Opinião

Na crise, Supremo toma para si um papel que não lhe pertence

Autor

  • Rodrigo Valente Mota

    é advogado sócio do escritório Drummond Piva e Valente Advogados Associados especialista em Direito Empresarial e professor de Direito Empresarial das Faculdades Doctum.

31 de maio de 2020, 17h35

Há algum tempo todos vivenciam, sob inúmeros aspectos, forte pressão oriunda da pandemia que assola o mundo. As barreiras sanitárias e o isolamento social têm sido os principais vetores para a recessão econômica, exigindo do administrador público a adoção de uma série de medidas que possa refrear a recessão econômica, sem perder de vista a necessidade de manutenção do distanciamento social. Trata-se de uma equação de difícil solução.

O Poder Executivo não tem medido esforços para, dentro da realidade do país, minimizar os impactos da recessão econômica e manutenção dos postos de trabalho. Obviamente, não se poderia exigir do poder público, em tão curto espaço de tempo, e diante de um cenário de generalizadas incertezas, a adoção de medidas exaustivas que pudessem solucionar, como num passe de mágica, todos os problemas econômicos advindos da pandemia, que se multiplicam em velocidade voraz.

Algumas medidas até então adotadas foram bem recebidas pelo mercado interno, com destaque para o Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, que regulamenta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, definindo serviços de caráter público e atividades essenciais, cuja manutenção do funcionamento visou a garantir que o sistema social e econômico não entrasse em imediato colapso, além das várias medidas provisórias editadas com a intenção de manter o mínimo existencial do cidadão, garantia de emprego e estabilidade das relações jurídico-econômicas, dentre outras.

Todas as medidas, por maior que seja o espírito coletivo do administrador, estarão longe de alcançarem, em termos de aprovação social, unanimidade; mas não se pode negar que, no contexto histórico das últimas décadas, o Brasil tem inaugurado uma nova fase ou pelo menos um novo modelo de administração, em grande parte voltado para a retomada da intervenção mínima na autonomia privada das vontades manifestadas nas diversas relações jurídicas e proteção econômica dos setores industriais e comerciais.

Não contava o Executivo, contudo, que em meio à administração do caos oriundo da pandemia encontraria no próprio seio do Estado barreiras quase intransponíveis propagadas pelo mais alto escalão do Poder Judiciário.

Decisões de caráter unipessoal têm causado arrepio não só nos operadores jurídicos, mas, sobretudo, no administrador público e no setor privado, gerando impactos diretos na economia e no empresariado. A mais recente delas ao menos até a data em que foi escrito este artigo  está relacionada à suspensão da eficácia do dispositivo do artigo 29 da Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020, assim estabelecida: "Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal".

A ideia central do dispositivo foi apenas reafirmar aquilo que há muito a jurisprudência já havia consolidado no que concerne à configuração das doenças ocupacionais, tendo como fundamento os artigos 20 e 21 da Lei nº 8.213/91, ou seja, o nexo de causalidade ou concausalidade da doença e o trabalho. Se o trabalho é a causa da doença (nexo de causalidade) ou de agravamento da doença (nexo de concausalidade), configurada estará a doença ocupacional.

O dispositivo da medida provisória em questão não trouxe qualquer modificação do cenário jurídico aplicável à hipótese, tornando-se absolutamente precipitada a decisão que determinou a sua suspensão, na medida em que alguns intérpretes poderão concluir que o entendimento adotado pela Suprema Corte redundaria na conclusão inversa de que a contaminação pelo coronavírus tornaria implícito, em qualquer circunstância, o nexo de causalidade entre a doença e o trabalho.

Em recente artigo, o ministro aposentado do TST Almir Pazzianotto Pinto [1] criticou:

"Sendo a doença profissional aquela produzida ou desencadeada 'pelo exercício do trabalho peculiar à determinada atividade', não pode ser o caso da pandemia da Covid-19. A moléstia poderá ser contraída em casa, no transporte coletivo, no trajeto para o emprego. Jamais se saberá como, quando e com quem acontecerá.

(…)

O coronavírus não é moléstia peculiar a determinadas atividades ou profissões. Surgiu na China, não se sabe como, e se espalhou pelo planeta sem respeitar fronteiras. A ciência pouco a conhece. Apenas após a eclosão da pandemia é que alguns países trataram de se empenhar na pesquisa da vacina. Entre autoridades da área da saúde são constantes as divergências sobre como enfrentá-la com medidas preventivas.

(…)

Conquanto não sejam conhecidos os termos do acórdão do STF, ao que tudo indica houve precipitação de ministros isolados em Brasília. O artigo 29 da medida provisória 927 determina: 'Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão ocupacionais, exceto mediante comprovação de nexo causal'. O dispositivo está correto. Impede a presunção de que a doença resulta de ato ilícito do empregador ou de atividade por ele exercida. É o caso de lojas de tecidos, de roupas, de bolsas ou de calçados. Será irracional imputar a responsabilidade do empregador por prática de ato ilícito, na hipótese de empregado ser vítima do coronavírus contraído não se sabe como".

A teoria do risco do empreendimento estampada no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil brasileiro impõe o dever de responsabilidade objetiva (independente de culpa) 'quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".

A exegese do dispositivo em questão levou ao entendimento predominante no âmbito da Justiça Especializada do Trabalho de que o nexo de causalidade entre o trabalho e a doença estaria implícito quando as atividades desenvolvidas pelo trabalhador, por si somente, configurariam riscos suficientemente aptos a gerar a patologia acometida, revelando, em verdade, uma hipótese de doença profissional típica, ou seja, "aquela peculiar a uma determinada profissão, cujo exercício pode provocar a patologia. Nesse caso, é presumido o nexo de causalidade entre a moléstia e a atividade, sendo suficiente a prova do trabalho e do diagnóstico alusivo à moléstia profissional". (TRT da 3.ª Região; Processo: 0000505-20.2011.5.03.0091 RO; Data de Publicação: 02/03/2012; Disponibilização: 01/03/2012, DEJT, Página 246; Órgão Julgador: 7ª Turma; Relatora: Maristela Iris S.Malheiros; Revisora: Taisa Maria M. de Lima)

Fora tais circunstâncias, o nexo de causalidade entre uma determinada doença e o trabalho não pode ser genericamente presumido. A Covid-19 não é uma doença típica e inerente a determinadas profissões, pois todos se encontram indistintamente sujeitos a contraí-la, seja na escola, no supermercado, no transporte público ou particular e até mesmo no próprio lar, independentemente de estar ou não trabalhando.

Nesse cenário, por obvio, quando a doença tiver sido contraída, v.g., pelo profissional de saúde, há sim uma presunção do nexo de causalidade entre a doença e o trabalho, conquanto tais profissionais atuam em contato direto com possíveis infectados, de tal forma que a atividade por eles desenvolvidas, por sua própria natureza, representa forte risco de contágio; noutro viés, igualmente a título exemplificativo, a Covid-19 adquirida por profissional de engenharia ou contabilidade não torna presumível o nexo de causalidade entre a patologia e o trabalho, salvo prova em contrária a ser produzida pelo trabalhador.

Não se descura, pois, que a decisão tomada pelo STF, de fato, causa instabilidade e insegurança jurídica acerca do tema; melhor seria que a Medida Provisória nº 927 sequer tivesse tangenciado o tema sob o aspecto da doença ocupacional, o que por certo relegaria à Justiça Especializada do Trabalho, a quem melhor se confere as habilidades para decidir a esse respeito, o mister do reconhecimento de sua (não) configuração como doença ocupacional, cujas regras e premissas sobre esse tema, aliás, há muito se encontram pacificadas.

Muito além do "guardião da Constituição", o STF tem se travestido de verdadeiro órgão regulador da crise, tomando para si um papel legislativo e administrativo que não lhe pertence.

A missão de resguardar a Constituição Federal deve encontrar limites muito além do próprio texto constitucional, sobretudo no desfazimento dos cunhos político-partidários que sabidamente permearam algumas das mais decepcionantes decisões já proferidas por membros da Suprema Corte.

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  • é advogado sócio do escritório Drummond, Piva e Valente Advogados Associados, especialista em Direito Empresarial e professor de Direito Empresarial das Faculdades Doctum.

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