Observatório Constitucional

A jurisdição constitucional diante dos assuntos técnicos

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7 de março de 2020, 14h21

Spacca
Todos que acompanham os trabalhos do Supremo Tribunal Federal sabem que os casos que lá são examinados e julgados apresentam características e dimensões diferentes, embora sejam quase sempre reunidos e considerados pertencentes ao grupo monolítico dos "processos constitucionais". Tais diferenças, entretanto, deveriam sugerir posturas jurisdicionais também distintas e talvez posicionamentos diversos no que refere ao próprio papel do Tribunal.

Boa parte das teorias constitucionais que discutem as funções contra-majoritárias desse tipo de Tribunal costumam se basear em processos que levantam temas de "moralidade política". Esses são, em sua maioria, os famosos "casos difíceis" dos quais Dworkin ou Hart trataram em suas formulações.

São processos que, na falta de paradigmas normativos mais objetivos (seja pela falta de regra regulando o caso ou na presença da "textura aberta do direito"), forçam o Tribunal a realizar raciocínios hermenêuticos baseados em princípios (ou em espaços discricionários)e que destacam com mais clareza a dimensão política da jurisdição constitucional. Assuntos como o "ativismo judicial", a "separação de poderes" ou mesmo os limites/interações entre o direito e a moral encontram a sua sede discursiva nesse tipo de processo.

Há um problema, entretanto, quando o Tribunal, inflamado por doutrinas constitucionais “emancipatórias”, aplica o modo de proceder aberto — por assim dizer —, típico dos "casos difíceis", a assuntos e processos que não apresentam a mesma natureza.

Além dos "casos difíceis" — que certamente atraem o imaginário dos constitucionalistas —, o STF também examina outros tipos de casos. Há um tipo de processo, por exemplo, que diminui o espaço hermenêutico possível, exigindo do Tribunal um maior aprofundamento de assuntos econômicos, políticos, sociais ou científico. Tais assuntos servem para reforçar a boa decisão jurídico-constitucional que o STF deverá tomar, de forma a mitigar eventuais consequências ruins ou inesperadas. É importante destacar que esses casos são jurídicos e pretendem, portanto, responder a perguntas genuinamente jurídicas ou constitucionais, e o aprofundamento técnico serve como forma de a Corte se assenhorar das principais dimensões do julgamento.

Questões tributárias, por exemplo, têm geralmente essa natureza e, assim, impactos econômicos para contribuintes, repercussão financeira para o erário e aspectos contábeis da questão auxiliam os Ministros a desenhar o quadro maior do problema, de forma a reduzir consequências indesejadas. Talvez boa parte dos processos para os quais foram convocadas audiências públicas possam se enquadrar nesse grupo: candidaturas avulsas (RE nº 1238853), conflitos federativos (ACO nº 3233), constitucionalidade do Código Florestal (ADI nº 4901 e ADC nº 42), importação de pneus usados (ADPF nº 101), financiamento de campanhas eleitorais (ADI nº 4650), etc.

Entretanto, nesse tipo de processo, o STF está ainda diante de uma questão jurídico-constitucional, com implicações principiológicas, que remete necessariamente a uma interpretação de uma cláusula indeterminada, de um conceito multisignificativo e até, eventualmente, pode sugerir uma decisão parcial, do tipo “salomônica”.

Porém, há um terceiro tipo de processo que chega ao Tribunal. São os casos eminentemente técnicos. São aqueles que submetem ao STF uma pergunta para a qual os seus membros decididamente não têm o expertise necessário para responder.

São aqueles casos para os quais a convocação de audiência pública, por exemplo, provavelmente traria pouquíssima contribuição efetiva, além de, é claro, revelar que se trata de tema efetivamente técnico e com complexidade para além do Direito, longe do alcance, portanto, da plena compreensão dos Ministros.

Há uns anos, por exemplo, o STF examinou em seu plenário o RE nº 627.189 (inclusive com a promoção de audiência pública em março de 2013 e julgado em 08.06.2016) que levantava a tese de que campos eletromagnéticos em linhas de transmissão de energia elétrica causavam câncer. Também o Tribunal examinou — embora sob um ângulo diferente — a alegação de toxicidade no uso do amianto crisotila (ADI nº 3937, julgado em 24.08.2017). Mais recentemente o Tribunal pautou para julgamento a ADI nº 5553 cuja questão principal se convolou na pergunta de se saber se os defensivos agrícolas faziam mal à saúde e ao meio ambiente.

Houve um tempo, antes da promulgação da Lei nº 9.868, de 10.11.1999, que o Tribunal assumia com mais tranquilidade que havia temas que fugiam à sua área de domínio. Basta lembrar — para aqueles que acompanharam o julgamento na época — o desconforto dos Ministros quando examinaram as ADIs nº 1840, ADI 1.668 e 1491, entre 1997 e 1998, no que se refere à compreensão técnica dos serviços de telecomunicações.

Outro bom exemplo foi o julgamento da ADI nº 2.468 (também as ADI snºs 2470 e 2473) concluído em 29.06.2001 quando o Tribunal examinou a constitucionalidade da MP nº 2.152-2 (a MP do Apagão) sem ter a mínima ideia se as medidas lá propostas efetivamente dariam conta da crise de energia elétrica por que passava o Brasil.

O que fazer nesses casos? Substituir-se à autoridade técnica da área e emitir juízo conclusivo sobre o mérito do assunto? Avaliar apenas os indícios gerais para se saber se a autoridade técnica na área procedeu de maneira adequada em sua decisão de permitir ou não a medida?

Essas são questões importantes, uma vez que, no jogo político ou ideológico, também não raramente os assuntos técnicos são indevidamente transvertidos em questões principiológicas, o que gera claramente confusão e desinformação, criando o contexto perfeito para uma má decisão.

Essa problemática é sutilmente diferente da questão proposta doutrinariamente acerca da importância de o STF apurar questões fáticas no controle de constitucionalidade[1] ou a possibilidade de se rever fatos e prognoses adotadas pelo legislador quando discutiu e aprovou determinado ato normativo[2]. Talvez essa questão melhor se enquadre no segundo tipo de casos constitucionais apresentado acima nesse texto, quando o Tribunal, embora investigando tais fatos e dados da realidade, ainda tem diante de si um questionamento jurídico-constitucional a responder.

De qualquer forma, para ambos os tipos de casos, deveria se aplicar o disposto no art. 9º, § 1º, da Lei nº 9.868, de 10.10.1999, embora por razões diferentes: no caso das prognoses, o perito ou a audiência pública auxiliará o Tribunal. No outro caso, o perito, em ambiente científico, estará, ele próprio, respondendo à questão central do processo constitucional.

 É importante destacar que alegar que determinadas questões técnicas não encontram também consenso na comunidade científica e, por isso, haveria aí o espaço de decisão constitucional, não ajuda, uma vez que o STF não tem vocação ou competência para escolher entre duas posições científicas ou mediar um debate com essas características.

 Há, no entanto, tentativas de “ideologizar” esse tipo de processo e, mais recentemente, o princípio da precaução vem sendo inadequadamente instrumentalizado para fragilizar a autoridade técnica dos órgãos responsáveis por avaliações científicas em prol da confusão, do alarmismo e do tumulto em benefício de bandeiras políticas[3].

Nesses casos, é comum os proponentes do debate com esse viés inundar o Tribunal com todo o tipo de informações e laudos pouco confiáveis, fontes duvidosas, trabalhos questionáveis e levantamento de dados que não seguem metodologias honestas. A empreitada pode ser realmente perigosa já que o Tribunal sequer teria condições técnicas para identificar o que são narrativas lendárias e o que é efetivamente e cientificamente provado.

Retorno à ADI nº 5553, o mais recente exemplo dessa questão. Levanta-se a inconstitucionalidade na desoneração da cadeia produtiva da agricultura com base em uma premissa.

A premissa é a alegação de que produtos fitossanitários causam câncer e agridem o meio ambiente. Não há dúvida de que os defensivos são produtos que exigem cuidado de manuseio e aplicação e demandam análise de sua toxicidade, tal como os remédios em relação à saúde do indivíduo.

Ocorre que o Brasil tem um dos mais consistentes sistemas de controle e análise desses produtos, com a Anvisa realizando a avaliação toxicológica com base nas melhores metodologias reconhecidas no mundo, o Ibama investigando a segurança ambiental e seu potencial de periculosidade e o Ministério da Agricultura atestando a eficiência agronômica do produto.

Pela legislação aplicável (Lei nº 7802/89), os órgãos técnicos não podem aprovar para comercialização produtos que sejam mais tóxicos do que os que já existam no mercado brasileiro e, obviamente, são proibidos de registrar defensivos que sejam teratogênicos, carcinogênicos ou mutagênicos.

Partindo do pressuposto de que o STF não tem condições técnicas de questionar as decisões de fundo desses órgãos federais, a questão constitucional não pode ser “defensivos agrícolas causam câncer?”, mas sim “o sistema de controle e registro de defensivos agrícolas no Brasil se estrutura e funciona com base nas melhores técnicas e metodologias para proteger a população e o meio ambiente?”.

A discussão, assim, mudaria integralmente de contorno e a alegação inicial passaria a exigir outro tipo de provas, argumentos e informações. O controle jurisdicional das políticas públicas não pode ser de mérito, mas se ater à análise formal e aos sinais indicativos da correção dos parâmetros utilizados pela Administração Pública.

Há um perigo subjacente quando temas, cujas balizas técnicas estão bem alicerçadas, são submetidos a dúvidas jurídico-hermenêuticas, como se, de fato, fossem discordâncias de interpretação. O STF precisa estar atento a essas tentativas de instrumentalização de sua função precípua, lembrando do que afirmado na ementa da ADC 42: “A Jurisdição Constitucional encontra óbice nos limites da capacidade institucional dos seus juízes, notadamente no âmbito das políticas públicas. (…) A capacidade institucional, ausente em um cenário de incerteza, impõe auto-contenção do Judiciário”.


[1] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional, 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, pág. 1158;

[2] MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: hermenêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativas pelo órgão judicial. In: Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2004;

[3] Felizmente, no RE nº 627.189, o STF soube bem apontar os limites de sua aplicação no tema do controle jurisdicional das políticas públicas: “2. O princípio da precaução é um critério de gestão de risco a ser aplicado sempre que existirem incertezas científicas sobre a possibilidade de um produto, evento ou serviço desequilibrar o meio ambiente ou atingir a saúde dos cidadãos, o que exige que o estado analise os riscos, avalie os custos das medidas de prevenção e, ao final, execute as ações necessárias, as quais serão decorrentes de decisões universais, não discriminatórias, motivadas, coerentes e proporcionais.”

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