Opinião

Julgar Habeas Corpus aumenta, e não diminui produtividade de tribunais

Autor

  • Alberto Zacharias Toron

    é advogado criminalista mestre e doutor em Direito Penal pela USP ex-diretor do Conselho Federal da OAB; ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (95/96); membro fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e professor de Processo Penal da Faap.

3 de março de 2020, 6h02

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Sob os pomposos títulos “Volume de pedidos de HC aumenta no STJ e dificulta definição de teses” (29/2) e “STJ discute limites do Habeas Corpus contemporâneo a apelação” (26/2), a prestigiosa revista eletrônica ConJur divulgou importantes reportagens nas quais distinguidos ministros da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça apresentam críticas ao que qualificam como emprego “exagerado” do Habeas Corpus. Um deles aponta que deveria existir um agravo no processo penal, a exemplo do que ocorre do processo civil; outros mostram preocupação com a produtividade do STJ e criticam o fato de que “poucas questões são discutidas por recurso especial”, o que tem dificultado o tribunal de cumprir sua missão, que é a de “unificar a jurisprudência”. Até mesmo um tema sedimentado na jurisprudência, isto é, do cabimento do Habeas Corpus na pendência da apelação quando, por exemplo, se discutir alguma nulidade, está sendo alvo de questionamento (HC 482.549, relator ministro Rogério Schietti).

Embora se assuma que várias questões são discutidas pela via do Habeas Corpus por conta de falhas do próprio Judiciário ou em razão do desrespeito dos tribunais inferiores à jurisprudência do STJ, a tônica dos pronunciamentos vai na linha da restrição ao emprego do writ.

É empírica e teoricamente equivocada a ideia de que o Habeas Corpus atrapalhe a produtividade do STJ ou de que não permita a uniformização da jurisprudência. Primeiro, com o perdão da obviedade, porque é missão deste tribunal superior julgar Habeas Corpus, ou seja, está compreendido naquilo que se pode chamar de produtividade, inclusive no que diz com a uniformização da jurisprudência.

Tomemos como exemplo a questão da liberdade até o trânsito em julgado. O Supremo Tribunal Federal, em 2016, definiu a prisão em segunda instância por meio de um HC (HC 126.292, relator ministro Teori Zavascki). Embora tal decisão não tivesse efeito vinculante, como reconhece a matéria do dia 29/2, “o precedente foi adotado em todo o país”. Antes ainda, em 2006, o Pleno do STF, também pela via do writ, havia reconhecido a possibilidade de o sujeito ficar em liberdade até o trânsito em julgado, salvo as hipóteses de prisão preventiva (HC 84.078, do qual foi relator o ministro Eros Grau, DJ 5 de fevereiro de 2009).

Esse vai e vem do STF gerou a impetração de inúmeros Habeas Corpus e, convenha-se, não poderia ser diferente. O aumento da atividade jurisdicional na área penal e o aparelhamento das Defensorias, como lembrou a ministra Laurita Vaz (29/2), também implicou o aumento de impetrações. Noutro giro, é bom recordar que, em fevereiro de 2006, o STF, também em Habeas Corpus (HC 82.959, relatado pelo ministro Marco Aurélio), aliás, impetrado por um preso, julgou inconstitucional a regra da Lei dos Crimes Hediondos que impôs o regime integralmente fechado para os condenados por crimes hediondos e os que lhe são equiparados (Lei 8.072/90, artigo 2º, parágrafo 1º). Posteriormente, sempre incidenter tantum, declarou-se a inconstitucionalidade do artigo 40 [1], III, da Lei 11.343/2006, que vedava a concessão de liberdade provisória sem o exame da presença dos pressupostos cautelares (HC 104.339, relator ministro Gilmar Mendes, DJe 6 de dezembro de 2012). Idem ao se julgar a inconstitucionalidade do artigo 21 do Estatuto do Desarmamento, Lei 10.826/2003 (HC 100.362, relator ministro Celso de Mello, DJe 7 de dezembro de 2009).

O ponto é que se o STF consegue pela via mandamental estabelecer teses de caráter geral, como, aliás, o Habeas Corpus coletivo para mulheres (HC 143.641, julgamento em 21 de fevereiro de 2018, relator ministro Ricardo Lewandowski), por que seria diferente com o STJ?

É preciso dizer que se a inconstitucionalidade pode ser declarada numa ação direta de inconstitucionalidade ou num recurso extraordinário, pode igualmente num HC. O mesmo vale para o recurso especial. O que nele se chama de negativa de vigência da lei pela sua preterição em caso em que deveria incidir (negativa direta) ou indevida aplicação a fato no qual a lei não deveria ser aplicada (negativa indireta), no campo do writ isso recebe o nome de constrangimento ilegal. Em outras palavras, deixar de aplicar uma atenuante quando ela tem lugar pode ser chamado de negativa de vigência da lei ou de constrangimento ilegal. O mesmo, sem tirar e nem por, se dá quando se aplica uma agravante indevida. Veja-se que tanto no recurso especial como na ação autônoma de impugnação do habeas não se admite a discussão dos fatos. Daí a sábia decisão da lavra do saudoso ministro Assis Toledo no HC 17, referindo-se especificamente à substituição do recurso especial pelo habeas:

Sendo assim, como no recurso especial, criado pela Constituição de 1988 (artigo 105, III), o objeto só pode ser, da mesmíssima forma que no Habeas Corpus, uma quaestio iuris, não uma intricada quaestio facti, é possível prever-se a substituição de um pelo outro, quando houver coincidência de fundamentos e interesse da parte em apressar a decisão judicial. [2]

Não há, com efeito, razão lógica e nem jurídica para se impedir o manejo do writ quando a questão versada for compatível com seus limites de cognição. Envolvendo questão puramente de direito, ainda que controvertida ou de alta indagação, a ordem deve ser conhecida, pois a Constituição, ao disciplinar o Habeas Corpus, impõe que sempre se concederá a ordem quando alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer constrangimento ilegal em sua liberdade de ir e vir (artigo 5ª, inciso LXVIII). De resto, com o ministro Pertence, não custa lembrar que é princípio sedimentado na jurisprudência brasileira de que a recorribilidade da decisão ou a efetiva pendência de recurso contra eles não inibe a admissibilidade paralela do Habeas Corpus [3]. Idem: “É cabível Habeas Corpus mesmo quando pendente julgamento de recurso de apelação que veicule a mesma questão” (HC 77.858, relator ministro Maurício Corrêa, DJ 12 de fevereiro de 1999).

Como advertiu o desembargador Dante Busana, ainda ao tempo do extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo:

Garantia constitucional e ação de direito processual constitucional, o Habeas Corpus não conhece outros limites que os estabelecidos na Carta Magna. Inaceitável sustentar, como faz a ilustrada Procuradoria de Justiça, seu não cabimento em hipótese em que haveria constrangimento ilegal à liberdade física porque prescrita a pretensão punitiva, a pretexto de que quem a sofre apelou da sentença condenatória e no julgamento do recurso a eventual extinção da punibilidade poderá ser melhor apreciada. [4]

Em resumo, o tribunal é produtivo quando julga Habeas Corpus e pode cumprir sua missão constitucional de uniformização da jurisprudência também pela via mandamental. É, para exemplificar, exatamente o que se fez no julgamento do HC 435.934, ao se repudiar a expedição de mandados de busca e apreensão coletivos: “Não é possível a concessão de ordem indiscriminada de busca e apreensão para a entrada da polícia em qualquer residência” (relator ministro Sebastião Reis Jr.) Por fim, não é por outra razão que boa parte das súmulas editadas pela 3ª Seção do STJ foram fruto de julgamentos em Habeas Corpus.


[1] Os crimes previstos nos arts. 33, caput e parágrafo 1º, e 34 a 37 desta lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.

[2] 3ª Seção, DJ 26/6/1989.

[3] RHC n. 82.045, DJ 25.10.02; HC n.º 82.968/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 20.06.2003; HC n. 83.346, do mesmo relator, DJ 19/8/2005 e STJ HC n.º 77703/SP, rel. Min. Laurita Vaz, DJ 29.6.07.

[4] JUTACRIM, ed. Lex, 74/140-142.

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  • é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e membro fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

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