Opinião

Quanto custa um juiz imparcial?

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11 de março de 2020, 6h04

Entre as inovações trazidas pela Lei 13.964/2019, podemos afirmar que a explicitação e fortalecimento do sistema acusatório e a introdução da figura do juiz das garantias são as maiores e mais impactantes mudanças do sistema penal processual brasileiro, ao realizar a vontade constitucional e consolidar ainda mais o Estado Democrático de Direito.

Para o lamento da comunidade acadêmica, os dispositivos 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3ª-E, 3º-F, do Código de Processo Penal foram suspensos liminarmente em decisão monocrática no Supremo Tribunal Federal.

Inúmeros aspectos podem ser discutidos relativamente ao chamado juiz das garantias. Todavia, não trataremos deste tema. Nosso objetivo é realçar um aspecto que não tem sido observado. Trata-se do desejo autoritário de manutenção de um juiz parcial e inquisidor. A insurgência contra o artigo 3º-A ilustra sobejamente este aspecto, vejamos.

A Constituição da República, ao conferir, em seu artigo 129, I, a titularidade da ação penal pública privativamente ao Ministério Público, optou pela adoção do sistema processual penal acusatório, visando garantir a necessária imparcialidade e inércia do juiz para o exercício do seu mister.

Entretanto, ao longo dos anos percebeu-se que a criação de uma estrutura acusatória, mesmo com todas as prerrogativas e atribuições conferidas ao Ministério Público, não foi suficiente para coibir alguns juízes de encarnar a figura do acusador e atuar em diversos momentos de maneira oficiosa.

Para piorar, a legislação processual, mesmo após a reforma processual de 2008, manteve inúmeros dispositivos que violavam o sistema acusatório, autorizando atuação ex officio do juiz em matéria de prova, cautelares, entre outras dimensões do processo. Ademais, permitia inclusive sua atuação como investigador. Este cenário medieval fica bem ilustrado no CPP através da redação do artigo 156.

Em boa hora a Lei 13.964/2019 trouxe nova redação ao artigo 3º-A, que, diga-se de passagem, é uma norma estruturante e principiológica que não está vinculada à criação do chamado juiz das garantias e que, portanto, escapa de todas as impugnações levadas ao STF, razão pela qual jamais poderia ter sido objeto de suspensão liminar. Basta ler o que diz a norma para se chegar a tal conclusão, verbis: "Artigo 3º-A: O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação".

A decisão liminar do ministro relator da ADI 6.299 esclarece

que foram propostas as ADI 6.298, 6.299, 6.300 e 6305, cujo objeto de impugnação são os seguintes dispositivos:

(a) Artigos 3º-A a 3º-F do Código de Processo Penal, na redação concedida pela Lei n. 13.964/2019 (Juiz das garantias e normas correlatas):

(a1) O juiz das garantias, embora formalmente concebido pela lei como norma processual geral, altera materialmente a divisão e a organização de serviços judiciários em nível tal que enseja completa reorganização da justiça criminal do país, de sorte que inafastável considerar que os artigos 3º-A a 3º-F consistem preponderantemente em normas de organização judiciária, sobre as quais o Poder Judiciário tem iniciativa legislativa própria (Artigo 96 da Constituição);

(a2) O juízo das garantias e sua implementação causam impacto financeiro relevante ao Poder Judiciário, especialmente com as necessárias reestruturações e redistribuições de recursos humanos e materiais, bem como com o incremento dos sistemas processuais e das soluções de tecnologia da informação correlatas;

Ora, o artigo 3º-A, que em nada estrutura um juiz de garantias, que se limita a afirmar que o processo terá estrutura acusatória e que fica vedada a iniciativa do juiz (seja ele de garantias ou não) na fase de investigação ou instrução, jamais poderia ser objeto de exame de inconstitucionalidade ao argumento de que “altera materialmente a divisão e a organização de serviços judiciários”. Tampouco é possível afirmar que tal norma gera “impacto financeiro relevante ao Poder Judiciário”.

É preciso reconhecer que se de um lado os argumentos para a suspensão do juiz das garantias são doutrinariamente frágeis, a aplicação da suspensão para a regra do artigo 3º-A é algo que causa ainda maior perplexidade.

Os argumentos declarados nas ações (preservação do juiz natural, violação da competência para organização judiciária etc) não passam de falácias doutrinariamente insustentáveis que na verdade escondem o desejo incontrolável de manter um poder ao juiz que não lhe pertence constitucionalmente, ou seja, o poder de iniciativa investigatória e probatória.

O fato é que o artigo 3º-A revoga tacitamente disposições como a do artigo 156 do CPP, que permite ao juiz promover de ofício diligências investigatórias e probatórias. O que faz o artigo 3º-A é acabar com a figura do juiz-delegado ou do juiz-promotor. O artigo 156 do CPP, que sempre reputamos inconstitucional, a partir da Lei 13.964/2019, foi tacitamente revogado e sua existência moribunda se agarra na decisão monocrática do STF que suspendeu a regra do artigo 3º-A.

A vigência do artigo 3º-A do CPP não custa nada. É de graça e não muda a organização judiciária. Basta que o juiz permaneça no seu lugar de excelência: a inércia.

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