Embargos Culturais

A Operação Valquíria e as relações equivocadas entre direito, política e história

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

8 de março de 2020, 8h00

Spacca

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A Operação Valquíria (1944) foi uma tentativa de assassinato de Hitler. Revelou uma crescente oposição militar chefe do nazismo, já perceptível em 1938, quando setores mais aristocráticos do exército alemão criticaram a política externa expansiva e o permanente problema da questão judaica. A aristocracia do exército discutia o tema dos judeus, na convicção de que judeus assimilados eram efetivamente alemães, especialmente porque se viam como tais. É um tema recorrente na história da cultura: a posição de judeus assimilados no contexto de uma cultura da qual participavam, especialmente em termos linguísticos. É tema para quem se interessa por Kafka, Marx, Freud, Benjamin, Adorno e tantos outros.

Hitler neutralizou oposição militar no contexto das vitórias que obteve em 1940, granjeando a simpatia de muitos generais, para quem distribuiu patentes de marechal de campo, além de outras condecorações militares. Como resultado desse ensaio de aliança, o partido nazista alcançou o apoio e a lealdade de muitos oficiais, inclusive de alguns que conspiravam contra Hitler.

A Operação Valquíria foi liderada pelo Coronel Claus Schenck Graf von Stauffenberg. Reconhecido como um militar disciplinado e bem preparado, ferido na Tunísia, no início da guerra, quando, na explosão de um carro, perdeu o olho direito, o braço esquerdo e três dedos da mão direita. Era um herói.  O movimento que objetivava assassinar Hitler também foi liderado por outro militar, Henning von Tresckow. Esses militares se aproximaram de um outro grupo de opositores de Hitler, que se reconheciam como membros de uma confraria, o Círculo de Kreisau. Em geral, eram oficiais conservadores, mais preocupados com o que fazer com a Alemanha após o fim da guerra do que com as medidas práticas para a destruição do líder do nazismo. De algum modo percebiam que iriam perder a guerra.

O Coronel von Stauffenberg reuniu o maior número de subalternos que pode. No dia 20 de julho de 1944 deixou uma maleta com explosivos numa sala de reuniões, em encontro presidido por Hitler, para quem pediu licença para deixar o recinto, alegando que deveria telefonar urgentemente. A bomba explodiu, os ferimentos de Hitler foram meramente superficiais, ainda que quatro colaboradores próximos do “Führer” tenham morrido. O conspirador foi preso e executado no dia seguinte. Pesquisas divulgadas pelos nazistas insistiram que a população alemã estava ensandecida com o ocorrido, que desejava vingança e que havia necessidade de se prender e processar os demais líderes da conjuração. Houve várias e efusivas manifestações populares de apoio a Hitler.

Os conspiradores foram presos e julgados pelo por um tribunal popular. O obtuso juiz que conduziu as sessões do tribunal focou no crime, não permitindo que os acusados fizessem declarações, obstaculizando que as razões justificadoras da conspiração fossem apresentadas. As motivações foram abafadas, o que estava em discussão era a tentativa de assassinato de Hitler, como um ato de traição. Hitler pretendia um julgamento sensacionalista, com ampla cobertura jornalística, objetivando um máximo de impacto no povo alemão. Os conspiradores, no entanto, eram militares, o que exigia uma corte marcial. Esta se reuniu e imediatamente expulsou do Exército os militares envolvidos no atentado, justificando-se a competência do tribunal popular, cuja jurisdição era civil.

Por ordens de Goebbels (ministro da propaganda) o julgamento foi filmado; três microfones foram colocados junto ao juiz que, não acostumado com o aparelho, gritava com estridência, o que ampliou o histrionismo de sua pessoa. O magistrado teve vários acessos de raiva ao longo das sessões. Ao se aproximar para ser interrogado, Erwin von Witzleben fez a saudação nazista. O juiz reagiu, dizendo que se estivesse no lugar do acusado não faria a saudação alemã. Esta, afirmou, somente poderia ser usada por pessoas de honra; gritando, disse a Witzleben que este deveria se sentir envergonhado do gesto.

A acusação consistia, objetivamente, na culpa por um atentado reputado como covarde, para assassinar um líder político, depor o regime nacional-socialista, usurpar o poder e acabar com a guerra por intermédio de uma negociação indigna para o povo alemão. O juiz, que julgava atuando como acusador também, vociferou que estava em face da maior traição já cometida contra o povo alemão. Discutiu com cada um dos acusados, condenando a todos, com base nos depoimentos tomados pela polícia do regime. Conseguiu que um dos acusados confessasse que mentira para a polícia, chamando-o de “hipócrita”, aos gritos. Os réus foram executados no mesmo dia da proclamação da sentença de condenação, ao longo da própria audiência; foram enforcados com fios bem finos, de cordas de pianos, e em seguida foram pendurados em ganchos de açougue.

Percebia-se um Judiciário absolutamente dependente do poder, durante um estado de exceção. O processo penal tornara-se uma farsa. Todo o procedimento não passava de uma encenação. Todos os protagonistas da pantomina sabiam onde tudo terminaria.

O julgamento dos envolvidos na Operação Valquíria é o caso mais emblemático de toda a atuação do tribunal do povo alemão, ligado ao nazismo, de triste memória. O papel dos acusados e executados foi realçado no contexto da reconstrução alemã, especialmente na década de 1970, quando se discutiu o armamento da Alemanha, especialmente no contexto da Organização do Tratado do Atlântico Norte-OTAN.

Havia necessidade de se encontrar elementos indicativos de honra, por parte do exército alemão, situação resolvida com a reabilitação dos oficiais acusados de tentarem o assassinato de Hitler. De fato, cada época constrói sua própria história e tece suas próprias narrativas. A relação entre direito e história é, nesse sentido, uma relação equivocada, mediada pela política que faz heróis vilões, e que faz de vilões heróis, na medida em que vilões ou heróis detenham o poder, ou se estão na oposição, se é que há diferenças de escala entre esses extremos.

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