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Imunidades e incentivos fiscais do ICMS não podem ser tributados: o caso do Fethab

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

4 de março de 2020, 8h00

Spacca
O Brasil não pode mais adiar o início de uma reforma tributária, que poderá ser feita por leis ordinárias ou complementares, sem precisar de intervenções constitucionais. Só isso já permitiria grandes avanços nas relações entre Fisco e contribuintes, na melhoria do ambiente de negócios e na capacidade de arrecadação. Não precisa muito para uma mudança significativa nas relações entre Fisco e contribuinte em nosso País.

Para ilustrar aonde chegamos em nosso federalismo, colhemos aqui o Fundo Especial de Transporte e Habitação (“FETHAB”) criado por meio da Lei Estadual do Mato Grosso nº 7.263/2000, que já sofreu diversos acréscimos legais, a somar, até o presente, mais de 40 leis, afora decretos regulamentadores e outros instrumentos normativos de introdução de normas.

O caso do FETHAB é uma evidência inequívoca dessa situação. Criado nos anos 2000, de lá para cá foi aprimorado e hoje responde por uma arrecadação que só aumenta, ano após ano, e que já chega a R$ 1,5 bilhão. Este fundo é uma evidência do quanto o modelo do ICMS está a exigir reformas urgentes.

O FETHAB atua para restringir os direitos decorrentes dos incentivos fiscais ou até mesmo de imunidade, ao vincular seu gozo ao dever de recolhimento do montante da contribuição.

A fundamentação do FETHAB e das respectivas contribuições sempre esteve adstrita à finalidade de buscar fontes complementares de recursos – ancorados na legislação do ICMS – para financiar o planejamento, execução, acompanhamento e avaliação de obras e serviços de transportes e habitação em todo o território mato-grossense.

Com a evolução do programa, após diversas pressões corporativas, houve majoração da carga sobre os produtos originais, com mudanças dos cálculos de referência, para ampliar os repasses do governo estadual para os municípios e para entidades como o Poder Judiciário, Legislativo, Procuradoria do Estado e Tribunal de Contas do Estado.

Para compelir os produtores rurais a contribuírem ao que seria um programa “voluntário”, foi interposta a condição legal de perda do direito de acesso aos regimes especiais de apuração da legislação estadual do ICMS. Nada mais inconstitucional do que usar a voluntariedade para suspender os efeitos de regimes especiais, diferimentos ou imunidades do ICMS que estão autorizadas, sem restrições, por leis internas, pela Lei Complementar nº 87/96 e pela Constituição.

O STF, ao conhecer do FETHAB, empregou um critério binário para concluir que a mera facultatividade prevista em lei seria suficiente para transformar fundos bilionários, geridos à margem do orçamento público, em exações alheias às garantias constitucionais do sistema tributário e orçamentário. A questão merece melhor exame diante de diversas mudanças verificadas, como distinguishing suficiente.

Em verdade, trata-se de decisão monocrática, nos autos do Agravo de Instrumento nº 859321[1], de Relatoria do Ministro Dias Toffoli, quando foi declarada, monocraticamente, a constitucionalidade do FETHAB, afastando-se a sua natureza tributária em virtude do suposto caráter facultativo (opção por se manter no diferimento do imposto).

A decisão amparou-se no caráter facultativo das contribuições do programa, e limitadamente àquelas que até então não eram compulsórias (até por uma questão cronológica do julgamento), sem ter adentrado nos elementos tributários que são utilizados pelo programa como forma de se induzir o recolhimento dos fundos.

Em outra oportunidade, mencionada na decisão monocrática do Min. Dias Toffoli sobre o FETHAB, o STF decidiu sobre o regime que inaugurou esse tipo de contribuição, a saber, o FUNDERSUL, do Estado do Mato Grosso do Sul.[2] Este programa possuía, na oportunidade do julgamento, a mesma estrutura inicial que foi adotada na primeira fase do FETHAB, a saber, condicionava o diferimento da produção agrícola ao recolhimento de contribuições a fundos especiais.

Não havia, ao menos no momento de apreciação do STF, verdadeiros adicionais regionais, acompanhados de ameaça de revogação de suspensão no caso de operações interestaduais e de exportação, assim como não havia mais da metade das receitas do Programa oriundas de operações em que o recolhimento aos fundos é compulsória (como acontece no FETHAB no caso de gás para energia, energia elétrica e diesel).

A contribuição ao FETHAB e fundos equivalentes não passa por qualquer filtragem constitucional. A começar pela falta de competência para instituir uma cobrança que incide sobre a mesma hipótese de incidência do ICMS (artigo 155, II da CF) ou sobre regimes especiais, diferimentos autorizados por lei e imunidades à exportação, todos conferidos como direito público subjetivo dos beneficiários.

Os Estados, no exercício da competência do ICMS, somente podem exigir imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior, bem como as hipóteses previstas no § 3º do mesmo artigo 155 da CF, ou seja, sobre operações relativas à energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País. Não há licença para qualquer hipótese.

Somente a União tem poderes para criar contribuições para atuação estatal no âmbito social ou de intervenção econômica ou, ainda, de regulação de categorias econômicas e profissionais (art. 149 da CF). O FETHAB busca recursos financeiros para custear obras habitacionais e de melhoria do transporte. Logo, de nítido fim orçamentário, mas tem a destinação específica como seu fundamento.

Importante recordar que a criação de novos impostos previstos na mesma competência (como típico adicional) está autorizada apenas para a União, e no caso dos chamados impostos extraordinários (art. 154, II da CF). Nenhum adicional de imposto está autorizado pela Constituição, portanto, excetuado o caso do “imposto extraordinário” (art. 154, II da CF).

Não há dúvida alguma de que a contribuição ao FETHAB, e de resto todos os demais fundos, assume o lugar do ICMS, pelo expediente canhestro da voluntariedade, porquanto o uso do ICMS traria o ônus de carregar consigo todas as vedações do regime constitucional tributário. Nesta substituição de nomes, o FETHAB vê-se travestido de obrigação contratual, quando nada mais é do que um verdadeiro tributo, na forma de adicional de ICMS.

Diga-se o mesmo quanto ao aproveitamento das obrigações acessórias, relativas às operações praticadas pelo contribuinte, que são integralmente aproveitadas pelo FETHAB. E, ainda, as sanções interventivas ou patrimoniais, hauridas da legislação do ICMS e aplicadas por extensão ao FETHAB.

Imunidades tributárias às exportações são irredutíveis e irrenunciáveis, por serem regras de não competência. Ou seja, os estados não dispõem de competência tributária para reduzir seu âmbito material.

Por isso, o FETHAB, uma vez considerado “imposto” com destinação específica, encontra-se em flagrante conflito com a proibição de vinculação da receita de imposto a fundo, órgão ou despesa, nos termos do art. 167, IV da CF.

O paralelismo, para não dizer identidade, entre as contribuições ao FETHAB e o ICMS está claramente revelado, mormente pela imputação das penalidades por não recolhimento aos fundos ter como consequência o não aproveitamento de benefícios ou regimes especiais do próprio ICMS.

As inconstitucionalidades reforçam-se com a destinação da arrecadação a fundo especial. Mesmo que na forma de “adicional” do ICMS, sua receita não poderia ser destinada a fundo, haja vista o princípio da não vinculação do art. 167, IV e parágrafo único da CF, pelo qual é vedada a vinculação de receita de impostos a órgãos, fundos ou despesas.

O FETHAB inaugura um verdadeiro “estado de coisas inconstitucional”, tamanha a extensão de suas afetações. Uma metodologia fundada na certeza do direito, como de resto todo o conteúdo do princípio de segurança jurídica, exige uma permanente interpretação da legislação conforme a Constituição.

Por meio do FETHAB e outras formas de fundos equivalentes, Mato Grosso promove uma flexibilização do sistema rígido de limitações constitucionais ao poder de tributar, ao converter as competências do ICMS em receita de caráter optativo, na forma de imposto com destinação específica, apurada por “multiplicadores do valor fiscal de referência”, por ato do poder executivo, gerida à margem do orçamento, em “fundos especiais”, e cobrada de quem tem direito a regimes especiais, diferimentos, isenções ou imunidades tributárias.

O art. 150, IV, da CF, não veda apenas o excesso de exação. O texto do dispositivo é clarividente, ao usar os termos “utilização” e “efeito”: “Utilizar tributo com efeito de confisco”. Ora, exigir imposto de hipótese de imunidade, por ser forma de não competência do Estado, implica em evidente forma de confisco.

Portanto, o Programa FETHAB desobedece diversas regras constitucionais, algumas já apontadas acima. Adicionalmente, desvelam-se notáveis inconstitucionalidades da contribuição ao FETHAB, a justificar seu necessário controle por parte do Supremo Tribunal Federal, com flagrante agressão a princípios e regras constitucionais, dentre outras:

Art. 146, III, “a” ao não observar o disposto em lei complementar, no caso, o Código Tributário Nacional – CTN ou mesmo as regras que prescrevem as condutas vinculantes sobre tomada de crédito e respeito à imunidade nas exportações, previstas na Lei Complementar nº 87/1996.

Art. 150, II – ao desrespeitar em diversas situações o princípio da isonomia ou da não discriminação, por criar tratamento diferente para contribuintes que estão em situação equivalente. É o caso do cerceamento do direito legítimo a diferimentos, regimes especiais ou imunidade.

Art. 150, V – por “utilizar tributo com efeito de confisco”. E isso se verifica sempre que o regime gerar um excesso de exação sem amparo constitucional. Ora, as distorções levadas a cabo pelo FETHAB corroboram diversas situações de majoração mais gravosa do ICMS.

Art. 150, § 6º – porque o regime especial ou diferimento somente podem ser modificados por lei específica do ICMS, na medida que subsídio ou isenção, relativos a impostos, “só poderá ser concedido” mediante “lei específica estadual”, que “regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo”.

Art. 152 – aos Estados é vedado estabelecer diferença tributária entre bens em razão de sua procedência ou destino. O FETHAB, dentre outros malefícios, gera distorções nas remessas de mercadorias para exportação, com cobrança do FETHAB sobre o volume exportado, e bem assim para as operações interestaduais com diferimento ou substituição tributária.

Art. 154, II – somente a União pode criar “adicional” de imposto (ICMS), mas unicamente em presença de guerra externa ou sua iminência, na forma de impostos extraordinários. O FETHAB nada mais é do que um adicional do ICMS.

Art. 155, II – supera-se a competência do ICMS ou criação de tributo sem competência, ao legislar sobre ICMS, a pretexto de regular uma exação não tributária, unicamente para cobrar “imposto” sem os limites do regime constitucional tributário de limitações ao poder de tributar.

Art. 155, § 2º, inciso I e inciso XII e art. 150, § 7º – em virtude da quebra da sistemática de não-cumulatividade do ICMS e distorção da regra que permite substituição tributária para frente, sem observância dos critérios da LC nº 87/1996.

Art. 155, § 2º, inciso II – no caso de diferimento, a operação diferida (do produtor) gera direito de crédito em favor do adquirente, pois não há que se falar em “isenção” na etapa inicial, sujeita a “monofasia”. Logo, inaplicável o inciso II ao diferimento, pois, na ausência de isenção, deve ser mantido o direito de crédito na aquisição da mercadoria.

Art. 155, § 2º, inciso X, alínea a – em virtude da violação à imunidade da exportação e das operações equiparadas.

Art. 155, § 2º, inciso VI – as alíquotas do FETHAB, como adicional do ICMS, na condição de “alíquotas internas”, aplicadas “nas operações relativas à circulação de mercadorias”, “não poderão ser inferiores às previstas para as operações interestaduais”. No caso, são inferiores e variáveis, atualizadas por decretos, e sem qualquer controle de limite à atualização monetária.

Art. 155, § 2º, inciso X – a cobrança do FETHAB sobre imunidade à exportação de mercadorias desrespeita, ao mesmo tempo, (a) a proibição de incidência sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, e o dever de (b) assegurar “a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações anteriores”.

Art. 155, § 2º, inciso XII – descumpre-se a observância de lei complementar quanto aos regimes de substituição tributária, compensação do imposto, manutenção de crédito, e quanto à remessa para outro Estado e exportação para o exterior, de mercadorias, dentre outros.

Art. 167, inciso IV da CF – diante da vedação da destinação prévia do produto arrecadado com impostos a fundo, órgão ou despesa, o FETHAB se presta como medida para ocultar o real propósito de desviar para fundos autônomos ao orçamento o montante do ICMS, ou mesmo cobrar tributos de situações de não competência (imunidade) ou protegidas por regimes especiais gerais.

Art. 165, § 5º, inciso I da CF – e por não respeitar o processo orçamentário, incluindo controle na LDO e transparência fiscal. (…)

Art. 170, inciso IV da CF – pela afetação ao princípio de livre concorrência e proteção da unidade nacional do mercado.

E isto porque o efeito do FETHAB não é outro senão aquele de supressão prática dos benefícios fiscais outorgados na forma de “regimes especiais” (art. 8º, II da art. 7º da Lei nº 7.263/2000), o que deve ser afastado, pela prevalência do art. 178 do CTN, que veda qualquer renúncia aos direitos estabelecidos na lei concessiva, excetuado o descumprimento das condições, afora a prevalência da imunidade às exportações e das garantias de não cumulatividade do ICMS.

Em conclusão, toda a estrutura do Programa FETHAB, previsto na Lei nº 7.263/2000 e demais leis sucessivas, encontra-se afetada pelo vício da inconstitucionalidade, ao promover a cobrança de valores sem competência legislativa, em afronta à prévia destinação de seus recursos e por manipular uso de fundos sem respaldo normativo, como acima explicitado. O reconhecimento desta inconstitucionalidade, por outro lado, não afastará o direito à vigência plena da legislação do ICMS, quanto aos regimes especiais, diferimento e imunidade à exportação. Todos encontram-se mantidos em vigor. O diferimento e regimes especiais, assim como a incidência da imunidade à exportação estão previstos em leis tributárias prévias e independentes do Programa FETHAB. Ou seja: a sua revogação ou declaração de inconstitucionalidade não atingem aquilo que se encontra previsto na própria lei, já que possuem regras de incidência autônoma.


[1] BRASIL, Supremo Tribunal Federal – STF, AI nº 859321, Relator: Ministro Dias Toffoli, j. 21.11.13, DJe-238 04.12.2013.

[2] BRASIL, Supremo Tribunal Federal – STF, ADI nº 2056, Relator: Ministro Gilmar Mendes, j. 30.05.07, DJe-082 16.08.07.

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    é professor titular de Direito Financeiro e livre-docente em Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado, foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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