Opinião

Brasil deve sua independência a uma mulher: Maria Leopoldina

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8 de março de 2020, 9h52

Spacca
No Brasil, a política foi historicamente dominada por homens. No entanto, nossa história é feita de mulheres que influíram de forma determinante nos rumos do país. O Brasil, em larga medida, deve a uma mulher sua origem como nação independente de Portugal.

Nascida em uma das mais antigas dinastias da velha Europa, a austríaca, Maria Leopoldina viu-se transplantada para o Brasil, que, a seus olhos encantados, parecia um paraíso tropical, exótico e envolvente. Foi paixão à primeira vista. Adaptou-se perfeitamente ao ambiente, às pessoas e à realidade brasileira. A bem dizer, abrasileirou-se.

No casamento com o príncipe dom Pedro 1º, ninguém saberá verdadeiramente dizer se foi ou não feliz. A história qualificou-a como ingênua e traída. No entanto, seus biógrafos mostram que ela foi, além de esposa, mãe, princesa e imperatriz, uma mente com grande influência sobre as decisões de dom Pedro 1º e sobre os rumos do Brasil pré e pós independência.

Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda Beatriz de Habsburgo Lorena, arquiduquesa da Áustria, dominava muitos idiomas (alemão, francês, italiano, latim, português e inglês). Tocava piano com perfeição e era pintora. Em sua comitiva ao desembarcar no Brasil, havia médicos, botânicos, pintores e músicos.

Após partos sucessivos, deu à luz dom Pedro 2º. A educação recebida na corte austríaca e o atavismo de muitas gerações de arquiduquesas educadas para o sacrifício de paixões pessoais no altar dos interesses de sua dinastia a prepararam para o grande papel que desempenhou.

Mas não quero me ater neste texto a sua vida privada e aos dissabores que sofreu no casamento. Sobre isso muito se tem escrito (nem sempre com objetividade histórica) e muito se tem apresentado em produções cinematográficas.

Também não vou tratar de outro aspecto muito explorado pelos analistas de sua personalidade e de sua trajetória existencial: o choque cultural sofrido por uma princesa que, educada no Palácio Imperial de Hofburg, se viu subitamente residindo no Rio de Janeiro de seu tempo.

Quero comentar sobre a dimensão política e diplomática de Leopoldina e sobre o muito que o Brasil lhe deve. Para isso, há de se compreender sua época. Ela viveu em uma era de transição entre o Antigo Regime, que a Revolução Francesa abalara profundamente, e os tempos novos das monarquias constitucionais.

Os períodos de transição parecem muito claros para quem nasce muito tempo depois deles. Para seus contemporâneos, afiguravam-se nebulosos e cheios de incerteza. São como o cinza, que, ao lado do negro, parece branco, e, ao lado do branco, parece negro.

A história humana, como se sabe, é um tecido com continuidades e rupturas. Nos momentos de transição se manifestam os grandes talentos políticos e as personalidades com visão de futuro e coragem para tomar atitudes insólitas, muitas vezes incompreensíveis para seus contemporâneos.

D. Leopoldina representava a mais tradicional dinastia europeia. Era filha de Francisco 1º da Áustria, um dos instituidores da Santa Aliança, que tinha por objetivo combater a influência de Napoleão Bonaparte e do ideário da Revolução Francesa na Europa, reforçando os princípios da velha ordem absolutista.

Leopoldina compreendia, entretanto, que os tempos eram outros e que não seria simples debelar o tufão que, por quase 30 anos, varrera a Europa.

Depois do retorno de dom João 6º a Portugal, em 1821, o Brasil se encontrava em situação muito delicada. As cortes de Lisboa, que se haviam assenhoreado da pessoa do rei, impunham a recolonização do Brasil, o que não podia ser aceito.

Uma ruptura era inevitável, sem dúvida, mas poderia também ser fatal. Isso porque, não fosse muito bem conduzida, o Brasil poderia ter o mesmo destino da América espanhola, esfacelando-se ao sabor de interesses caudilhescos de oligarquias provincianas.

Naquelas circunstâncias, pensar em República, como já aventavam alguns, seria arriscado demais. Era a divisão. Basta lembrar que o Brasil sozinho — então parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves— era, na época, territorialmente três vezes maior que os Estados Unidos da América. Para ir do Rio a Cuiabá, só descendo o rio da Prata.

Após o Dia do Fico (9 de janeiro de 1822), no qual o príncipe dom Pedro se recusa a cumprir as ordens de Lisboa para retornar a Portugal, o Brasil passa a fervilhar.

Em agosto de 1822, já estava claro que o Brasil poderia ser rebaixado de Reino Unido a colônia, ou, então, ser dividido, em razão dos movimentos das elites locais.

Surge em São Paulo uma guerra civil separatista. Em 13 de agosto, dom Pedro passa a Leopoldina o poder, nomeando-a chefe do Conselho de Estado e princesa regente interina do Brasil. Ele vai à província de São Paulo evitar a insurreição.

Chegam notícias de que 7.200 homens do Exército português seriam enviados ao Brasil para forçar o retorno imediato do príncipe regente e da princesa Leopoldina a Portugal. A princesa não titubeia. Como chefe interina do governo, convoca, na manhã de 2 de setembro, o Conselho de Estado e assina decreto declarando o Brasil separado de Portugal. D. Leopoldina fez valer a sua imensa influência política sobre o marido.

Colocou-se corajosamente à frente do movimento independentista. Sem dúvidas, uma ruptura; mas uma ruptura com nota de continuidade. Assegurou a unidade do Brasil e a conservação do regime monárquico, mantendo a linha da sucessão dinástica. Na ocasião, a princesa vienense aliou-se politicamente a José Bonifácio, que vivera em Paris durante o período do terror revolucionário e sabia muito bem os prejuízos que podiam decorrer de uma revolução sangrenta.

No mesmo dia 2 de setembro, o mensageiro Paulo Bregaro, portando as cartas de D. Leopoldina e de José Bonifácio, foi às pressas ter com dom Pedro às margens plácidas do Ipiranga. Da leitura dessas cartas, seguiu-se o brado retumbante que nosso hino celebra. Ato meramente declaratório.

O decreto, ato formal, foi de Leopoldina, cinco dias antes. O curioso é que a Constituição do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, de 5 de outubro de 1822, nasceu anacrônica. Nela figurava o Brasil, cuja independência fora declarada cerca de 30 dias antes.

Na organização do novo Império, também foi eminente o papel de Leopoldina. Nossa primeira bandeira foi desenhada por ela. Misturou o verde da família Bragança com o amarelo-ouro Habsburgo. Atuou diplomaticamente em prol do reconhecimento da independência do Brasil, mobilizando seus contatos e suas relações familiares na Europa. Foi uma grande incentivadora do trabalho livre em nosso país.

Por seus atos políticos, obteve prestígio entre as mulheres brasileiras de seu tempo. Em 13 de outubro de 1822, 55 mulheres paulistas assinaram uma carta em que manifestavam respeito, amor e gratidão à imperatriz.

D. Leopoldina afirmou a Pedro 1º, em comunicação acerca dessas manifestações, que elas eram "prova de que mulheres têm mais ânimo e são mais aderentes à boa causa", como registra o historiador Paulo Rezzutti.

Com essas palavras, Leopoldina expôs sua visão avançada acerca do papel da mulher na política. Em 6 de abril de 1823, escreveu uma carta a seu pai em que esclarecia as razões que levaram ao rompimento do Brasil com Portugal.

Pedia ao pai, se não o apoio, ao menos sua neutralidade. Também declarava lealdade ao povo brasileiro. Esse gesto representou uma contundente defesa do projeto de Estado monárquico-constitucional então em curso no país.

A Constituição imperial, de 25 de março de 1824, manteve-se na linha da ruptura com continuidade. Inovou, acrescentando um quarto Poder, o Moderador, à tríplice repartição de Montesquieu.

Sou propenso a acreditar que esse quarto Poder, que assegurou um longo período de estabilidade institucional sob dom Pedro 2º, deveu-se à influência da imperatriz, que sabia conciliar modernidade com tradição, ruptura com continuidade.

Era uma mulher à frente de seu tempo. Não por outra razão, José Bonifácio, após ler carta enviada por D. Leopoldina a Pedro 1º depois da assinatura do decreto de independência, impressionou-se com tamanha firmeza e erudição da princesa.

Bonifácio confidenciou a um amigo: "Ela deveria ser Ele…", como quem diz, "Ela deveria comandar o Brasil". A todas as mulheres e à mulher que decretou a independência do Brasil, minhas sinceras homenagens pelo dia de hoje.

*texto originalmente publicado na Folha de S.Paulo

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