Opinião

Evaristo de Moraes mostra que Direito do Trabalho deve reduzir desigualdades

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6 de março de 2020, 6h02

Em 1905, escrevia um jurista brasileiro, Antonio Evaristo de Moraes, uma das obras que introduzia aos intelectuais do país e à sociedade de modo geral, embora com direcionamento especial aos operários, a importância de se construir uma política social e um sistema de princípios e regras jurídicas capazes de explorar, com precisão, a questão operária que se aflorava como um das grandes preocupações sociais na República recém-proclamada, numa sociedade que começava a se industrializar e que acabava de sair, ao menos formalmente, do regime de escravidão.

A sua obra de 1905 o autor deu o título de Apontamentos de Direito Operário[1], e o sistema acima citado o autor denominou “Direito Operário”, que podemos associar, hoje, com algumas mediações, ao já conhecido Direito do Trabalho.

Por meio de escritos detalhados e com uma linguagem simples — possivelmente acessível, inclusive, ao público leigo em Direito, na época — traz o autor temas de total relevância para a constituição das bases do Direito do Trabalho, como a necessidade de intervenção legislativa e do Estado nos contratos e na economia, a questão de inclusão de um sistema próprio para a proteção do trabalhador no Código Civil ou em um código a parte, a questão do trabalho infantil, dos acidentes de trabalho (com destaque à teoria dos riscos profissionais, hoje quase ignorada entre os tribunais do trabalho no Brasil), do direito de greve, da constituição de trusts, entre outros temas sempre relevantes.

Se pudéssemos sintetizar a sua posição na obra, em linhas gerais podemos dizer que ela nos apresenta argumentos sobre a necessidade de um sistema de direitos próprios e condizentes com a realidade do operário brasileiro, demonstrando a necessidade da presença e intervenção do Estado na economia, em contramão aos anseios dos republicanos liberais que viam no livre exercício da profissão um impedimento a qualquer possibilidade de intervenção de agentes ou legislações externas ao contrato particular.

Os apontamentos de Evaristo são verdadeiras lições de desconstrução dos argumentos provenientes de nosso velho idealismo utópico liberal; apontamentos que vão na contramão de juristas que concebem a existência de uma igualdade presumida entre todos os sujeitos sociais, e que, por isso, consideram todo e qualquer sujeito absolutamente livre para estabelecer, com total autonomia, as condições do contrato e do exercício do trabalho.

Para o autor, ao contrário dessa hipótese metafísica, sem lastro com a realidade social, existem muitos sujeitos que, diante da realidade das desigualdades existentes em determinadas sociedades, não são iguais em condições sócio-econômicas, bem como em relação ao domínio dos instrumentos de trabalho e, por isso, necessitam de regras jurídicas trabalhistas protetoras, para o estabelecimento de maior equilíbrio de forças sociais e de produção entre as partes de um contrato.

De fato, a presunção de igualdade jurídica não leva em consideração um fato real entre nós, de que pode existir, entre os contratantes, um sujeito — normalmente da classe trabalhadora — que vende sua força de produção por total necessidade, ou seja, por não ter outra saída, a fim de manter sua sobrevivência; um sujeito que, a depender tanto da relação entre demanda e oferta do mercado de trabalho (concorrência entre pessoas), como das combinações entre os detentores do capital (trusts, em geral), tende a encontrar-se em condição de opressão e miséria que lhe exige um máximo esforço, tendo como contraprestação, em troca — nas palavras de Evaristo — o “direito de viver mal, apenas viver, mantido pelo salário mínimo”[2].

Nesse sentido, destaca Evaristo que o grande problema de nossos juristas — isto escrevera no início do século XX, mas talvez ainda permaneça entre os dias de hoje — é a “crença nas virtudes da liberdade do trabalho”, que, na realidade, “vem dar na organização pura e simples do domínio do mais forte”[3].

Segundo Evaristo de Moraes, na vida moderna, a concepção meramente comercial de liberdade, a liberdade “sem quaisquer freios”, decorrente da “mão invisível” do mercado, tão defendida pela economia clássica, “só tem gerado a opressão e a miséria, a exploração do operariado e seu rebaixamento progressivo”[4].

Segundo as palavras do autor, citando Marx,

Não obstante parecer que o trabalhador vende livremente seu trabalho, bem se percebe, afinal, que ele não é um agente livre; que o tempo pelo que ele empenha seu esforço lhe é imposto pelas circunstâncias; e o capitalismo devorador não abandona a presa enquanto tem a sugar uns restos de sangue e de músculo![5].

Essa crença nas virtudes da “liberdade do trabalho”, aliás, não é um fato particular da época do autor. Ainda hoje, em pleno ano de 2020, soa estranho para alguns juristas, que se consideram liberais, a ideia de uma desigualdade inicial entre sujeitos do contrato de trabalho; juristas que continuam a presumir, tal como os republicanos civilistas do século XIX e do início do século XX, que os sujeitos de todo e qualquer contrato possuem a mesma “autonomia", a mesma liberdade para contratar, dizendo barbaridades como “não podemos tratar o trabalhador como uma criança”…

Ora, o que Evaristo nos apontava, ainda em 1905, e que nos deveria parecer óbvio, é que a realidade no Brasil é bem outra — nem todos nascem com as mesmas possibilidades materiais, sendo esta a principal justificativa para a intervenção legislativa, com apoio estatal.

Em inversão a esta realidade, a autonomia fictícia criada pelos ideólogos liberais vem servindo de base a toda a nova legislação comercial do trabalho, desenvolvida tanto por decisões de nossos tribunais (muitos que descartam a condição de hipossuficiência do trabalhador, a ponto de fazer-lhes provar, em juízo, fatos impossíveis contra o empregador), como pelo Poder Legislativo, especialmente a partir do ingresso da denominada “reforma trabalhista” instituída no governo Temer.

Cita-se, a respeito dessa crença na liberdade contratual do trabalho, a inclusão na CLT, pela lei da “reforma”, do artigo 507-B, que estabelece a faculdade de o empregado e empregador, considerados igualmente livres, firmarem um termo de quitação anual de obrigações trabalhistas, para nada reclamarem no futuro.

Cita-se, também, o artigo 484-A, que possibilita o chamado distrato, uma modalidade de rescisão contratual que, reduzindo pela metade tanto a indenização pelo aviso prévio, quanto a indenização sobre o saldo do FGTS, parte da premissa de que as partes estão agindo com igual liberdade em definir os termos da dispensa.

Ainda, é possível mencionar a criação de figuras absurdas como a do trabalhador “hipersuficiente”, que, somente pelo fato de ganhar um determinado salário, maior que a média no mercado de trabalho, torna-se pela lei um sujeito com condições equiparadas a seu patrão, não importando o fato de que somente um desses sujeitos seja detentor dos meios e instrumentos de produção e trabalho; entre muitas outras disposições.

Ora, diante desse contexto de retomada quase sem resistência de um discurso jurídico de matriz liberal que não enxerga — ou não quer mesmo enxergar — a desigualdade real e inicial de sujeitos na relação de trabalho, entendemos que ler Evaristo de Moraes é também pensar como desfazer-se de toda essa ficção jurídica, mostrando-nos que podemos buscar outra referência histórica, real, para o Direito dos Trabalhadores, diversa da história fictícia contada pelos defensores das reformas trabalhistas contemporâneas, cujo discurso periga fazer a sociedade brasileira acreditar que nós nascemos, realmente, iguais em condições sócio-econômicas.

Ler Evaristo é compreender, enfim, que o Direito do Trabalho não deixa de ser um instrumento para a busca da igualdade social, embora para tanto ele exija, por suas bases — o que não vem sendo exigido com freqüência — tanto o reconhecimento de que nascemos desiguais, como o reconhecimento de que o Estado e a intervenção legislativa podem ser úteis para oferecer condições sociais direcionadas a reduzir essas desigualdades.

[1] A obra Apontamentos de Direito Operário pode ser encontrada em diversas versões. A leitura que fizemos, para este artigo, foi da versão inicial, publicada pela Imprensa Nacional em 1905, e que se encontra disponível na Biblioteca Digital do Supremo Tribunal Federal, no site https://sistemas.stf.jus.br/dspace/xmlui/handle/123456789/589, bem como em outras plataformas digitais.

[2] MORAES, Evaristo de. Apontamentos de Direito Operário. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905. p. 25.

[3] Op. cit. p. 16.

[4] Op. cit. p. 09.

[5] Op. cit. p. 10.

Autores

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    é mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie, graduado em Direito na mesma instituição, advogado em São Paulo e integrante dos Grupos de Estudos "Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação da Cidadania", e "Estado e Direito no pensamento social brasileiro", ambos vinculados ao Mackenzie – CNPq.

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