A morte do CEP e as implicações jurídicas do uso do Plus Code
12 de março de 2020, 7h03
O Tratado de Berna de 1874 compreendeu um grande esforço de padronização dos endereços globais. A criação, naquele momento, da União Postal Universal (UPU) foi um enorme avanço para coordenar políticas e serviços postais internacionais. A localização dos endereços passava a ter um foro para discussão de padronizações. Após a elaboração, em 1929, do Código Postal Universal, foi somente em 1971 que os Códigos de Endereçamento Postal — conhecidos pela sigla CEP, foram criados no Brasil. O país foi dividido em 10 zonas postais, permitindo a identificação da população no território e a remessa de correspondências a lugares antes não identificados.
Os Correios, gestores deste sistema e presentes em quase todos os municípios do país, têm sido sinônimo de integração nacional e foram, por muitos anos, praticamente a única forma de comunicação entre inúmeros migrantes e suas famílias. O monopólio postal era um instituto que servia para criar um amálgama entre a capacidade estatal de gerir uma instituição com essa característica e a necessidade dos cidadãos de fazer documentos, cartas, informações e bens circularem pelo país e alcançarem seu destino.
Todavia, o CEP ainda não é um código universalizado em todo o país. Há diversas zonas sem um CEP atribuído. Isso ocorre nas áreas rurais e nas urbanas. Há desde casos de ex-recenseadores que “criaram” serviço de correio em comunidades até milícias que se apropriaram deste serviço em áreas urbanas. E com a revolução informacional, que inclui a propagação da internet e a popularização dos smartphones, dispensando o transporte físico de inúmeras correspondências, empresas têm buscado fornecer uma solução que permita visualizar e utilizar como endereço a localização de sistemas globais de posicionamento (sendo o mais popular o GPS).
Para tanto, o grande desafio é criar uma maneira de codificar as informações de localização para que as pessoas possam comunicar locais entre si. E o Google se propôs a isso. Sem alarde, após a aquisição da empresa Keyhole em 2004 que culminou na elaboração do Google Earth, principal plataforma de mapeamento do mundo, tem sido desenvolvido, desde 2014, o Plus Code, que nada mais é do que um código postal universal adaptado à realidade algorítmica. Esse sistema já tem sido aceito oficialmente por diferentes governos, como ocorre com Cabo Verde, partes da cidade de Kolkata, na Índia, e o estado de São Paulo. Nesse último caso, o Projeto Rotas Rurais (Rorais) busca identificar em torno de 60 mil quilômetros de estradas rurais do estado que não têm nome ou qualquer outro tipo de identificação.
E para lidar com esse desafio foi celebrado um convênio com o Google meses após o encerramento da Emplasa — órgão que tinha como competência cartografar áreas do estado. Na busca do Estado mínimo para lidar com sérios problemas de mapeamento e de ordenamento do território, como demonstram os verdadeiros tsunamis fluviais ocorridos nesse verão em São Paulo, abre-se mão da cartografia pública em prol de uma rica experiência privada que tem como alicerce uma propriedade intelectual que não é pública. Em outras palavras, atribuímos oficialidade a uma tecnologia sobre a qual não temos a menor ingerência. É como se disséssemos, no início do século 20, que a energia elétrica pertence a um dono que nos licencia para a usarmos sem que tenhamos instrumentos hábeis para reagir caso ele nos desligue da tomada.
E isso gera inúmeros problemas de gestão pública. Como exemplo, em que pese os técnicos estatais manifestarem, nos autos administrativos, preocupação com a interoperabilidade do sistema com outras plataformas, os termos do convênio não fixam esse compromisso enquanto obrigação do Google. No mesmo sentido, não há qualquer menção a integração dos dados à Infraestrutura de Dados Espaciais de São Paulo (IDE-SP), revelando desconexão entre a política pública desenvolvida pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo e as demais secretarias estaduais.
É provável que o Google, em mais uma disrupção genial, consiga aposentar o CEP pelo Plus Code no médio prazo e universalizar o direito a se ter um endereço. Mas isso é completamente diferente do fato de entidades públicas abdicarem do seu dever de criar sistemas próprios de infraestrutura de dados espaciais. Como a hipótese da Administração Pública estadual passar a ter poder decisório na condução dos negócios da Google é intuitivamente remota, ao menos presentemente, se a ideia do estado de São Paulo é ter protagonismo setorial, mostra-se fundamental a criação da primeira agência reguladora de infraestrutura de dados espaciais do Brasil, como já fazem diversos países do mundo desenvolvido e em desenvolvimento. Isso não é burocratizar, é fomentar uma próspera indústria de startups de mapeamento, aerolevantamento, drones e de geoprocessamento de imagens de satélites que se estima bilionária com o progressivo desenvolvimento de carros autônomos. Sob pena de os carros da avenida Paulista, ou melhor, da C8QV+4P São Paulo1 serem dirigidos a partir do Vale do Silício em 2030.
[1] Plus Code da área Trianon-Masp
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