MP no Debate

A Constituição, que quer os fins, tem que dar os meios: o caso Fernando Carneiro

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9 de março de 2020, 13h42

Legenda

Era 1999, quando o Tribunal de Contas de Goiás (TC-GO) lançou o primeiro concurso pós Constituição Federal de 1988, para o cargo de Procurador do Ministério Público de Contas (MPC) no Estado. Na época, o jovem Fernando Carneiro resolveu concorrer. Dedicado e competente, não seria surpresa a sua aprovação e nem mesmo a sua classificação, em primeiro lugar.

Empossado, começou uma trajetória de muito trabalho, que acabou desagradando, também, a muitos interesses. Não tardou, então, a que o Procurador fosse atingido. E assim, em 2000, juntamente com outros dois aprovados, foi afastado do seu cargo, pela primeira vez, em virtude de ações populares contra o concurso[1].

Começaria aí uma estória mais parecida a um roteiro de filme, só que infelizmente real, e que serve para chamar a atenção a respeito do importante debate que envolve a necessária independência do MPC no país.

Pois bem, após intervenção do STF, PET 2225-GO, o Procurador retornou ao seu cargo, de onde nunca deveria ter saído, e, para o desespero dos inimigos da lei, continuou combativo e atuante, porque era o seu dever.

Passaram-se os anos e, por essas alturas, as ações populares contra o concurso realizado já haviam sido arquivadas, com trânsito em julgado.

 Mas, aí, entra em cena um mandado de segurança (MS), impetrado em 1999, contra o servidor do TC-GO, que presidira a comissão de concurso, e o Cespe/UnB, tendo por objeto a discussão de questões de prova, e, também, a contratação direta desse.

Importante que se diga que a anulação das questões pleiteadas não afetaria a situação do primeiro colocado e, por outro lado, não tornaria o impetrante aprovado, que não passou da primeira fase[2]. Por isso, em 2010, o feito foi extinto.  

Inconformado, o impetrante recorreu ao Tribunal de Justiça de GO, que reformou a sentença, para que novo julgamento fosse proferido.

Já era 2014, quando, só então, Fernando Carneiro seria citado, no referido MS. No mesmo ano, ouviu-se, também, o Presidente do TCE-GO, que, inusitadamente, defendeu a nulidade do concurso, opondo-se ao ato praticado por seu Tribunal, que aprovara a contratação direta do Cespe por meio de Resolução (TCE-GO 400).

Essa questão não passaria despercebida pelo magistrado, ao proferir nova sentença:

A manifestação do TCE-GO é uma 'pérola jurídica': aborda inúmeras questões que não interessam a justiça, pois não foram feitos pedidos na PI. (…) Interessante é que o Conselheiro de Contas que assina a peça (esse é o nome apropriado) é notório desafeto[3] de um dos procuradores de Contas que seriam prejudicados pela concessão da segurança!

No mérito, o juiz sentenciante entendeu ser possível a contratação direta de empresa de notória capacidade técnica para a realização de concurso[4], além de rechaçar o argumento de falta de justificativa do preço.  E, ao final, remarcou que o controle de legalidade de questões de prova não pode implicar em substituição à banca examinadora (RE 632.853- RG/CE), afastando, ainda, outras objeções que pretendiam inovar a ação, e que, processualmente, não poderiam ser aproveitadas.

O MS foi, então, desprovido, mas o impetrante apelou. E, assim, em 2019, após vinte anos, o TJGO mandou anular o certame, inclusive eventuais nomeações[5].  

Na decisão, foram considerados argumentos que não constavam no bojo da inicial, sob a justificativa de que esses não alteraram a causa de pedir, como, por exemplo, o não preenchimento, por alguns candidatos aprovados, dos requisitos específicos exigidos em edital para nomeação, posse e exercício[6], mesmo diante do fato de que o MS foi protocolado em 1999, e a posse só ocorreu no ano 2000, razão pela qual, obviamente, não poderia referir-se a ela.

Curiosamente, a anulação das questões da prova tornou-se irrelevante, deixando de ser analisada, segundo a relatora, "com profundidade tendo em vista o acatamento das teses anteriores que já são hábeis a acarretar a nulidade do concurso em exame". Essas teses seriam, por exemplo: falha formação da comissão organizadora do concurso e a ilegalidade na contratação da banca examinadora (sem licitação).

Mas o pior estava por vir. Fernando Carneiro foi afastado pela segunda vez e SEM remuneração, desconsiderando-se o fato de que, após 20 anos de exercício, tornou-se de forma inconteste, vitalício[7]. Vale mencionar, todavia, que diversos Conselheiros de TCs no país, afastados judicialmente por suspeitas de corrupção, têm seus vencimentos e vínculos preservados.

Foi a vez, então, de Fernando Carneiro opor mandado de segurança, que, por liminar de outro desembargador, o reconduziu ao cargo[8]. Mas, na sequência, sem ser parte, o impetrante do primeiro MS arguiu exceção de incompetência, com êxito. E assim a desembargadora, que anulara o concurso, também foi considerada competente para julgar o MS ajuizado pelo membro do MPC prejudicado.

Com efeito, tão logo recebeu o MS que mantinha o procurador no cargo, a desembargadora revogou a liminar. E assim Fernando Carneiro foi afastado, pela terceira vez.

Um detalhe importante em todo esse imbróglio foi denunciado pela imprensa. É que uma das diversas representações que o procurador afastado propôs levou à determinação de exoneração, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de centenas de servidores, entre os quais o marido e a irmã da eminente desembargadora relatora que o afastou. Segundo o CNJ, as admissões ocorreram sem concurso, sendo, portanto, nulas. Essa matéria se encontra sob a análise do STF (MS 27.673) [9].

Por tudo isso, o caso Fernando Carneiro chama a atenção, notadamente, em relação à frágil situação em que se encontram os membros do MPC no Brasil.

É que a CF afirma, no artigo 130, que se deve aplicar aos membros do MPC brasileiro os mesmos direitos contidos na seção "Do Ministério Públic". No entanto, para o STF, o MPC não é dotado de autonomia funcional, pertencendo aos seus membros, individualmente, apenas, a plena independência de atuação perante os poderes do Estado, a começar pela Corte junto à qual oficiam (ADI 160).

Fernando Carreiro cumpriu à risca esse entendimento. Ele possui   independência funcional, não, institucional. Seria isso suficiente?

O caso relatado demonstra que não.

É chegado o momento, com todas as vênias, de se rever esse entendimento, sob pena de se exigir dos membros do MPC descomunal e desproporcional esforço, isto é, apenas para essa carreira, a Constituição, que quer os fins, não lhe dá os meios.

Aguarda-se, para qualquer momento, o imediato retorno do procurador Fernando Carneiro, em obediência à vitaliciedade constitucional, e em respeito não apenas ao Procurador, mas à sociedade, que merece contar com um MPC pleno e independente, pois disso depende o exercício da fiscalização da lei perante o controle externo.

 


[1] “o curto período em que trabalharam no TCE, descobriram dezenas de irregularidades: gratificações ilegais, aposentadorias fraudadas, compras de carros sem licitação, aumentos de salários e criação de cargos. E ainda mordomias como auxílio-combustível de R$ 800 por mês para os conselheiros e diárias de viagem com valores acima do que recebem os ministros do Tribunal de Contas da União” (https://istoe.com.br/42345_ARVORE+SALARIAL/).

[2] O impetrante (servidor do TCE, admitido sem concurso público), é, segundo o juiz da causa, filho do então Conselheiro Presidente: “Um detalhe chamou muito a atenção deste julgador: quem assinou a dispensa de licitação foi o então Conselheiro Eurico Barbosa dos Santos, sendo que esta demanda foi apresentada tendo um dos autores Eurico Barbosa dos Santos FILHO. Poder-se-ia imaginar o seguinte cenário: em um concurso tão concorrido, o pai realiza um ato administrativo que não atenderia os requisitos legais, para depois o filho, não aprovado nele, ter uma nulidade de algibeira (guardada para ocasião própria) para alegar posteriormente, abrindo nova oportunidade de aprovação, em novo concurso, em caso de reconhecimento da nulidade”.

[3] “Para proteger Marconi Perillo, Conselheiro do TCE GO teria retaliado e causado embaraços à atuação do Ministério Público de Contas”. (http://www.nosopinando.com.br/para-proteger-marconi-perillo-conselheiro-do-tce-go-teria-retaliado-e-causado-embaracos-atuacao-do-ministerio-publico-de-contas/).

[4] Nesse sentido, ver Súmula 287, do TCU "É lícita a contratação de serviço de promoção de concurso público por meio de dispensa de licitação, com fulcro no art. 24, inciso XIII, da Lei 8.666/1993, desde que sejam observados todos os requisitos previstos no referido dispositivo e demonstrado o nexo efetivo desse objeto com a natureza da instituição a ser contratada, além de comprovada a compatibilidade com os preços de mercado."

[5] APELAÇÃO CÍVEL EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 213925- 37.1999.8.09.0051

[6] No caso de Fernando Carneiro, por ausência de documento exigido no edital de regência, qual seja, comprovação de sua inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil. Os demais aprovados no mesmo certame, após, foram empossados em outros concursos e pediram para serem exonerados. Mesmo assim, o acórdão sobre eles se referiu, alegando ausência de requisitos para a nomeação, à época. Isso quer dizer que, anulado o concurso para todos, caso tenha sido utilizado como títulos em prova diversa, por exemplo, a decisão poderá trazer-lhes, também, prejuízos.

[7] Para o STF, nessas hipóteses, o afastamento das funções, com perda da remuneração, só se justifica após o trânsito em julgado. Atitude diversa criaria “uma situação de insegurança jurídica, uma vez que não há prazo certo, ou sequer mensurável, para o fim do processo” (MS 30943-STF).

[8] MS 5606169.76.2019.08.09.000

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