Limite penal

A prova penal precisa passar por uma filtragem epistêmica

Autores

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

  • Rachel Herdy

    é professora da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI) no Chile e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

13 de março de 2020, 8h00

As discussões em matéria penal nunca estiveram tão em voga.[1] A bandeira “anticrime” e seu pacote de soluções supostamente milagrosas colocam em xeque o respeito às garantias processuais e fragilizam um modelo de persecução penal já tão vulnerável em vista de sua matriz autoritária.

Paralelamente a estes debates, tão relevantes para a defesa de um processo justo e democrático, outra questão não costuma inquietar a comunidade jurídica nacional tanto quanto deveria.

O processo judicial é instrumento que tem na determinação dos fatos um pressuposto necessário para a imposição das consequências jurídicas previstas em lei. Grande parte de seu desenvolvimento está centrado na atividade probatória. Em vista disso, é motivo de preocupação que a abordagem da disciplina da prova pelo direito se mostre tão alheia aos métodos e técnicas tidos como mais adequados de investigação. O resultado desta equação é uma cultura de decisões intuitivas e sem critérios, na qual os fatos são determinados segundo a contingência do senso comum.

Daí a atualidade da denúncia de William Twining, no sentido de que “os fatos precisam ser levados a sério”.[2] É de se espantar que as reflexões relativas à disciplina probatória tenham recebido tratamento insatisfatório por tanto tempo, afinal, como já destacou Jeremy Bentham, “a arte do processo não é, na realidade, nada além da arte da administração da prova”[3].

Iniciativas como a do Innocence Project revelam que a matéria probatória representa uma ferida aberta nos sistemas de justiça que se pretendem democráticos. Entre as mais de 370 revisões criminais logradas pelo braço norte-americano do projeto, as condenações que lhes deram origem deveram-se, preponderantemente, a reconhecimentos pessoais feitos de forma inadequada, a falsas confissões e ao uso de ciências forenses de questionável validade[4]. Apesar disso, são numerosos os estudos e pesquisas empíricos multidisciplinares que sistematicamente apontam a inaptidão dos métodos e técnicas processuais usualmente adotados para nortear a produção das referidas provas, demonstrando seu potencial de conduzir a resultados insatisfatórios.

Ora, no que tange à determinação dos fatos, respostas estritamente jurídicas não bastam. Vejamos o procedimento do reconhecimento de pessoas, para ficar num exemplo. De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, as condições formais de realização do ato constantes no artigo 226 do CPP são prescindíveis, sendo recorrentemente considerados válidos reconhecimentos mesmo quando apenas uma pessoa é mostrada à vítima/testemunha. Porém, de acordo com os numerosos estudos desenvolvidos pela psicologia cognitiva, a técnica no show up (mostrar apenas um suspeito) deve ser de pronto descartada, pois provoca sugestionamento à memória daquele que precisa reconhecer alguém, o que, por sua vez, eleva o risco de que um inocente seja equivocadamente apontado como culpado[5].

É inegável que este panorama vem gradualmente se modificando. O crescente interesse de processualistas em discussões oriundas da psicologia cognitiva – tais como as relativas às falsas memórias e seus desdobramentos – deve-se a esta mais que oportuna alteração de curso.

É por isso que, aproveitando os termos de Bentham, as novas autoras desta coluna defendem que a arte da administração da prova no contexto jurídico deve ser desenvolvida a partir de um diálogo com outras ciências. O direito não pode se enclausurar num método “estritamente jurídico” de determinação dos fatos. Nossos tribunais não podem continuar a dar de ombros às conquistas de outras áreas de conhecimento, como se, sob a escusa de um livre convencimento, houvesse licença para determinar fatos de modo absolutamente ultrapassado e inaceitável, ergo, irracional.

À semelhança do que ocorre nas investigações fáticas de outras áreas, há limites impostos pela própria racionalidade humana. O tomador de decisão deve ser capaz de justificar seus achados fáticos com base em critérios lógicos. O livre convencimento, neste sentido, não pode funcionar como autorização a "certezas íntimas" em favor das quais o juiz não consegue oferecer justificação. A determinação dos fatos no contexto jurídico não pode desprezar a exigência de boas razões enquanto premissas suportam as conclusões fáticas defendidas pelos juízes – mormente quando essas conclusões impliquem a restrição de um direito tão fundamental como a liberdade.

Em vista disso, apontamos a necessidade de que o tratamento jurídico probatório passe por uma “filtragem epistêmica”. “Filtragem”, pois é preciso separar, não deixar passar, purificar; e “epistêmica”, porque essa filtragem deve ser capaz de ajustar a prova no contexto jurídico à realidade extrajurídica dos fatos – nos limites admitidos pelo processo.

Para isso, é crucial que os procedimentos empregados nessa empreitada sejam considerados adequados sob o ponto de vista epistêmico, sem, é claro, descuidar do inafastável respeito às garantias processuais. Assim, a prova do reconhecimento deve nos aproximar efetivamente dos culpados; a prova testemunhal deve permitir uma adequada reconstrução dos eventos; as provas periciais devem conter informações confiáveis sobre questões que transbordam os conhecimentos técnico-jurídicos dos juízes e jurados; etc.

Como será possível ver nos próximos artigos das novas colunistas, o diálogo do direito com outras áreas de conhecimento permite identificar os erros cometidos na forma pela qual as provas são produzidas, valoradas e utilizadas para fundamentar decisões sobre fatos. O diálogo viabiliza ainda o desenvolvimento de soluções que aproximam as provas da promessa de que determinem fatos confiável e suficientemente. Só assim será possível, em qualquer caso, respeitar a presunção constitucional de inocência e atender à expectativa de que as condenações criminais devam se fundar em provas robustas o suficiente para superar toda e qualquer dúvida razoável.

É justamente nesta perspectiva que as contribuições de Rachel, Janaina e Marcella se somam nesta coluna, a partir de hoje, aos incansáveis esforços de Aury, Alexandre e Jacinto na defesa de um processo penal democrático, inspirado nos valores garantistas e orientado pela presunção de inocência.

Para tanto, antes de finalizar, uma breve apresentação.

As pesquisas de Rachel Herdy voltam-se especificamente para as interfaces entre ciência e direito probatório. Mas o seu interesse vai além da discussão a respeito das contribuições que áreas como a neurociência ou a psicologia podem oferecer aos estudos do raciocínio probatório. Em especial, interessa investigar de que forma as informações oferecidas por experts de toda sorte – das ciências naturais, sociais e humanas às pseudociências – efetivamente são e deveriam ser avaliadas por juízes e jurados. A sua preocupação não se restringe à prova pericial, pois o papel dos experts nas decisões judicial é hoje mais proeminente do que se costuma supor. Informações técnico-científicas ingressam nos processos judiciais por diferentes portas e para esclarecer diferentes categorias de fato. Em suas contribuições a esta coluna, Herdy dedicará especial atenção a práticas de outras tradições e sistemas jurídicos capazes de nos revelar desenhos probatórios distintos e inovadores para o melhor aproveitamento judicial da ciência. Sua esperança é promover uma “Justiça baseada em evidência”, um movimento análogo àquele que na medicina tem sido chamado de “Medicina baseada em evidência”.

Marcella Mascarenhas Nardelli dedica suas pesquisas ao raciocínio probatório e à determinação dos fatos no processo, sob o intuito de identificar e reduzir a influência dos diversos fatores que contribuem para a subjetividade nas decisões tomadas tanto por juízes quanto por jurados. Assumindo como premissa que a configuração do procedimento probatório é fator que diretamente impacta na expectativa de racionalidade das decisões – e minorando, por outro lado, o papel da motivação – propõe que o processo seja estruturado a partir de parâmetros epistêmicos. É com base nesse raciocínio – aliado às contribuições da concepção racionalista da prova – que desconstrói a ideia de que, no Tribunal do Júri, a falta de conhecimentos jurídicos dos cidadãos e a ausência de fundamentação dos veredictos conduzam, invariavelmente, a decisões irracionais e insuscetíveis de controle. Mais recentemente tem buscado contribuições da psicologia cognitiva e investigado perspectivas em nível de inteligência artificial para aprimorar as etapas de investigação e decisão dos fatos – especialmente no que se refere à formulação e teste de hipóteses fáticas – com vistas a reduzir a influência de vieses cognitivos nestas atividades.

Janaina Matida centra seus esforços na necessidade de formulação de protocolos específicos à produção de cada meio de prova, o que só pode ser realizado a partir da análise de dados que outras áreas de conhecimento oferecem. Estudos da psicologia cognitiva, por exemplo, são o ponto de partida para a revisão da forma como são realizados tanto o procedimento do reconhecimento de pessoas, como os relatos que pretendem servir como prova testemunhal no decorrer de um processo penal. De acordo com Matida, os estudiosos da prova devem dividir a atenção que direcionam a standards probatórios e à reta final do processo também com a forma como as provas e elementos informacionais são produzidos. A seu ver, trata-se de um erro de estratégia apostar tantas fichas no desenvolvimento dos chamados standards probatórios. Não que os standards não sejam importantes, mas se se quer trazer mais credibilidade às decisões judiciais, é preciso assumir, de uma vez por todas, que a forma como as provas são produzidas importa na qualidade do resultado que são capazes de oferecer. Seu objetivo é contribuir a desenhos institucionais epistêmicos, isto é, conducentes à determinação dos fatos sensível à realidade extrajurídica.


[1] Adotando a lógica utilizada por Aury Lopes Jr. quando se refere à necessidade de uma “filtragem constitucional” dos dispositivos alinhados ao núcleo inquisitório do Código de Processo Penal de 1941, valemo-nos do termo “filtragem epistêmica” para trazer à tona a necessidade de adequar o procedimento probatório aos parâmetros da epistemologia jurídica.

[2] TWINING, William. Taking Facts Seriously. In: _____. Retinking Evidence: exploratory essays. 2ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 14 e ss.

[3] BENTHAM, Jeremy. A Treatise on Judicial Evidence. Extracted from the manuscripts of Jeremy Bentham. Esq. by M. Dumont. London: Messrs. Baldwin, Cradock, and Joy, Paternoster-Row, 1825, p. 2.

[4] https://www.innocenceproject.org

[5] Isso foi tratado em Matida, Janaina. “Standards de prova: a modéstia necessária a juízes e o abandono da prova por convicção”. In: Arquivos da resistência: ensaios e anais do VII Seminário Nacional do IBADPP, Florianópolis: Tirant lo blanch, 2019.

Autores

  • é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

  • é doutora em Direito Processual pela Uerj e professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

  • é professora de teoria do Direito na UFRJ; doutora em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

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