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STJ errou ao excluir dano moral para condomínios?

2 de março de 2020, 9h14

Por Ana Beatriz Ferreira de Lima Flumignan, Silvano José Gomes Flumignan, Wévertton Gabriel Gomes Flumignan

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Uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça foi destaque nacional ao excluir indenização por dano moral a condomínio pelo seu enquadramento como ente despersonalizado. Contudo, essa linha de argumentação parece equivocada.

O Resp 1.736.593/SP[1] pautou sua argumentação com base em três premissas. A primeira é de que deveria ser afastada a ideia de que os condomínios seriam pessoas jurídicas. A segunda de que não seria possível a identificação de honra objetiva para condomínio. A terceira de que ente despersonalizado não poderia sofrer dano moral.

A primeira premissa já foi enfrentada em duas Jornadas de Direito Civil do CJF. O enunciado 90 da I Jornada afirmou que deveria ser reconhecida a personalidade jurídica ao condomínio edilício[2]. Esse entendimento foi reafirmado pelo enunciado 246 da III Jornada[3]. Flávio Tartuce expõe esse entendimento ao prever que o rol do art. 44 do Código Civil seria meramente exemplificativo, o que permitiria a inclusão do condomínio nessa lista[4]. Para tanto, o autor menciona três vantagens nesse entendimento: as reuniões seriam profissionalizadas pela eleição de condôminos dirigentes; diversos serviços poderiam ser prestados, tais como atividades de recreação e transporte; seria possível a celebração de contratos, inclusive, contratos de aquisição de imóveis[5].

No entanto, esse não é o entendimento prevalente. Como ressaltado no próprio Resp 1.736.593/SP, o entendimento majoritário é o de que os condomínios teriam a natureza jurídica de ente despersonalizado, mas não pelo argumento levantado pelo STJ. O tribunal sustentou que faltaria affectio societatis aos condomínios. No entanto, tal elemento não está presente em diversas modalidades de pessoas jurídicas, como a EIRELI, sociedade limitada unipessoal e na maioria das sociedades anônimas.

De qualquer forma, caso se adotasse o entendimento de que os condomínios seriam pessoas jurídicas não haveria razão para afastar a condenação por dano moral em virtude do entendimento da Súmula 227 do STJ[6]. O afastamento dessa tese pelo julgado, como se verá, não é impedimento para a titularidade de danos morais pelos condomínios.

A segunda premissa do julgado tratou da impossibilidade de os condomínios sofrerem ofensa à honra objetiva. No julgado restou exposto que quem sofreria ofensa seriam os condôminos individualmente. Esse argumento não encontra respaldo na realidade concreta. A grande maioria das pequenas e médias cidades e até mesmo algumas de grande porte reconhecem condomínios com signos próprios de identificação, como nome, identidade visual e características arquitetônicas, que permitem perceber ofensa à honra objetiva não individualizada, mas coletiva.

Nem sempre o titular da unidade autônoma sofrerá o prejuízo individualmente. A ofensa à honra objetiva de um determinado local pode ser tamanha que cause um desinteresse em terceiros por adquirir ou locar as unidades . Se a repercussão for elevada, o condomínio poderá ser inviabilizado e isso não pode ser mensurável na visão tradicional de que os prejuízos são sofridos em caráter exclusivo e particular.

O terceiro pressuposto do julgado foi o que ganhou repercussão nacional e se constitui no maior equívoco do julgado. O acórdão afirma que entes despersonalizados não podem sofrer dano moral.

O Resp n. 931.556/RS, da mesma relatoria do acórdão ora discutido, permitiu a indenização por dano moral a ente despersonalizado. Nesse julgado, o STJ entendeu ser cabível indenização por dano moral a nascituro.

Ora, o art. 2º do Código Civil adota a teoria natalista ao prever que o início da personalidade ocorre a partir do nascimento com vida. Isso não significa que o nascituro, mesmo sendo um ente despersonalizado, não tenha direitos[7].

Trata-se da aplicação da visão clássica de que os sujeitos de direito podem ser personalizados ou despersonalizados, sendo que a diferenciação entre as espécies é ligada à amplitude da capacidade jurídica. Enquanto os personalizados podem ter, em tese, aptidão genérica para a aquisição de direitos e deveres, os despersonalizados têm aptidão específica[8].

Essa distinção é feita em relação ao ente despersonalizado nascituro e deve ser feita também para o condomínio ao se perceber que ainda que se negue à personalidade jurídica a esses entes, esse fator, por si só, não é capaz de afastar a titularidade de direitos.

No âmbito da tutela coletiva, é possível falar, inclusive, em dano moral coletivo, no qual se atinge uma coletividade de pessoas. Essa coletividade é um ente despersonalizado. Neste sentido, inclusive, André de Carvalho Ramos expõe que este tipo de dano atinge toda a coletividade que, “apesar de ente despersonalizado, possui valores morais e um patrimônio ideal que merece proteção”[9].

A lei, como se sabe, prevê alguns direitos aos condomínios de maneira expressa. É o que ocorre, por exemplo, com a capacidade processual[10], mas não prevê, especificamente, a titularidade de danos morais. Entretanto, ao contrário do que afirma a decisão, é possível notar que alguns condomínios têm sua identidade autônoma à dos titulares das unidades, independentemente de existência de personalidade jurídica e que determinados acontecimentos não atingem a individualidade dos condôminos, mas maculam os próprios signos de identificação desse complexo de bens e relações jurídicas.

Assim, nos dois enquadramentos possíveis dos condomínios, como pessoa jurídica ou ente despersonalizado, é possível a verificação concreta de indenização por dano moral, não merecendo prosperar o atual entendimento do STJ sobre o assunto.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1.736.593/SP. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. 3ª turma. DJE 13/02/2020.

[2] Enunciado n. 90 da I Jornada de Direito Civil. Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício nas relações jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar interesse.

[3] Enunciado n. 246 da III Jornada de Direito Civil. Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício.

[4] Art. 44 do Código Civil. São pessoas jurídicas de direito privado:

I – as associações;

II – as sociedades;

III – as fundações.

IV – as organizações religiosas;

V – os partidos políticos.

VI – as empresas individuais de responsabilidade limitada.

[5] TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas. 10ª ed. Vol. 4. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 258-262.

Para reforçar que não se trata de entendimento isolado, existem estudos que partem da premissa de que o condomínio teria a natureza de pessoa jurídica. Em exemplo está em VASCONCELOS, Fernando. Pessoa jurídica: dano moral. In: Doutrinas Essenciais de Dano Moral. Vol. 1, p. 1197-1203 (acesso online p. 1-6), Jul./2015.

Sobre a aquisição de imóveis por condomínios, vide FRONTINI, Ana Paula. Titularidade de direitos imobiliários por entes despersonalizados: paradoxo no ordenamento jurídico pátrio. In: Revista de Direito Imobiliário, vol. 83, p. 33-47 (acesso online p. 1-11), Jul-Dez./2017.

[6] Súmula n. 227 do STJ. A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.

[7] Art. 2º do Código Civil. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

Evidentemente, existem autores que defendem a personalidade dos nascituros, entre os quais se destaca ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e. O nascituro no código civil e no direito constituendo do brasil projeto de código civil e projeto de constituição federal. In: Revista de Direito Privado, vol. 98, p. 307-317 (acesso online p. 1-8), Mar.-Abr./2019. Contudo, esse posicionamento é minoritário e, entre outros equívocos, parte da falsa premissa de que a titularidade de direitos seria algo inato às pessoas, quando em verdade, é uma aptidão dos sujeitos de direitos, sejam eles personalizados ou despersonalizados.

[8] COLLI, Fabrizio; FERRI, Fabrizio; GENNARI, Stefano. Codice civile: commentato per articolo con le soluzioni della giurisprudenza. Placência: La Tribuna, 2018, p. 29 (Comentários ao art. 1). “O nascituro, mesmo não tendo a plena capacidade de direito, é, portanto, um sujeito de direito, porque é titular de múltiplos interesses pessoais reconhecidos pelo ordenamento, seja nacional, seja estrangeiro, tais como o direito à vida, à saúde, à honra, à identidade pessoal, ao nascer são …” (tradução livre).

[9] RAMOS, André de Carvalho. “A ação civil pública e o dano moral coletivo”. In: Revista de Direito do Consumidor. V. 25, p.82.

[10] Art. 75 do Código de Processo Civil. Serão representados em juízo, ativa e passivamente: (…)

XI – o condomínio, pelo administrador ou síndico.