Opinião

Após 30 anos, CDC perde protagonismo, e isso é bom para o consumidor

Autor

7 de março de 2020, 6h02

Em setembro de 2020, o Código de Defesa do Consumidor terá completado 30 anos. Já é um adulto razoavelmente maduro, repleto de virtudes, idiossincrasias e falhas. Como resultado da criatividade humana, ele não poderia ser diferente. Sendo assim, sectarismos não servem para que possamos olhá-lo com uma perspectiva minimamente isenta.

Aliás, para uma observação justa, devemos aceitar que CDC é um produto de sua época, previsto na Constituição de 1988 (fruto da transição entre o regime autoritário e a democracia). Se voltássemos no tempo, retornando para setembro de 1990, encontraríamos um país bem diferente do atual. Fernando Collor de Mello havia assumido a Presidência da República em março daquele ano. A economia era bem fechada, tínhamos problemas graves com a hiperinflação, déficit fiscal, estagnação industrial e por aí vai. Em geral, havia um nível de competição no mercado bem inferior ao que vemos hoje.

Se atualmente os consumidores encontram, por exemplo, uma infinidade de produtos diferentes nas prateleiras dos supermercados, naquela época a coisa era bem diferente. Tínhamos menos opções. Vale lembrar, dentre outras questões, que havia barreiras proibitivas para a importações, como a famigerada Lei de Informática, que prejudicou o desenvolvimento de softwares. Quem viveu na época, também deve se lembrar quando Collor de Mello disse que os carros brasileiros eram umas carroças. Contávamos, grosso modo, com Volkswagen, Ford, GM e Fiat no Brasil. Atualmente, além dessas, há uma profusão de novas montadoras e importadores de veículos.

Diante de uma perspectiva com oferta reduzida e competição limitada, não era absurda a ideia de intervenção estatal. Genericamente, a balança de forças estava bem desequilibrada, e os consumidores estavam perdendo de goleada. O Brasil praticava ferozmente uma espécie de patrimonialismo-mercantilista, como dizia Roberto Campos.

Esse sistema econômico, longe de um capitalismo competitivo, produzia fenômenos perversos para os consumidores. Dentre eles, a absoluta assimetria informacional. Naquela época, era muito difícil ter informações, e.g., sobre preços. Além disso, o modelo prejudicava o desenvolvimento do país em relação ao mundo. Após 30 anos, muita coisa mudou.

Nos anos 1990, consumidores precisavam ir de loja em loja para garimpar ofertas. Sei que é difícil pensar isso hoje em dia, pois temos a internet 24 horas por dia em nossas mãos, mas não havia internet nos celulares. Aliás, os celulares só chegaram, de forma muito incipiente, para os mais ricos, em 30 de dezembro de 1990. A grande rede, por sua vez, só se tornou disponível para computadores, por acesso discado, nos idos de 1996.

Atualmente, diante da evolução tecnológica, o consumidor faz uma cotação de preços no celular em uma questão de segundos. Mais, ainda. Ele tem acesso a comentários detalhados sobre cada produto ou serviço, com elogios e reclamações. Ocorreu, portanto, um “empoderamento” monumental dos consumidores, diante do acesso à informação.

Mas, nesses trinta anos, o CDC continua o mesmo, com pouquíssimas alterações. Deveríamos mudá-lo? Acho que não. As empresas já apreenderam a lidar com ele. Uma nova lei, ou mudanças profundas no código, só iriam aumentar os custos de transação. A solução é outra, e está nas mãos da nossa academia e na pena –– ou teclados –– de nossos juízes.

A interpretação de toda a legislação precisa ser temperada com a realidade do momento. O desenvolvimento econômico e tecnológico deve ser levado em consideração, pelos operadores do Direito. Dentre outras questões, atualmente, seria ingênuo, por exemplo, presumir automaticamente a hipossuficiência do consumidor, ou, ainda, desconsiderar a personalidade jurídica sem levar em consideração os precedentes do Superior Tribunal de Justiça e a Lei da Liberdade Econômica. É fundamental, assim, a análise de cada caso. Até porque, haverá situações em que, na realidade, o consumidor pode até ser considerado como hiperssuficiente. A inovação, os mercados e a tecnologia permitiram esse fenômeno.

Não fosse só isso, a dinâmica conflitiva do início de vigência CDC, que foi aumentando ano a ano, vem sofrendo os reveses de suas externalidades negativas (consequências ruins não esperadas), tais como uma judicialização gigantesca e absurda, com consequências graves para toda a sociedade, pois abarrota o Poder Judiciário, prejudicando sua eficiência. Atualmente, por força dessa situação, o caminho tem sido a negociação, a conciliação e a mediação.

Poderíamos, também, rever as ações civis públicas, que, infelizmente, não cumpriram seu papel de redução no volume de litígios, se transformando, a bem da verdade, em terríveis instrumentos de poder, ao invés se auxiliar na solução de conflitos. Ou, ainda, dar mais peso aos precedentes judiciais, como se tentou fazer timidamente no novo Código de Processo Civil. Não podemos esquecer, outrossim, da Lei dos Juizados Especiais, que, a despeito de trazer o acesso à justiça, acabou contribuindo para a expansão dos conflitos, e criou uma espécie de judiciário paralelo que, em muitos casos, decide ao largo das orientações jurisprudenciais dos tribunais.

Em busca de mudanças, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) vem cumprindo o seu papel, pelo caminho da desjudicialização colaborativa, ao divulgar e otimizar a ferramenta “consumidor.gov”, com vistas a incentivar um comportamento menos beligerante. Todavia, isso não bastará. Enquanto houver incentivos econômicos para se usar a legislação consumerista como instrumento de oportunismo, sem reprimendas ao comportamento abusivo e flexibilização excessiva das normas processuais, a escalada da judicialização continuará.

Na mesma toada, se as empresas tratarem os métodos alternativos –– negociação, conciliação e mediação –– de forma automatizada, sem preparar seus colaboradores para lidar com os clientes, também não conseguiremos sair do atoleiro. Um bom começo é um SAC alinhado aos departamentos jurídicos, produzindo respostas mais adequadas para os consumidores. Ou, ainda, a construção de desenhos para solução de disputas (dispute systems design –– DSD), com vistas a reduzir os litígios e ganhar eficiência operacional.

Há muito trabalho a ser feito, mas todo ele depende de uma visão mais realista, holística e menos conceitual do Direito. Não devemos esperar que todos os problemas sejam resolvidos no legislativo, com alterações e novas leis. O papel do intérprete é fundamental. Precisamos olhar as leis de frente, mas não nos esquecendo do espelho retrovisor. A realidade histórica do nascedouro de qualquer legislação deve ser um parâmetro para entender as mudanças e adequar ou adaptar as interpretações e entendimentos. Esse é o caminho da modernidade.

Como disse Samuel Taylor Coleridge, “se os homens pudessem aprender com a história, quantas lições ela poderia ensinar. Infelizmente a paixão cega os olhos e a luz da experiência é apenas uma lanterna de popa que ilumina apenas as ondas que deixamos para trás”. Com olhar no passado, podemos dizer que o CDC cumpriu o dever de uma época.

Ao mirar para o horizonte, no entanto, vemos novos desafios, com foco no incentivo à competição em mercado. Temos a Lei de Liberdade Econômica, para incentivar o empreendedorismo, a análise de impacto regulatório (AIR) e a OCDE para soluções modernas de políticas públicas. Após 30 anos, o CDC começa a perder seu protagonismo –– o que, aliás, é desejável ––, abrindo espaço para a dinâmica do livre mercado e a busca de regulamentações mais modernas. Quem ganhará, no final das contas? O consumidor e a sociedade como um todo.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!