Garantismo penal

"Brasil criou uma quinta instância com o juiz das garantias", diz Vladimir Passos

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31 de maio de 2020, 8h04

Na véspera do último Natal e ignorando grande parte das sugestões feitas por Sergio Moro, então ministro da Justiça e Segurança Pública, o presidente Jair Bolsonaro sancionou, com vetos a 25 itens, a chamada lei "anticrime" (Lei 13. 964/19). 

Uma medida em especial desagradou a equipe de Moro: a criação do juiz das garantias. Com a inclusão da nova figura, que não fazia parte da proposta original, um magistrado atua no processo preliminar de investigação e outro no julgamento. A implantação acabou suspensa pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, até que o Plenário da corte decida sobre o tema.

Para o desembargador aposentado Vladimir Passos de Freitas, que foi secretário de Justiça e assessor para assuntos legislativos na pasta de Moro, o Brasil não tem a menor possibilidade de fazer com que o juiz das garantias funcione adequadamente. Ex- presidente do TRF-4, Passos também é colunista da ConJur.

"É um modismo importado da Espanha e não vejo como poderia ser adaptado aqui, inclusive porque seria necessário nomear muitíssimos juízes e o Brasil é um país que ainda não se compenetrou que é pobre. Agora, com a Covid-19, a ficha está caindo e nós estamos vendo que somos um país carente. Não temos a quantidade de juízes para criar mais uma instância. Nós já temos quatro, agora teríamos cinco instâncias", afirmou Passos em entrevista concedida à ConJur por telefone.

Exonerado duas semanas depois de Moro pedir demissão, o desembargador aposentado acredita que o ex-juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba fez uma boa gestão, apesar das dificuldades.

"A gestão do Moro se concentrou mais nos aspectos relacionados à segurança pública do que nos voltados à Justiça. Na parte da Justiça, o Brasil, ao contrário de outros países, tem seus temas decididos pelos tribunais e pelo Conselho Nacional de Justiça, não pelo Ministério da Justiça", diz.

Confira a entrevista na íntegra:

ConJur — A lei "anticrime" foi sancionada com muitas alterações. Que avaliação faz da proposta tal como foi assinada?
Vladimir Passos —
Eu diria que ela foi sancionada com um aproveitamento de cerca de 35%. Não é o ideal. Mas o presidente da República não teria muita legitimidade para vetar o que o Legislativo fez. Até poderia ficar pior se vetasse tudo. Um dos pontos que não foram vetados — e eu lamento muito por isso  — foi o juiz das garantias. Essa sim é uma iniciativa que não estava no pacote e veio do Congresso. Ela poderia ter sido vetada e não foi. Acabou sendo suspensa pelo Supremo. 

ConJur — Por que lamenta a introdução do juiz das garantias? 
Vladimir Passos —
Eu não vejo a necessidade disso no Brasil. Não existe isso em países mais desenvolvidos. É uma criação que nasceu na Espanha e se desenvolveu pouco na maioria dos países. Só existe em alguns países da América Latina e são países muito diferentes do nosso. O Brasil tem uma extensão territorial imensa. Não temos a quantidade de juízes para criar mais uma instância. Nós já temos quatro, agora teríamos cinco instâncias. É um modismo importado da Espanha e não vejo como poderia ser adaptado aqui, inclusive porque seria necessário nomear muitíssimos juízes e o Brasil é um país que ainda não se compenetrou que é pobre. Agora, com a Covid-19, a ficha está caindo e nós estamos vendo que somos um país carente, pobre, que os recursos públicos não são infinitos e que não há como uma lei ou uma liminar criar recursos públicos. Agora estamos chegando à realidade. 

ConJur — Muitos especialistas com quem conversamos na ConJur disseram que não haveria gastos extras, já que poderia ser feito um intercâmbio entre as varas. Em artigo recente, o senhor afirmou que o coronavírus está demonstrando que o Judiciário é cada vez mais digital e que essa é uma tendência que irá perdurar. Isso não pesa a favor da implantação do juiz das garantias?
Vladimir Passos —
Vejo muita gente falar que é possível implantar, mas poucos conhecem o Brasil. Eu conheço a realidade de quase todos os tribunais e da Justiça do país, porque eu estudo e visito. A substituição de um juiz por outro é uma ilusão. Primeiro porque no momento em que ele está substituindo o outro, ele deixa de fazer o serviço da vara dele. Segundo, porque existe, por exemplo, o juiz que é da comarca cível, outro da criminal. Daí um vai começar a decidir sobre facções criminosas, lavagem de dinheiro, tráfico e coisas desse tipo, sem entender nada de crime. A internet, sim, ela ajuda. Muitos estados, no entanto, têm dificuldade de internet. Tudo isso é relativo. O que não é relativo é que se gastaria, sim, dinheiro. 

ConJur — Outra alteração significativa veio com a lei contra abuso de autoridade. O que achou dela? 
Vladimir Passos —
Eu sou favorável ao controle. Todos devem ser controlados. Nenhuma autoridade tem o poder absoluto. Portanto, em princípio, uma lei que regule abusos é boa. A lei tem pontos positivos, como por exemplo regular o pedido de vista nos tribunais, já que um pedido de vistas às vezes segura uma ação por anos, sem que se possa fazer nada. A lei também foi cautelosa quando disse que é preciso o magistrado agir com dolo para ser punido. Até aí, nada tem de errado. Mas como ela tem tipos penais muito abertos, cerceia a atividade do juiz. Por exemplo, quando ela diz que é crime decretar medidas de privação de liberdade em desconformidade com as hipóteses legais, está intimidando o juiz. Na dúvida, o juiz não fará. Se ele não faz, não se arrisca. Pode-se dizer que só há crime se o magistrado agir dolosamente. Mas o juiz pode responder a uma ação penal que irá durar muitos anos. O perigo dessa lei é intimidar a polícia, o Ministério Público e os juízes. Criaremos uma legião de burocratas que não arrisca nada, não melhora nada. 

ConJur — O senhor disse que os juízes, na dúvida, podem acabar não fazendo nada. Mas na dúvida não seria justamente melhor não fazer nada?
Vladimir Passos —
Não. Na dúvida se é certo ou errado é melhor não fazer nada. Mas na dúvida se tem risco ou não tem risco, o melhor é fazer, porque quem não arrisca não muda nada, não melhora nada. Quem assume funções sabe que muitas vezes há uma zona cinzenta em que é preciso agir e, se não age, as coisas ficam como estão. 

ConJur — Se a lei "anticrime" e a lei contra abuso de autoridade estivessem em curso desde 2013, a "lava jato" em Curitiba teria ocorrido de forma diferente? As condutas de Moro em Curitiba e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região poderiam ter sido consideradas abusivas?
Vladimir Passos —
Eu não considero que houve abuso, porque já houve julgamentos na segunda instância e no STJ, com sentenças confirmadas. Eu não conheço os processos, nunca li o processo A ou B, porque eu não tenho tempo de ler 30 mil folhas. Mas eu sei que muitos juízes julgaram diversos casos e tenho a presunção de que não houve abusos. Agora, se isto tudo já existisse como legislação, é difícil dizer como os juízes reagiriam. Eu não sei dizer. Talvez um juiz tivesse medo da lei de abuso de autoridade e o outro não. 

ConJur — Como foi a experiência no Ministério da Justiça?
Vladimir Passos —
Riquíssima e totalmente diferente da experiência do Judiciário. O executivo exige muitas reuniões — primeiro, dentro do Ministério da Justiça; depois, com outros ministérios; por fim, com o Poder Legislativo. Tudo isso força a ser desenvolvida uma habilidade de negociação, coisa que no Judiciário não existe. A pessoa faz concurso para promotor ou juiz e é acostumada mais a decidir, a mandar, do que realmente a negociar. Foi uma experiência muito rica, porque eu pude conhecer o outro lado da moeda, com todas as suas dificuldades — que são muitas — e com todas as suas coisas boas e ruins. 

ConJur — Quais seriam as dificuldades e o lado bom e ruim?
Vladimir Passos —
O bom é que nenhum projeto sai do Executivo ou passa por lá sem que haja um exame muito grande, uma discussão mais aprofundada, minuciosa e com detalhes. O lado ruim é que há burocracia. Nos projetos de lei que vêm do Legislativo, os interesses são mais corporativos ou pessoais do que propriamente de interesse público. É preciso saber lidar com isso; administrar, discutir, para que se chegue ao melhor resultado. 

ConJur — Dentro dessas dificuldades, quais foram os sucessos e insucessos da gestão Moro?
Vladimir Passos —
 A gestão do Moro se concentrou mais nos aspectos relacionados à segurança pública do que nos voltados à Justiça. Na parte da Justiça, o Brasil, ao contrário de outros países, tem seus temas decididos pelos tribunais e pelo Conselho Nacional de Justiça, não pelo Ministério da Justiça. Esse ministério tem uma importância maior na área da Justiça em outros países. Na parte da segurança pública, foram muitos os avanços. Por exemplo, a criação de um processo ágil de venda de bens apreendidos, principalmente do tráfico, propiciou ao Brasil uma recuperação de milhões de reais. Só neste ano foram R$ 3,6 milhões em venda de bens apreendidos. Também tem a criação do Fusion Center [Centro Integrado de Operações de Fronteira (CIOF)]. Nunca o Brasil teve uma segurança unificada. Essa é uma ideia norte-americana, mas que existe em países como a Argentina. Todos os órgãos nacionais das polícias estaduais, da Polícia Federal, da Receita e AGU trabalham em conjunto num prédio só. 

O Fusion Center já foi implantado em Foz do Iguaçu (Paraná) e os resultados já estão se fazendo sentir, são muito bons. Esse órgão também trata de uma política internacional. Houve uma aproximação muito grande com os países vizinhos, por meio de atos que desburocratizaram a forma de agir da segurança pública de países que são separados por um rio, por uma rua, e que têm muito em comum. Entre os sucessos, eu coloco também a remoção de 22 presos do PCC, em uma verdadeira operação de guerra. Essa era uma demanda que todos diziam ser impossível de cumprir. Os membros da organização estavam em um presídio paulista em que tinham todas as regalias e a possibilidade de enviar ordens para fora. Uma vez transferidos para um presídio federal, isso desaparece, já que o número de presos é menor e as condições são de um rigor extremo. Não há celular, não há nada.  

ConJur — Mas essa ação não é muito mais uma obra do Ministério Público de São Paulo, que foi quem pediu as transferências? O governador de São Paulo, João Doria, também disputa a autoria da operação. Não seria um sucesso mais do governo estadual do que propriamente do Ministério da Justiça?
Vladimir Passos —
O governo de São Paulo colaborou de uma forma excelente. Não houve vazamentos de espécie alguma e houve colaboração total. Isso é verdade. Mas sem o apoio da Secretaria Operacional do Ministério da Justiça, que unifica a operação entre todas as polícias do Brasil, isso jamais seria possível. A Secretaria conseguiu o apoio também da Aeronáutica. Isso é muito difícil. Esse tipo de trabalho é impossível de ser feito por um órgão só. É preciso haver coordenação e, no caso, houve. A participação de São Paulo foi fantástica, sim. Mas houve uma participação essencial do Ministério da Justiça. 

ConJur — Outra disputa entre governadores e a gestão Moro diz respeito à queda no número de homicídios, que já vinha sendo uma tendência nos últimos anos.
Vladimir Passos —
Não creio que isso seja uma tendência que vinha forte nos últimos anos. É impossível saber exatamente onde houve uma interferência maior ou menor, porque nós temos 26 estados e um distrito federal. Pode ser que no estado "x" haja queda nos homicídios por causa da adoção de determinada política pública e no estado "y", não. Mas, de qualquer forma, o papel do governo federal é propiciar legislações eficientes e dar apoio nas ações, inclusive na cooperação. Eu não tiraria mérito dos estados nem negaria que houve mérito do governo federal. O importante é saber que os homicídios diminuíram. Diminuiu? Então ótimo. Palmas. 

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