Pena de R$ 3 mil

Professora é condenada por injúria a promotores que escreveram "Bandidolatria"

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7 de março de 2020, 13h26

Tachar autor de obra científica de "‘medíocre, classista, racista, intolerante e antidemocrático", sem qualquer vínculo ou alusão ao conteúdo, é crime de injúria, pois ofende a dignidade e o decoro da pessoa humana. A conduta é ainda mais grave quando advém de professor com doutorado no assunto, que deveria fundamentar suas críticas de forma acadêmica.

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A conclusão é da Turma Recursal Criminal dos Juizados Especiais do Rio Grande do Sul, ao confirmar sentença que condenou a doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS Christiane Russomano Freire por dirigir estes adjetivos aos autores do livro "Bandidolatria e Democídio — Ensaios sobre Garantismo Penal e a Criminalidade no Brasil".

Por violar o artigo 140 do Código Penal — injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro —, ela acabou condenada à pena de dois meses de detenção, substituída por prestação pecuniária, correspondente ao valor de R$ 3 mil.

Os autores injuriados, críticos do garantismo penal, são os promotores de justiça gaúchos Diego Pessi e Leonardo Giardin de Souza. O acórdão, com decisão por maioria, foi lavrado na sessão de 17 de fevereiro.

Responsabilidade social
Para o relator do recurso-crime, juiz Luís Gustavo Zanella Piccinin, a ré, por ser professora universitária, tem responsabilidade social de incalculável peso, visto ser formadora de opinião na sua área de atuação.

Deveria, nesta condição, se portar com respeito quando se depara com entendimentos contrários ao seu. Afinal, as críticas em âmbito acadêmico são construtivas e necessárias quando não ultrapassam os limites subjetivos e pessoais acerca da imagem e honra de outras pessoas.

O relator entendeu, tal como o juízo de origem, que a ré não emitiu uma opinião acerca do conteúdo do livro publicado, mas sua "particular visão" sobre as pessoas dos promotores. Ou seja, a manifestação teve a "finalidade específica" de ofender, refletindo um ato de intolerância e desrespeito.

"Admitir e relativizar que alguém possa ser chamado publicamente de 'racista' tentando contextualizar tal pecha, significa dizer que há um racismo 'do bem' e outro 'do mal', onde só aquele que nos interessa pode ser objeto de punição penal, onde a proteção constitucional que se confere ao crime contra raça, ou mesmo a injúria racial, possa ser manejado de acordo com a cor política do ofensor, para perseguir uns e premiar outros", escreveu no acórdão.

Discussão na rede social
O fato que deu origem na queixa-crime ocorreu no dia 17 de junho de 2017, no bojo de uma discussão sobre o livro. O palco da discussão foi a rede social Facebook.

Segundo apontam os autos, às 8h40, na linha do tempo do professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, da PUC-RS, Christiane escreveu: "E mais, Rodrigo, depois de anos de total mediocridade intelectual, formação manualística, rejeição de todo e qualquer estudo ou pesquisa acadêmicas, conseguiram sistematizar toda sua visão classista, racista, intolerante e antidemocrática numa obra chamada 'Bandidolatria e Democídio'. Seria cômico se não fosse trágico".

Queixa-crime rejeitada
Sentindo-se injuriados, os dois promotores entraram com queixa-crime no 2º Juizado Especial Criminal, do Foro Central da Comarca de Porto Alegre. O juízo, no entanto, não acolheu a queixa-crime.

Segundo a juíza Tatiana Elizabeth Michel Scalabrin Di Lorenzo, os queixosos deixaram de incluir no processo outras pessoas que, em tese, os teriam ofendido naquele post. É que o "princípio da indivisibilidade" obriga o ofendido a ajuizar ação penal contra todos os agressores que, juntos, teriam cometido o delito. O motivo é evitar que a vítima escolha a pessoa ser punida, passando a ocupar uma posição inadequada de vingador.

Assim, como outras pessoas não entraram no polo passivo da ação, segundo a ótica da julgadora da época, estaria caracterizada a "renúncia tácita" ao direito de queixa.

Em contragolpe processual, os promotores entraram com recurso-crime na Turma Recursal Criminal, alegando a inexistência de ofensa ao princípio da indivisibilidade, uma vez que somente a parte recorrida [a professora Christiane Russomano Freire] ofendeu a honra subjetiva deles, situação que difere do autor do texto no Facebook e das demais pessoas que comentaram a publicação. Por isso, pediram o provimento do recurso, ao fim de determinar o prosseguimento da ação.

Tramitação regular
O relator do recurso-crime na Turma Recursal Criminal, juiz Luís Gustavo Zanella Piccinin, cassou a decisão extintiva do processo, dando regular prosseguimento ação. A seu ver, não se poderia falar em extinção da punibilidade, pela operação do princípio da indivisibilidade da ação penal, já que esta pressupõe a existência de co-autoria ou participação na prática ilícita, circunstância que não verídica nos autos.

Conforme Piccinin, os documentos acostados aos autos deixam evidente que somente Christiane, em tese, ofendeu os promotores ao comentar na publicação do professor Rodrigo Azevedo. Ou seja, ela personificou as avaliações, até então emitidas de forma genérica, atribuindo aos autores qualidades pejorativas, e não à obra. E estas manifestações teriam extrapolado os limites da "mera crítica", pois, em tese, atingiram a honra subjetiva dos promotores. Por isso, a questão deveria ser elucidada na fase de instrução do processo.

Com a decisão recursal, o 2º Juizado Especial Criminal, do Foro Central da Comarca de Porto Alegre, teve de dar andamento à queixa-crime. No dia 9 de outubro de 2019, o juiz Alexandre Tregnago Panichi proferiu a sentença condenatória.

A ré recorreu à Turma Recursal Criminal. Preliminarmente, pediu a extinção da punibilidade, por ofensa ao princípio da indivisibilidade da ação penal privada. Quanto ao mérito, argumentou pela atipicidade da conduta em face da ausência de dolo, bem como a presença da imunidade prevista no artigo 142, inciso II, do Código Penal; ou seja, não poderia ser punida por crítica científica e literária.

Clique aqui para ler o acórdão
2.17.0095661-0 (Comarca de Porto Alegre)

 

 

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