Opinião

PEC 188 quer transformar TCU em um tribunal de contas da federação

Autores

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

  • Onofre Alves Batista Júnior

    é pos-doutorando em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) professor associado do Quadro Permanente da Graduação Mestrado e Doutorado da UFMG e sócio-conselheiro do Coimbra Chaves & Batista Advogados.

5 de março de 2020, 6h02

O artigo 2º da PEC 188 propõe incluir o inciso XII no artigo 71 da Constituição determinando que passa a ser competência do TCU a tarefa de consolidar a interpretação das leis complementares de que tratam os artigos 163 (lei complementar que disciplina as finanças públicas), 165, parágrafo 9° (lei complementar que disciplina a gestão financeira e patrimonial da Administração Pública e as normas orçamentárias) e 169 (lei complementar que determina os limites das despesa com pessoal), por meio de orientações normativas que terão efeito vinculante com relação aos TCE e aos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios. Em seu parágrafo 5º, o dispositivo cria a possibilidade de reclamação ao TCU para anular a decisão de TCE que contrarie a orientação normativa, e atribui poder ao TCU de avocar decisão de TCE. Enfim, o TCU se transforma, com a PEC, em uma espécie de Tribunal Central de Contas ou em uma espécie de Tribunal de Contas da Federação.

Em outro dispositivo (artigo 163-A), a PEC pretende obrigar os entes federados a disponibilizarem, para controle da União, informações e dados contábeis, orçamentários e fiscais conforme periodicidade, formato e sistema estabelecidos pelo órgão central de contabilidade da União — a Secretaria do Tesouro Nacional. Os entes que não obedecerem a ordem ficam privados de receber transferências voluntárias e de contratar operações de crédito, salvo as destinadas ao pagamento da dívida (sobretudo a dívida com a própria União).

A PEC ainda propõe criar no artigo 135-A um Conselho Fiscal da República (CFR), para ser o órgão superior de coordenação da política fiscal e preservação da sustentabilidade financeira da Federação, e que deverá contar com a participação de diversos presidentes: da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, do STF e do TCU, além de três governadores e três prefeitos. Caberá a esse conjunto de agentes políticos, já abarrotados de atribuições, verificar o cumprimento das exigências constitucionais e legais referentes à disciplina orçamentária e fiscal, bem como expedir recomendações, fixar diretrizes e difundir boas práticas para o setor público.

Seguramente esse Conselho Fiscal da República deve se tornar o órgão por meio do qual o sistema financeiro de controle de contas irá comandar o país. Com isso, encerrar-se a ideia de autonomia financeira e de autoadministração dos entes federados — para que federação, então?

Sabe-se que o TCU é escolhido pelo presidente da República (um terço) e pelo Congresso Nacional (dois terços), e tem competência para a esfera federal de governo, isto é, como o próprio nome indica, trata do âmbito da União, com o auxílio da Secretaria do Tesouro Nacional — órgão também do Poder Executivo da União, a despeito de ter em seu nome a expressão “nacional”. Submeter as cortes de contas estaduais e as poucas municipais ao Tribunal de Contas da União e à Secretaria do Tesouro federal seguramente viola o princípio federativo.

É imprescindível que o país tenha normas contábeis mais padronizadas para o setor público, por questões de segurança jurídica, mas isso é matéria de lei complementar e não de um colegiado político, como o CFR, e muito menos a ser tratada pela corte de contas federal — que não é nacional. Esse modelo centralizado no TCU, abrindo a possibilidade de ingerência nos estados, é mais claramente violador do federalismo do que esse debate quanto a reforma tributária (PECs 45 e 110).

Pode-se solucionar o problema sem deformar a Constituição estabelecendo uma disciplina contábil mais rigorosa através de lei complementar, como já determina a própria CF, mantendo a jurisdição do STJ e do STF, este, aliás, o tribunal da Federação.

O risco é que, ao se pretender resolver um problema que existe e atrapalha a boa convivência federativa, sejam criados mecanismos que possibilitem a ingerência direta da União nos demais entes federados. Ou seja, a União pode vir a ampliar ainda mais sua centralização e seu poder de interferência direta sobre os estados e municípios, por razões financeiras. Trata-se de uma evidente violação ao princípio federativo que, por vias transversas, se tenta contornar.

Assim, o federalismo se esvai e o poder central se agiganta. O federalismo promove uma separação territorial e vertical de poderes, no intuito de assegurar a democracia e evitar a concentração do poder. Tudo isso é atacado pela PEC 188 em vários aspectos. Esse ímpeto revolucionário provoca uma verdadeira (de)forma financeira na Constituição, com afronta à cláusula pétrea do federalismo.

Mais uma vez, é preciso que se diga que é impossível gerir democraticamente do painel de controle de Brasília um país com mais de 200 milhões de habitantes e de dimensões continentais. Entretanto, sabe-se que, tão logo se deu a promulgação da Constituição, o pacto federativo começou a ser arranhado, por um movimento contínuo de centralização de receitas e de descentralização de despesas. Agora, o que se busca, sem quaisquer camuflagens, é a absoluta centralização do comando financeiro.

O problema, na verdade, é que a União concentra a arrecadação tributária (68%), enquanto os estados contam com apenas 25%, e os municípios, com 7%. O governo federal, por outro giro, tal como com relação às normas financeiras, optou por se manter inerte diante da guerra fiscal travada pelos estados (que já deteriorou mais da metade de sua base tributária), mesmo tendo o dever constitucional de evitar conflitos de competência em matéria tributária, como determina o artigo 146, I, da Constituição Federal. A União, assim, pelo viés tributário, criou relações de dependência e subordinação, garantindo sua posição de supremacia. É que a centralização das receitas traduz centralização de poder — sendo que agora, o que se pretende, é a centralização do controle financeiro e orçamentário de todo o país. Em suma, mais Brasília e menos Brasil, ao contrário do que é propagandeado.

Como se não bastasse, os desequilíbrios federativos provocados pela União são frequentes. Basta verificar as diversas renúncias a tributos cuja arrecadação deveria ser compartilhada com os estados e municípios (exonerações do IPI e deduções no IR) ou mesmo a inconstitucional mora na compensação dos estados pelo deficit gerado pelas exonerações concedidas ao ICMS no que tange à exportação de produtos semielaborados (defasagens da Lei Kandir).

Por outro lado, os serviços mais essenciais à população e que também são os mais dispendiosos (saúde, segurança e educação) ficam, em grande parte, a cargo dos estados e municípios. Sabe-se que a União aportava inicialmente ao SUS 80% dos valores; hoje, esse percentual não chega a 40%. No que diz respeito à educação, é igualmente conhecido que os estados gastam mais de 80% do montante total, enquanto a União não investe nem 12%. Os gastos com segurança pública (polícia militar; polícia civil; sistema prisional) são essencialmente dos Estados.

Aos entes subnacionais, imobilizados por um cenário de crise, nada resta a fazer senão cortar despesas fundamentais, sacrificando sua própria capacidade operacional. Por isso é patente a situação de penúria enfrentada pelas unidades federadas, que, por um lado, encontram-se obrigadas a obedecer a limites fiscais rígidos e a prestar serviços fulcrais à comunidade e, por outro, estão impossibilitadas de gerar novas fontes de receita, tendo suas verbas constantemente diminuídas por comportamentos da União.

O problema é evidente: existe um descompasso entre as receitas necessárias para que os entes federados possam cumprir sua missão constitucional e as receitas que auferem, e que estão centralizadas na União, que se encarrega, na sua quase totalidade, tão somente do pagamento da previdência e do pagamento da dívida pública.

No Brasil, a União atua de forma autorreferente, como se fosse um ente alheio aos estados-membros. Ocorre que a “União” é a “união” dos entes federados, como determina o artigo 1º da Constituição, em sua fórmula rica em simbolismo. Muitas vezes, a União se coloca como adversária dos entes federados menores em diversas demandas, como no caso da dívida dos estados, questões tributárias etc.

Retornando à PEC 188, que pretende transformar o TCU em Tribunal de Contas da Federação, constata-se que a Constituição Federal já contém os mecanismos para resolver a questão, sem violar o princípio federativo.

Uma fórmula, já apontada, é através de uma lei complementar que regule a matéria de forma mais rigorosa, no lugar da vetusta, defasada e imprecisa Lei 4.320/64, ainda da época do governo Goulart, que já cumpriu seu papel.

Outra fórmula é elaborar uma emenda constitucional mediante proposta de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros, consoante prevê o artigo 60, III, da Constituição Federal. Quem sabe se, desta forma, não surge uma proposta menos centralizadora? Poderiam as Assembleias Legislativas apresentar uma proposta federativa e democrática de alinhamento da contabilidade pública, sem tão amplo intuito (de/)reformista como a da PEC 188. Não se pode afirmar que dará certo, mas uma inciativa dessa envergadura pode dar novos rumos ao debate político-federativo atual.

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  • Brave

    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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    é sócio Consultor do Coimbra & Chaves Advogados, professor associado de Direito Público da graduação e pós-graduação da UFMG, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela UFMG e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.

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