Improbidade em Debate

Dosimetria e discricionariedade em improbidade

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13 de março de 2020, 11h31

Não é de hoje que a expressão “discricionariedade judicial” tem sido usada. As acepções são as mais diversas, mas frequentemente o termo parece designar o preenchimento de sentido pelos juízes de significantes normativos amplos, abertos, que, frente à imprevisibilidade das situações concretas, autorizariam certa dose de desenvoltura judicial na tarefa de ligação entre texto estático e realidade dinâmica. Um desses locus de utilização da expressão, vale dizer, tem sido a dosimetria de sanções, mais frequentemente na seara criminal, mas também na esfera sancionadora.

Nós, contudo, somos resistentes à aptidão da tal discricionariedade para funcionar como fundamento jurídico válido. Na verdade, o que mais se percebe é que o argumento é usado como ponto intangível de encerramento da discussão, quando, em verdade, deveria onerar a motivação judicial. Em outras palavras, não cremos ser possível que decisão se revista de notas de conveniência ou de oportunidade ou possa se apresentar como “a melhor” para uma hipótese concreta.

Ao contrário, a decisão é, isto sim — ou deveria ser —, o Direito realizado, a norma que, segundo o juízo, é aplicável a determinado caso e que opera num binômio legal/ilegal, sendo que admitir conclusão diversa seria creditar ao processo de tomada de decisão uma avaliação subjetiva, a trazer como perigoso efeito colateral uma abertura no sistema que introduz no Direito, sob a forma de signos presentes no discurso jurídico, fundamentos pessoais incontroláveis.

A discricionariedade seria, então, em nosso sentir, uma ilusória tentativa de desparadoxização do sistema jurídico, simplificando e ocultando complexidades; acontece que essa tentativa, em lugar de desparadoxizar, escancara a dificuldade de um sistema que não mais se autorrefere, mas cujos elementos (julgadores) passam a ser em si autorreferentes. A bem da clareza, a discricionariedade como ponto de chegada mascararia, sob o pretexto de fundamento jurídico, razões extrajurídicas, subjetivismos, arbítrio. A incompletude do sistema se impõe sobre o dogma de sua completude, fazendo surgir encruzilhada na qual, em lugar de buscar elucidar motivos, juízes acabam por recorrer a uma interrupção do procedimento de fundamentação (fundacionismo epistêmico).[1]

O julgador se detém numa verdade ensimesmada, autoevidente, cuja certeza em si careceria de — porque dispensaria — fundamentação adicional. Isto é, a autorreferência se desloca do sistema jurídico para o julgador. Em princípio se poderia dizer que não haveria problema, em razão do fato de que o julgador integra, ele próprio, o sistema jurídico. O problema é que essa autorreferência do julgador invoca não sua condição de parte integrante do sistema, mas sua dimensão subjetiva e pessoal; sua persona, que é, ela sim, parte estranha e externa ao sistema jurídico.

Um entendimento jurisprudencial consolidado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça já bem evidencia o que se está a dizer. A propósito, confiram-se os seguintes trechos, todos do mesmo acórdão[2]:

(…) LEI 8.429/92. REVISÃO DA DOSIMETRIA DAS PENAS. IMPOSSIBILIDADE REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 7/STJ. CUMULAÇÃO DE PENAS. DISCRICIONARIEDADE DO MAGISTRADO. PRECEDENTES. (…)

A jurisprudência desta Corte é assente no sentido de que a cumulação de penalidades na ação de improbidade administrativa é facultativa, devendo o magistrado levar em conta os critérios de razoabilidade e proporcionalidade. (…)

A jurisprudência desta Corte é uníssona no sentido de que a revisão da dosimetria das sanções aplicadas em ações de improbidade administrativa implica reexame do conjunto fático-probatório dos autos, o que esbarra na Súmula 7/STJ, salvo em hipóteses excepcionais, nas quais, da leitura do acórdão recorrido, exsurge a desproporcionalidade entre o ato praticado e as sanções aplicadas (…).

Será possível falar em faculdade de um magistrado na cumulação de sanções? A ser assim, um juiz pode escolher cumular numa hipótese e outro pode escolher não cumular em situação semelhante e ambas as decisões são válidas do ponto de vista do sistema? E se se trata de fato de uma faculdade, ou de uma discricionariedade — do que se infere opção —, como então admitir que, mesmo excepcionalmente, possa haver um controle sobre a proporcionalidade da escolha? Uma escolha é capaz de substituir validamente outra em razão somente de competências funcionais distintas?

Falamos por nós: não encaramos decisões judiciais como escolha dentre possibilidades orientadas segundo um juízo particular de adequação. A escolha não tem compromisso com nada além da própria escolha em si. Bem por isso, fosse escolha, a decisão não admitiria controle, ainda que excepcionalmente, eis que o único apto a sindicar a adequação da escolha consigo mesma seria o autor da escolha em si.

Decisão jurídica, ao contrário, ainda quando manuseie conceitos vagos, tem um compromisso com o sistema, com uma comunidade de princípios, com as demais decisões que integram a história institucional do Direito[3], motivo por que observa diretrizes, não coadunando com liberdade pura e simples. Somente por estar submetida a critérios é que se torna ela controlável.

Retomando o tema sob a perspectiva sancionadora, o artigo 12 da Lei 8.429/1992 especifica que as sanções do artigo 12 “podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato.” O parágrafo único, de sua vez, traz que “na fixação das penas previstas nesta lei o juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente.”

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por seu turno, menciona a necessidade de que as decisões nas searas administrativa e controladora observem necessidade, adequação, proporcionalidade e não imposição de ônus anormais ou excessivos, merecendo destaque o parágrafo 2º do artigo 22, a rezar que “na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.”

Novamente, não ignoramos que a locuções acima são abertas e comportam interpretação — temos que mesmo conceitos fechados comportam, já há muito tendo havido a derrocada do brocardo in claris cessat interpretatio —, o que não quer dizer, contudo, que haja uma delegação legislativa para que o magistrado decida como quiser.

É dizer, esse espaço interpretativo não pode ser ocupado por um simulacro de fundamento jurídico que, a pretexto de fundamentar, nada fundamenta. Ao revés, essa maior margem interpretativa onerará, isto sim, ainda mais o julgador com o dever de explicitar por que motivos determinada apenação se revela mais proporcional; ou as razões por que se cumularam sanções; ou, ainda, que critérios guiaram imposição de multa em tal ou qual patamar.

Convictos das razões acima, aplaudimos o Projeto de Lei 10.887/2018, que buscou introduzir na Lei de Improbidade parâmetros mais transparentes para a dosimetria, seja nos incisos IV a VII do artigo 18, seja no estabelecimento de limites máximo e mínimo para sanções como a de proibição de contratação com o poder público e a de suspensão de direitos políticos, declaradamente fazendo constar de sua justificativa o seguinte:

Perseguindo o desiderato de proporcionalidade entre ato e sanção, consequências jurídicas e ofensividade do ato, o anteprojeto inova criando a possibilidade de que atos ímprobos de baixa ofensividade sejam apenados de forma distinta daqueles atos ofensivos a uma maior gama de valores da administração pública ou que causem prejuízos relevantes. Sem prejuízo do ressarcimento, devido, atos de baixa relevância serão apenados com multa, sem suspensão de direitos políticos ou proibições de relacionamento com o poder público ou desligamento da função ou do cargo público. Existem atos administrativos que são meramente irregulares, jamais atos de improbidade administrativa, e entre aqueles ilícitos caracterizáveis como atos de improbidade existem os que não implicam relevante dano ao erário, embora sejam atos que ofendam a moralidade e às vezes ao patrimônio administrativo. Possuem baixo poder ofensivo – ou baixa relevância, ou baixa significância –, mas são ontologicamente atos de improbidade. Desta maneira, merecem sanções previstas nesta lei, mas de forma proporcional à ofensa perpetrada, e não nos moldes da sanção aplicável aos relevantíssimos atos de improbidade.

Igualmente digna de nota a referência pelo caput do artigo 18 daquela proposição legislativa ao artigo 489 do Código de Processo Civil, que exorta a decisão a uma fundamentação exauriente, minudente, minuciosa, oposta à ideia de que uma única e singela expressão — discricionariedade judicial — seria suficiente a automaticamente legitimar e juridicizar mera escolha.

Sabemos, importante frisar, que nem os mais claros critérios são capazes de combater um voluntarismo deliberado; sem prejuízo, cremos que as mudanças e as propostas mais recentes referenciadas mais acima, quando menos, constrangem epistemologicamente os tomadores de decisão, na medida em que fornecem parâmetros de controle mais capazes de subsidiar a demonstração de que o se apresenta como válido, pode não sê-lo.

[1] ALBERT, Hans. Tratado da razão crítica. Trad. de Idalina Azevedo da Silva et. al. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, p. 27.

[2] AgRg no AREsp 695.500, DJ de 16.9.2015.

[3] NUNES, Dierle et. al. Os precedentes judiciais, o art. 926 do CPC e suas propostas de fundamentação: um diálogo com concepções contrastantes. In: Revista de Processo. Vol. 263/2017. São Paulo: RT, jan./2017, p. 359.

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    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

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    é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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