Diário de classe

Livre convencimento, as críticas de Streck e as críticas às críticas

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7 de março de 2020, 8h00

O Dasein é um grupo que, entre suas atividades acadêmicas, dedica-se fundamentalmente a estudar e manter vivo o legado da Crítica Hermenêutica do Direito, a matriz teórica, pioneira no Brasil, construída e articulada por Lenio Streck. Após discussões em uma série de encontro de estudos, reunimo-nos em um texto institucional; um texto que se dedica a contrapor uma crítica às críticas de Streck e da CHD.

Nosso assunto é, de novo, o instituto do livre convencimento do juiz, tendo como gatilho o texto escrito pelo Juiz de Direito do TJ/RJ, André Nicolitt, em parceria com a mestranda Lilian de Oliveira, intitulado Livre convencimento motivado não é solipsismo: um novo foco para a adequada luta contrária ao arbítrio do Juiz[1].

De início, cabe esclarecer que em nenhum momento do presente ensaio estaremos criticando a honestidade intelectual dos autores. Nossa divergência — e crítica — resume-se apenas ao conteúdo abordado, buscando, sempre, reforçar e incentivar a pesquisa no país.

Introduzindo o assunto, os autores reforçam a ideia segundo a qual o livre convencimento é reconhecido por juristas como Streck, Lúcio Delfino, Ziel Ferreira Lopes e José Miguel Medina como sendo um dos responsáveis pela contaminação da discricionariedade judicial nas decisões, resultando em um entrave para a aplicação do direito como integridade.

Esclarecem que, em suas perspectivas, o instituto insere-se em uma dimensão da decisão judicial, advinda do modo como o julgador se relaciona com a prova produzida nos autos e possuindo, em sua origem, uma forma de limitação do Judiciário, supostamente contrariando aquilo que os doutrinadores acima citados vêm sustentando ao longo desse debate.

Explicam que o livre convencimento motivado é uma versão contemporânea e melhorada do sistema de íntima convicção. Neste, o julgador poderia valorar as provas do processo da forma como bem entendesse, a partir de sua convicção moral, sem que houvesse qualquer limite balizador; naquele, o julgador ainda possui liberdade de valoração moral da prova, no entanto, soma-se a isso a responsabilidade de motivar as suas razões de convicção, limitando, dessa forma, a possibilidade de arbitrariedade judicial[2]. Nesse sentido, segundo os autores,

O livre convencimento motivado é, portanto, uma forma de apreciação da prova, uma baliza no relacionamento existente entre o juiz e os elementos que lhe são apresentados a fim de provar os fatos a serem julgados. Historicamente está desvinculado do sistema inquisitorial, tendo aproximação com o sistema acusatório e raízes na racionalidade iluminista.[3]

Nesse contexto, enfatizam o fato de que o livre convencimento motivado tenha surgido como forma de combater o arbítrio judicial no que tange a análise e produção dos elementos probatórios, justamente por ser motivado e exigir o dever de fundamentação do magistrado. Por isso, os atuais doutrinadores críticos do instituto estariam cometendo um erro metodológico, por analisarem o problema sob o prisma da aplicação, interpretação do Direito e argumentação, e não da valoração probatória. Os autores afirmam que “as censuras que se embasam em teorias da decisão se apoiam em um equívoco de não diferenciar os dois momentos da decisão judicial, a verificação fática e a verificação jurídica”[4], sustentando essa diferenciação (fática/jurídica) nas quatro dimensões de poder do Juiz, desenvolvidas por Ferrajoli em sua obra Direito e Razão. (Vale, nesse sentido, ver o que diz o professor Streck sobre a dicotomia fato/valor).

Evidentemente, a pretensão dos autores não é afirmar que as decisões judiciais estão fadadas a serem discricionárias. O objetivo — pelo menos a partir do que se extrai da leitura — é dizer que o instituto do livre convencimento não autoriza arbitrariedades, em razão do dever de motivação, que deve estar lastreado nas provas colhidas nos autos e nos contra-argumentos apresentados. No entanto, ao complementar o seu raciocínio, ainda que não digam explicitamente, Nicolitt e Oliveira aceitam que exista um grau de discricionariedade. Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho do artigo:

O procedimento limita a subjetividade, de modo que um procedimento participativo assegura menor subjetivismo. Mas não basta tal fato. É necessária para o processo decisório a percepção da relevância dos valores em jogo, pois estes vão influenciar no grau de suficiência de prova exigido. Isto é, em todo raciocínio epistemológico voltado a questões práticas é importante incluir elementos axiológicos destinados a orientar o grau de suficiência de prova a partir do qual seria possível reputar comprovado um fato.

E, logo abaixo, continua:

A arbitrariedade na decisão é resultante de uma ação eivada de subjetividade em larga escala, na qual argumentos frágeis e inespecíficos procuram suprir a exigência de fundamentação.[5]

Ou seja, ambos assumem que há, sim, um grau de moralidade a ser utilizado pelo julgador que, se não for em larga escala, está legitimada. Significa dizer, então, que, se a discricionariedade for utilizada em pequena escala e for fundamentada de alguma forma, ela deixa de ser discricionária? A autoridade é do direito, não daquilo que o julgador diz ser o direito. A decisão sobre provas e elementos e “questões práticas” se dá por princípio. E princípios, sempre lembra Streck, não são valores.

Em verdade, os autores desenvolvem esse raciocínio para concluir que a supressão da palavra “livremente” dos artigos 371 e 480, §3º do CPC não retirou o livre convencimento motivado da sistemática processual; isso porque ainda subsiste neste a liberdade de valoração da prova e, também, porque tal mudança não se traduz em uma garantia de decisão adequada.

Nesta última afirmação, estamos de acordo; afinal, quando um juiz comete arbitrariedades, não está se importando com os limites legislativos. Inclusive, os autores críticos do livre convencimento motivado jamais sustentaram que, com a supressão do termo "livremente" da sistemática processual, estar-se-ia pondo fim às arbitrariedades judiciárias. A luta contra o mau uso da linguagem para atingir interesses particulares travestidos de públicos ainda permanece latente no cotidiano desses juristas.

O que se faz, de fato, é assegurar todas as estratégias legislativas para limitar o poder discricionário do julgador, para que ele não possua uma justificativa jurídica de exercê-lo, pois, apenas dessa forma, será possível constrangê-lo em instância superior.

Feita essa reconstrução, passa-se à crítica. O texto demonstra, desde o princípio, alguns problemas. Desses, um em especial merece destaque: a confusão entre avanços civilizatórios passados, que são inegáveis como o livre convencimento e a teoria garantista de Ferrajoli no Direito e Razão, com as melhores respostas constitucionais e democráticas para os problemas contemporâneos. Não se nega, em nenhum momento, que o livre convencimento motivado foi importante em determinado período histórico como, por exemplo, para a superação de graves arbitrariedades. Contudo, hoje, ele é insuficiente constitucionalmente e serve como fundamento para predações morais e outras arbitrariedades, diferentes daquelas para as quais ele foi criado. Explica-se.

Num viés comparativo, o autor delimita o texto, explicando que "a moldura teórica do presente estudo consiste na teoria do Garantismo de Luigi Ferrajoli" e contextualiza o garantismo penal. Contudo, assim como o livre convencimento motivado é insuficiente para dar conta dos anseios constitucionais e democráticos do Brasil contemporâneo, também a grande obra Direito e Razão é, atualmente, insuficiente para responder os problemas contemporâneos.

A teoria proposta por Ferrajoli em 1989 é louvável; afinal, importante em determinada quadra histórica. Mas havia mais a ser dito. É nesse sentido que Ferrajoli escreve sua maior obra —Principia Iuris, publicada em 2007 – com fortes desdobramentos e atualizações na sua teoria garantista[6].

Destarte, Diego Ippolito reconhece que é em Principia Iuris que o garantismo de Ferrajoli alcança sua máxima expressão[7]. Também André Karam Trindade assinala que Principia Iuris não só reconstrói como é fundamental para a devida compreensão da Teoria Garantista do Direito[8]. No referido trabalho, Ferrajoli apresenta a completude do seu constitucionalismo garantista e apresenta as bases para a possibilidade do desenvolvimento de um legítimo Estado Constitucional de Direito.

Se a clássica teoria garantista de Direito e Razão é insuficiente[9] para responder a questões oriundas da globalização, do terrorismo e dos crimes cibernéticos, Principia Iuris oferece as bases para buscarmos as respostas constitucionalmente possíveis e necessárias, o que é ignorado pelos autores que, apesar de fundarem seu desenvolvimento no mestre italiano e no processo penal, não citam a Magnum opus.

O mesmo raciocínio é feito com o livre convencimento motivado. Indubitavelmente, trata-se de instituto importante na superação de arbitrariedades estatais do século XX, mas incapaz frente ao necessário avanço democrático de hoje e esse é o ponto. A superação do livre convencimento motivado se faz necessária, pois há instrumentos teóricos aptos a limitar melhor a discricionariedade judicial como os propostos pelo Maestro Lenio Streck.

A visão, quiçá, ultrapassada que se faz presente ao longo de todo o texto, demonstra a atualidade dos escritos do professor gaúcho e de suas contribuições com o CPC. Os autores afirmam que “não existem critérios de verdade objetiva, mas apenas critérios de verdade subjetiva[10]”. A aposta no solipsismo está feita.

Ronald Dworkin, já que estamos tratando de integridade, afirma categoricamente ao longo de toda sua obra que existe objetividade, verdade, na interpretação. O (necessário) detalhamento dessa afirmação pode ser feito aqui, uma vez que não há espaço para o seu aprofundamento. Entretanto, o ponto que Dworkin levanta é o fato da verdade jurídica ser construída intersubjetivamente pelos participantes da prática social do Direito. Ancorada, claro, numa epistemologia da responsabilidade[11]. Obviamente não se trata de uma verdade real (vide o atraso epistêmico em certos aspectos do direito penal dogmático pátrio); contudo, também não se trata de uma verdade subjetiva, ou seja, relacionada simplesmente ao sujeito. A realidade é muito mais complexa que a mera separação sujeito-objeto, o que parece ter sido deixado de lado no texto dos autores, demonstrando, mais uma vez, a necessidade da pesquisa e da crítica de Streck. A hermenêutica dá o salto para a construção intersubjetiva de uma verdade para além da subjetividade de quem a diz.

Para além disso tudo, e esse é o ponto fundamental, não se pode perder de vista o seguinte: a crítica de Nicolitt e Oliveira parece mirar em um monstro mas acertar apenas no moinho de vento que constrói. Porque, muito embora de um ponto de vista teorético-dogmático — e para fins de argumentação, ressalvadas nossos pontos até aqui —, seja até possível sustentar tudo que foi dito no artigo, a luta da Crítica Hermenêutica do Direito nunca foi essa.

Streck não está atacando as conquistas de determinado momento histórico quando “livre convencimento” pode ter adquirido certo significado. Ora, os significados dependem do jogo de linguagem em que as palavras estão inseridas. A luta de Streck é, sempre foi, contra a recepção de um instituto chamado “livre convencimento” nos tribunais brasileiros.

Ora, a CHD é garantista por excelência. A batalha sempre foi contra o arbítrio, o subjetivismo, a decisão judicial do tipo "decido primeiro e fundamento depois". A luta é contra decisões sem fundamento jurídico, sem responsabilidade política e epistemológica, decisões baseadas em coisas outras que não o direito e, depois de tomadas, justificadas porque há um artigo de lei que diz ser “livre” o convencimento do juiz.

Lenio Streck leu Ferrajoli e, jurista que é, sabe de tudo que foi levantado ao longo da história por meio do instituto do, então, “livre convencimento”. Sua crítica é direcionada justamente àqueles que não leram, que não sabem, ou — pior — sabem bem, mais quand-même.

Talvez, dito tudo isso, Streck de um lado, e Nicolitt e Oliveira de outro, tenham um ponto de encontro possível. Do que se depreende da leitura do artigo que nos serve de base, e da obra do Prof. Streck, é seguro dizer que todos os autores são comprometidos com a democracia e com todos os aspectos institucionais do direito que a ela dão forma. E é essencialmente esse o ponto. A crítica de Streck ao livre convencimento é à caixa de pandora que a recepção brasileira do conceito abriu.

O papel da doutrina, afinal, é e deve ser esse. Postura crítica, diálogos, acordos e desacordos teóricos. Para que os conceitos sejam ressignificados à luz da boa tradição e o direito brasileiro seja, enfim, verdadeiramente democrático.


[1] NICOLITT, André; OLIVEIRA, Lilian Castro de. Livre convencimento motivado não é solipsismo: um novo foco para a adequada luta contrária ao arbítrio do Juiz. In: Compliance e temas relevantes de direito e processo penal: estudos em homenagem ao advogado e professor Felipe Caldeira. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.

[2] Ibid., p. 108.

[3] Ibid., p. 109.

[4] Ibid., p. 115.

[5] Ibid., p. 116 (grifo nosso).

[6] FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: Teoría del derecho. 2.ed. Madrid: Trotta, 2016.

[7] IPPOLITO, Dario. O garantismo de Luigi Ferrajoli (Trad. Hermes Zaneti Júnior) in: Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, jan-jun 2011, p. 34-41.

[8] TRINDADE, André Karam. A teoria do direito e da democracia de Luigi Ferrajoli: um breve balanço do Seminário de Bréscia e da discussão sobre Principia Iuris. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos nº 103, jul/dez 2011, Belo Horizonte, p. 111-137

[9] Nesse sentido, SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. La expansion del derecho penal. 2.ed. Madrid: Civitas, 2001. RÍOS ÁLVAREZ, Rodrigo. EL derecho penal del enemigo. El problema de su legitimidade a la luz de algunos de sus defensores y detractores. Revista Ars Boni Et Aequi, ano 8, n. 2, p. 145-184. 2012.  RIPOLLÉS, José Luiz Díez. De la sociedade del riesgo a la seguridade ciudadana: um debate desenfocado. In: Revista electrónica de ciência penal y criminologia, 2005, núm. 07-01. P. 01:1-01:37, 2005. MELIÁ, Manuel Cancio. DE NUEVO: DERECHO PENAL DE ENEMIGO?. In JAKOBS/MELIÁ, Derecho Penal Del enemigo, Buenos Aires: Hammurabi, 2005, LEAL, Rogério Gesta. A responsabilidade penal do patrimônio ilícito como ferramenta de enfrentamento da criminalidade – instrumentos de direito material e processual. Porto Alegre: FMP, 2017.

[10] [10] NICOLITT, André; OLIVEIRA, Lilian Castro de. Op. Cit., p. 118.

[11] MOTTA, Francisco José Borges. Ronald Dworkin e a decisão jurídica. São Paulo: Juspodivm, 2017.

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