Tribuna da Defensoria

A defensoria pública no enfrentamento do autoritarismo estrutural

Autor

  • Ígor Araújo de Arruda

    é defensor público na Defensoria Pública de Pernambuco autor do livro “Defensor Público Estadual: guia completo sobre como se preparar para a carreira” (JusPodivm 2019 2.a ed.) coautor no livro “Teoria Geral da Defensoria Pública” (D’Plácido 2020) pós-graduado em Direito Público e foi defensor público no Maranhão.

3 de março de 2020, 8h03

O presente texto é uma síntese do artigo a ser publicado na obra coletiva “Defensoria Pública, Democracia e Processo II”, vol. 3 da Biblioteca Estado Defensor, motivo pelo qual haverá supressão de relevantes citações jurídicas, históricas e literárias.

Trata-se de estudo sobre o papel da Defensoria Pública, enquanto instrumento e expressão do regime democrático, para enfrentamento da manutenção do autoritarismo estrutural e do estado de coisas de cólera social, seja de modo preventivo, educativo e solidário, extrajudicial e coletivo, seja pela função de proteção e difusão dos direitos e valores humanos e da cidadania.

Existe civilização e democracia na barbárie? À semelhança de uma ditadura, e guardadas suas proporções, a barbárie instala-se no atual modelo de sociedade mediante difusão da violência como solução-curinga; o autoritarismo ideológico como estratégia de pensamento, de gestão governamental e de política pública; a rejeição e a discriminação negativa como critérios de seleção natural e estratificação social; a destruição de minorias – qualitativas ou quantitativas – com o sepultamento de direitos, e a banalização do mal com permissão de comportamentos destrutivos.

O passado do povo brasileiro o condena. Somos herança da escravização, do capitalismo selvagem, do patrimonialismo e da corrupção em suas múltiplas formas, do autoritarismo, mandonismo, patriarcalismo, paternalismo, favoritismo, racismo, sexismo e outras máculas.

A escravidão fez da raça e da cor marcadores de diferença fundamentais, definiu desigualdades sociais, moldou condutas, ordenou etiquetas de mando e de obediência, além de criar uma sociedade paternalista, uma das bases da sociedade autoritária ou conveniente com o autoritarismo[1].

O sistema escravocrata não foi apenas uma máquina mercantil e de produção de capital; revelava padrão de conduta humana, um comportamento (anti) ético-social. Teve o poder de perpetuar formas antigas de dominação mediante uma estrutura social estratificada, dividida em classes bem acentuadas. A escravização foi uma forma de desigualdade, de dominação, de estratificação e de hierarquia.

A desigualdade no Brasil não tem apenas duas faces. Tem uma profusão delas: econômica, de renda, racial, social, regional, de gênero, de geração, de oportunidade, cultural.

O autoritarismo como política de Estado tende a perpetuar estruturas sociais desiguais e de mando, falhas estruturais incompatíveis com os fundamentos e objetivos da República brasileira e a democracia. Em outras palavras, o autoritarismo é o avesso da democracia, sua antinomia, sua versão antípoda.

O autoritarismo enraizado perpetua uma forma de escravização atual, a da exclusão social, da marginalização das minorias, de invisibilidade dos pobres e classes subalternas e estigmatizadas, nas quais se incluem os grupos sociais vulneráveis, diretamente representados pela Defensoria Pública (arts. 4.° da LC n. 80/1994 c/c 134, caput, da CRFB).

A própria exclusão social fomentada por políticas governamentais autoritárias já é fator de vulnerabilidade (vulnerabilização), circunstancial ou permanente.

Uma democracia consolidada não combina com a persistência dos perniciosos “ismos”: racismo, mandonismo, paternalismo, patriarcalismo, masculinismo, sexismo, patrimonialismo, favoritismo etc.

Enquanto o passado irradiar seus nefastos efeitos no presente e o futuro repetir o passado, ainda estaremos de mãos atadas com o autoritarismo e uma democracia fictícia.

A misoginia, pensamento autoritário e segregativo, é a raiz da violência contra o gênero feminino[2], do feminicídio e do transfeminicídio, das desigualdades nas relações de trabalho e sociais. É perigoso permitir a disseminação de valores de família tradicional e patriarcal quando há por trás tentativa de disseminar ódios segregativos, misoginia e desigualdade. Importante lembrar que o preconceito atinge também a própria vítima.

A educação da população é um passo para a superação de conceitos discriminatórios, às vezes escondidos na alcunha eufemista de conservadorismo, mais um “ismo” deletério ao avanço social e civilizatório.

O silêncio jamais será um meio adequado de combate do autoritarismo, senão uma reafirmação de intolerâncias e de todo o arsenal que subjaz no autoritarismo.

Superar as barreiras do silêncio e da inação condescendente é um imperativo para combater o autoritarismo estrutural, o qual nunca desaparece, senão exsurge com nova roupagem.

A educação em direitos – com inclusão das diversas plataformas da mídia –, a efetivação da cidadania, a humanização da sociedade, a difusão do ordenamento jurídico e a promoção dos direitos humanos são formas reais de enfrentamento do autoritarismo, este base do desajuste social.

O antissemitismo e o holocausto são representativos de como a intolerância, o nacionalismo, o racismo e o colapso ético-moral da sociedade conduzem a um extermínio de minorias e de grupos sociais e étnicos indesejados – a Solução Final.

Hannah Arendt (1963)[3] descreveu essa banalidade do mal, cuja ideologia intolerante era consolidada e integrava a máquina de funcionamento do organismo social alemão, tanto é que a sociedade precisou passar por um processo de desnazificação após queda do nazismo hitlerista.

A desnazificação nada mais foi do que a limpeza do autoritarismo, a promoção dos direitos humanos e o restabelecimento da tolerância, da democracia e da igualdade dos povos. O holocausto foi fruto desses valores, isto é, da falta de valores civis e morais, da aceitação de condutas exterminadoras como algo natural e aceitável em benefício coletivo.

O autoritarismo casa com a tirania, flerta com o abuso, dialoga com a intolerância, a discriminação e o preconceito.

Percebemos no Brasil, em outra perspectiva, uma lógica processual penal perversa, cujo procedimento da ação penal serve como rito de passagem solene para mera confirmação de elementos informativos da investigação criminal em busca da condenação, esta já decretada na consciência do julgador naturalmente parcial após contato cognitivo com as provas e demais elementos investigativos de formação de convencimento.

O instituto do Juízo das Garantias (Lei n. 13.964/2019) inova o ordenamento jurídico brasileiro para mitigar a força da arbitrariedade estatal e do inquisitivismo penal, por isso a relutância de muitas instituições em sua implementação (ADIs 6.298, 6.299 e 6.300). É o autoritarismo impregnado, a arbitrariedade consolidada na cultura jurídica, além da natural dificuldade de aceitação e adaptação às mudanças.

Analisando o autoritarismo estrutural por outros viés, o ódio nosso de cada dia também é propagado com frequência – e com slogans segregativos – e tem como base o autoritarismo cultural, ensinado de geração a geração[4], por isso fica enraizado e impregnado no inconsciente coletivo.

Precisamos interromper o fluxo do ódio e da viralização da segregação. O autoritarismo precisa ser desmascarado em cada forma de sua expressão, extirpado do inconsciente coletivo, da cultura enraizada, mediantes ações propositivas – particulares ou público-institucionais.

A preocupação encontra-se no modo de pensar e de agir das pessoas e sua consolidação nos costumes, no hábito social, na cultura de uma nação e nos instintos – sobretudo primitivos – de um povo. O combate ao autoritarismo é de interesse de todas e de todos.

O autoritarismo expressa-se de inúmeras formas nas relações sociais, antigas ou atuais: bandido bom é bandido morto; se está apanhando do policial, é porque fez alguma coisa; presunção de inocência só serve à impunidade; lugar de mulher é na cozinha; mulher pra casar tem que ser bela, recatada e do lar; mulher branca é para casar, as negras, para trabalhar, e as mulatas, para fornicar; a liberdade é negra, mas a igualdade é branca.

E assim continuam: a pobreza é a causa do impacto ambiental; o pobre impede o crescimento econômico do país; agora os gays querem se casar e adotar, virou moda; as minorias têm de se adequar às maiorias, se adaptam ou desaparecem.

A violência, até mesmo linguística, é uma doença contagiosa. O autoritarismo é um vírus que a propaga, por isso deve ser eliminado, se quisermos sobreviver em harmonia.

Depreende-se, então, que a Defensoria Pública, como expressão e instrumento do regime democrático (EC n. 80/2014), assume protagonismo nessa missão cotidiana de enfrentamento do autoritarismo estrutural. A democracia é um pressuposto básico e uma premissa categórica de atuação da instituição, seja no âmbito interno, seja na perspectiva externa.

Sabe-se que a instituição foi criada constitucionalmente no Brasil, enquanto concretizadora do modelo publicista de assistência jurídica gratuita (salaried staff model), pela Constituição de 1988, conforme disposição do art. 5.°, inc. LXXIV, segundo o qual “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, isto é, aos necessitados, na inteligência complementar do art. 134.

Percebe-se que a instituição é instrumento concretizador da política pública e do direito humano fundamental de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados e grupos sociais vulneráveis, de forma a consolidar o acesso à justiça em todas as suas dimensões.

Não se deve mais limitar o alcance da norma constitucional da Defensoria Pública a uma atuação meramente individualista e judiciária, vertentes tradicionais e históricas da instituição. É evidente que essas funções ainda sobrevivem e continuarão sendo exercidas no cotidiano, não apenas da Defensoria Pública.

Há pouco, a Defensoria Pública era mera instituição estatal para patrocínio de pessoas que não podiam pagar por um advogado, de caráter acessório, complementar e subsidiário, de sobreaviso jurídico, de modo a prestar assistência judiciária individual gratuita nas demandas sociais mais comuns.

Hoje, são debatidos novos institutos jurídicos, como custos vulnerabilis – intervenção constitucional como guardiã dos vulneráveis –, legitimidade defensorial coletiva para defesa da moralidade administrativa, enquanto direito transindividual difuso, com enfrentamento do patrimonialismo e da corrupção, investigação criminal defensiva, proteção ambiental, além de outros temas que surgem com a pós-modernidade, a globalização e a disruptividade social.

O foco do ordenamento jurídico passa a ser outro, fomentado por fundamentos e objetivos republicanos em busca de uma civilização avançada, solidária, humanizada e democrática (arts. 1.° a 6.° da CRFB).

Uma instituição pública, autônoma, de Estado (e não do Estado), defensora dos direitos humanos assume novo papel perante um organismo social em constante transformação e com novos desafios. A vocação constitucional continua essencialmente a mesma; muda-se, pois, a forma de atuação e o arsenal jurídico e estratégico que lhe dá suporte.

Pós-modernidade, aceleração e deturpação da informação, ressignificação e adulteração do passado e do conteúdo histórico, desapego pela cultura e pela história, virtualização do mundo, relações sociais e interpessoais líquidas e fragilizadas, cultura do ódio e da intolerância desenfreada, violência como estratégia de solução de conflitos. Esse é o novo cenário.

A instituição defensorial passa por um evidente processo de mutação constitucional, extraído de uma mudança de olhar do intérprete, ainda que concomitantemente haja alteração real de seu texto (EC 45/2004, 69/2012, 74/2013 e 80/2014).

Seu papel fundamental fica evidenciado, de modo que a Constituição prevê sua atuação fundamentalmente em segmentos, tais como orientação jurídica, extrajudicialidade como imperativo categórico, promoção e defesa dos direitos humanos, educação em direitos, atuação individual e coletiva, sempre de forma gratuita e integral e visando ao interesse e os direitos das pessoas vulnerabilizadas, vulneráveis.

A Defensoria Pública passa a ser responsável pela solidificação do princípio da proporcionalidade, em suas duas facetas: vedação ao retrocesso e proibição do excesso, este lido também como abuso e autoritarismo estrutural.

Cada vez mais a sociedade exige uma ressignificação de seus valores, além do controle dos excessos e do pensamento autoritário com rápido crescimento e disseminação. E a Defensoria Pública assume protagonismo nessa realidade quase distópica, dada sua vocação.

Uma instituição extrapoder e contrapoder, de contenção do poder punitivo e do abuso, deve promover os direitos humanos, educar a população para a autonomia pessoal, a libertação da exclusão social e da marginalização, a cidadania inclusiva e plena.

A educação em direitos e a promoção dos direitos humanos não são uma função defensorial acessória, atípica e de menor importância. São funções institucionais típicas, pois decorrem diretamente do texto constitucional, além de prioritárias, já que evitam as demais atuações institucionais, judicializantes e litigiosas, individuais ou coletivas.

Num organismo social em que o ódio se instala, o autoritarismo impera, a violência passa a ser a tônica e a solução imediatista, a tomada de providências para conscientização e restauração de um inconsciente coletivo pacífico urge.

Autoritarismo é sinônimo de perversão dos valores constitucionais, a contradição com os valores humanos fundamentais à construção social pacífica, solidária e igualitária.

De nada adianta a República brasileira ter como fundamentos a dignidade da pessoa humana, a cidadania e o pluralismo político, se forem adotadas como políticas de Estado ações governamentais de repressão às minorias, de disseminação do ódio e da intolerância, de segregação, sem justiça social e isonomia.

Realmente a Constituição brasileira não combina com autoritarismo, intolerância, discriminação, ódio, desigualdade, injustiça distributiva, desamparo, segregação, marginalização.

O autoritarismo já estruturado na história brasileira passa a ser uma meta de atuação defensorial, pois aquele confronta todos os demais valores republicanos, portanto os valores defendidos pela Defensoria Pública.

Esta não pode assumir feição político-partidária, na medida em que já é uma instituição pública essencial à democracia e à justiça, responsável pela efetivação de política pública e de direitos fundamentais, cujas funções institucionais irradiam difusamente seus efeitos e resultados por toda a sociedade, de tal forma que sua importância na construção do diálogo, da cultura democrática e no impedimento do avanço fascista e de pensamento autoritarista é um imperativo categórico premente.

O enfrentamento do autoritarismo, como a etiologia dos maiores males da sociedade, não figura como mera possibilidade institucional, senão como dever constitucional, de modo que deve haver planejamento estratégico e plano de ação para sua intervenção, mormente nas funções com viés ainda mais contramajoritário e iluminista.


[1] Sobre o autoritarismo brasileiro. Lilia Schwarcz, 2019, p. 27-28.

[2] Em briga de marido e mulher, a Defensoria Pública também mete a colher. Ígor Araújo de Arruda, 2015. Disponível em: http://www.justificando.com/2015/07/20/em-briga-de-marido-e-mulher-a-defensoria-publica-tambem-mete-a-colher/. Acesso em 28 fev. 2020.

[3] Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Hannah Arendt, 1999.

[4] Todos contra todos: o ódio nosso de cada dia. Leandro Karnal, 2017.

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    é defensor público na Defensoria Pública de Pernambuco, professor e coordenador no curso Mege e pós-graduado em Direito Público. Autor do livro Defensor Público Estadual: guia completo sobre como se preparar para a carreira (Juspodivm/2017).

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