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Limites constitucionais a Narciso: devido processo não é seu espelho

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10 de março de 2020, 8h00

Spacca
Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço

(Caetano Veloso, Sampa)

Em sua célebre canção, Caetano Veloso explorava o estranhamento da sua chegada a São Paulo: "Narciso acha feio o que não é espelho" e, por isso, tende a afastar o que não lhe parece intimamente conhecido. Na dimensão subjetiva de cada indivíduo, tal escolha até pode ser válida desde que não afronte direito alheio, mas na seara estatal decididamente a exclusão do outro é francamente inadmissível.

A Administração Pública tem o dever de trato impessoal e isonômico em face de todos quantos queiram com ela se relacionar. Para superar nuances de cunho estritamente tradicional ou carismático, Max Weber formulara que o exercício do poder deveria se pautar por padrões racionais-legais, cuja legitimidade socialmente construída adviria precisamente da sua impessoalidade e universalidade.

Nosso ordenamento constitucional vigente incorporou o legado weberiano e impôs regras inalienáveis de inclusão da alteridade e, por óbvio, de exercício racional-legal do poder. Para que o Estado não fosse alvo de capturas patrimonialísticas, insulamentos burocráticos ou de compadrios diversos, limites substantivos e processuais foram estabelecidos.

Assim, historicamente foram erigidos pilares de contenção da arbitrariedade, como o são, por exemplo, o concurso público, o sistema de freios e contrapesos, a transparência, a razoabilidade, a proporcionalidade, a segurança jurídica, a razoável duração do processo, a motivação, o trato responsável das contas públicas, as regras de impedimento e suspeição, o contraditório e a ampla defesa, entre outros. Tais normas visam, em última instância, ao controle do conflito de interesses, já que o interesse público não está à disposição voluntariosa do particular que o administra —
circunstancialmente — em nome da sociedade.

A realidade, contudo, desafia a norma e Narcisos institucionais, por vezes, tendem a refutar a objetiva alteridade em processos decisórios que expõem arriscadas teias de dominação tradicional e/ou carismática.

Autoridades que testam os limites e não encontram resistência ao exercício arbitrário do poder impõem, na prática, a primazia do seu interesse pessoal e querem expelir quem tenta minimamente lhes opor alguma fronteira de contenção. Esse é um risco autoritário que a sociedade brasileira não pode assumir.

Somente somos sociedade exatamente porque nós nos aceitamos como
normativamente iguais, a despeito das nossas particularidades e desde que seja também resguardado o direito às nossas diferenças. Nesse sentido, a Sampa de Caetano não é uma república assentada sob a égide do Estado Democrático de Direito, mas apenas o relato poético do indivíduo em sua esfera privada. Quiçá a canção se refira aos rincões
insulados, capturados ou geridos em lógica de compadrio, que tampouco são republicanos.

Ora, no núcleo do nosso esforço civilizatório, está a noção ampliada de devido processo, em seu duplo sentido material e procedimental. As escolhas públicas precisam ser feitas em público e objetivamente devem comprovar a ausência de conflito de interesses. O ônus da prova é de quem administra provisoriamente o interesse da sociedade.

Regras e princípios de contenção da arbitrariedade estatal precisam da nossa permanente vigilância e reclamam nosso agir coletivo de repúdio contra os que tendem a aviltá-los.

A esse respeito, cabe denunciarmos o controverso e um tanto kafkiano
afastamento sem remuneração do Procurador do Ministério Público de Contas de Goiás Fernando Carneiro (cuja descrição detida dos fatos pode ser lida aqui) como um paradigmático caso de risco de subversão do devido processo legal.

Como pode um mandado de segurança impetrado em 1999 contra supostas lesões a direito de candidato objetivamente reprovado no concurso público determinar o afastamento sem remuneração de Procurador do MPC-GO que está há 20 anos em exercício no cargo, se a citação desse último para integrar os autos somente ocorreu em
2014? Qual é a garantia de efetiva ampla defesa e contraditório nesse caso se quinze anos se passaram entre a impetração do remédio mandamental e a citação do principal prejudicado pelas possíveis decisões desse processo?

O que se entende por razoável duração do processo de controle judicial dos atos da Administração Pública? Nesses 15 anos da ausência de citação válida (75% dos atuais 20 anos do exercício do cargo vitalício pelo Procurador Fernando Carneiro), perguntamo-nos se a matéria de fato e de direito não deveria ter sido estabilizada, vez que amparada pelos princípios da segurança jurídica e da razoabilidade/ proporcionalidade?

Apenas a título de comparação, cabe lembrar que o prazo decadencial para negativa de registro de aposentadoria tida como ilícita pelos tribunais de contas é de cinco anos, conforme a tese de repercussão geral 445, assim fixada pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do RE 636553:

Em atenção aos princípios da segurança jurídica e da confiança legítima, os Tribunais de Contas estão sujeitos ao prazo de 5 anos para o julgamento da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma ou pensão, a contar da chegada do processo à respectiva Corte de Contas. (Disponível aqui e aqui).

Reiteramos, por dever de ênfase, vinte anos de duração de um processo
mandamental, dos quais 15 anos sem a participação do principal afetado, na condição de litisconsorte passivo necessário, merecem questionamento sobre seu devido perfazimento e obediência ao artigo 5º, LIV e LV da Constituição.

Por outro lado, perguntamo-nos: a quem interessa a desconstituição provisória (porquanto ainda sujeita a recurso) dos atos de contratação da entidade organizadora do concurso (à época Cespe/UNB) e, por conseguinte, de admissão, posse e vitaliciamento do(s) candidato(s) aprovado(s), sem que a esse(s) fosse resguardado o direito constitucional ao trânsito em julgado a que faz(em) jus?

Como pode amesquinhar provisoriamente a garantia de vitaliciedade do membro do Ministério Público de Contas do Estado de Goiás um processo teoricamente estreito, como esse mandado de segurança em apreço, cuja prova de direito líquido e certo é materialmente frágil e cuja autoridade designada coatora não é competente para solucionar tudo quanto ali pleiteado?

O sistema de freios e contrapesos em Goiás não foi capaz de assegurar efetivo cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, algo assumido dramática e publicamente por meio até mesmo da decretação de estado de calamidade financeira pelo Governador Ronaldo Caiado em 2019.

A mídia tem noticiado fragilidades em relação ao TCE-GO (como relatado aqui e aqui) e ao TJ-GO (como se pode ler aquiaqui e aqui).

Considerando que o Procurador Fernando Carneiro — ao longo das suas duas décadas de atuação no âmbito do TCE-GO — impugnara algumas das supostas irregularidades acima, emerge aqui a importância de serem salvaguardadas as suas garantias constitucionais, evitando-se reais riscos e vulnerabilidades.

A razoável duração, o devido processo legal e a vitaliciedade são garantias que coletivamente nos permitiram conter — ao longo do tempo — pretensões arbitrárias de expulsão de quem, porventura, contrariasse o detentor do poder.

Noutra mirada, Ministério Público é órgão de contrapeso que precisa ter suficiente autonomia para tanto, sob pena de esvaziamento da sua finalidade constitucional.

Tentar expelir — por vias controversas — quem questiona as fragilidades do sistema de freios e contrapesos apenas nos faz lembrar o Narciso de Caetano, que deseja afastar quem não é espelho e, por isso, lhe soa feio.

Aqui há preceitos fundamentais que merecem sedimentação teórica e
jurisprudencial para qualificarmos e ampliarmos nosso regime republicano. O caso do Fernando Carneiro não é só dele, tampouco só do Ministério Público de Contas. Suas nuances exalam risco de quebra de pilares nucleares de todo o nosso pacto constitucional civilizatório.

Trata-se de defendermos o padrão racional-legal weberiano para evitarmos que Narcisos institucionais afastem, sem estrita observância do devido processo e meio a uma longa tramitação kafkiana, quem lhes parece subjetivamente feio. Em Sampa, em Goiás ou onde for, não podemos aceitar tal risco.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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