de se reescrever constituições, moldando o interesse do grande número a uma demanda institucionalmente inviável, mas ainda assim endereçada ao Estado[2]. Daí que não há princípios historicamente sedimentados, não há contramajoritarismo controlando maiorias barulhentas, não há intersubjetividade a superar as concepções mais primitivas de Estado. Há, na verdade, uma espécie de versão política para o velho problema do dualismo metodológico[3] no Direito. Afinal, quando os limites institucionais são deixados de lado em nome do interesse eleitoral, quando a chamada voz das ruas tem mais peso que a intersubjetividade cristalizada no texto constitucional, o populismo não é mais apenas um problema sociológico ou da Ciência Política. Passa a ser o outro lado da moeda do velho ativismo judicial, deslocando os polos de tensão entre Direito e Política.

Claro, o que é o ativismo judicial senão a prestação jurisdicional do Estado a partir de um ato de poder – a escolha de uma postura, uma conduta – desvinculado das amarras institucionais colocadas pelo Direito (leis, constituição, para falar do mínimo)?[4] Assim como nossos representantes eleitos, juízes falam em nome do Estado, como agentes públicos, com compromissos públicos. E, quando, em nome do Estado, justificam seus pronunciamentos a partir de suas próprias convicções políticas (ou ideológicas), morais e econômicas em casos complexos – em especial naqueles sensíveis à sociedade, que geram controvérsias capazes de dividir radicalmente o corpo social em opiniões –, estamos diante de uma ruptura institucional grave.

Até porque, junto com a concepção de judicialização da política (compreendida aqui como a atuação do julgador em reforço e concretização daqueles direitos que, embora abraçados pelo Estado por força constitucional, ainda não foram efetivados), quando estamos diante de uma postura ativista na esfera judicial, abrimos uma discussão sobre as capacidades institucionais do Judiciário. Isto é, sobre os limites de sua atuação. O que se espera do Poder Judiciário? E mais, o que podemos esperar do tribunal que decide por último em nosso País – do STF – diante de situações jurídicas que desafiam o Direito por ausência de regulamentação? Nada muito além das projeções de sentido sobre o que a Constituição brasileira fixou como possibilidade.

Esta resposta, para muitos, em especial para aqueles que caminham no passo do grande descontentamento dirigido ao Poder Legislativo (ou ao Executivo), pode ser insatisfatória. Mas é aqui que se o abre espaço que queremos dar destaque com esta coluna: a liga que une o político populista – na leitura aqui apresentada – e o juiz ativista é só uma: ambos prometem aquilo que não podem institucionalmente dar. Para finalizar: populismo é um problema que se oriunda da Política. O ativismo judicial é gestado especificamente no âmbito do Direito e de sua aplicação. Mas ambos se instrumentalizam da Política para romper com a institucionalidade que é posta pelo Direito.


[1] COPELLI, Giancarlo Montagner. O discurso populista e a tentativa de reescrever a Constituição. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, em 10 de agosto de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-10/diario-classe-discurso-populista-tentativa-reescrever-constituicao.

[2] COPELLI, Giancarlo Montagner. Os impactos do discurso populista no Estado Democrático de Direito (inédito).

[3] Remetemos, aqui, ao verbete projetado para a segunda edição do Dicionário de Hermenêutica, a ser em breve lançada, do professor Lenio Luiz Streck.

[4] A diferença entre ativismo e judicialização da política pode ser aprofundada em: TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

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