Observatório Constitucional

Restrição e garantia dos direitos fundamentais em tempos de Covid-19

Autor

  • Ilton Norberto Robl Filho

    é professor da Faculdade de Direito da UFPR e do IDP líder do grupo de pesquisa "Democracia Constitucional Novos Autoritarismos e Constitucionalismo Digital" no IDP membro do CCons-UFPR e da Fundação Peter Häberle e sócio do escritório de advocacia Marrafon Robl e Grandinetti.

30 de maio de 2020, 8h00

Ponto Inicial [1]
Com 26.754 óbitos e 438.238 casos confirmados até 28 de maio de 2020, em virtude da Covid-19 [2], o Brasil encontra-se no centro mundial dessa situação de Emergência de Saúde Pública de importância internacional, a qual causa efeitos sociais e econômicos nefastos, impondo rápida e adequada resposta estatal.

Por sua vez, o art. 3º da Lei Federal nº. 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, com a redação da Medida Provisória nº. 926, de 2020, estabelece que: "Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: I – isolamento; II – quarentena; III – determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; (…) VI – restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada e saída do País; e b) locomoção interestadual e intermunicipal (…) § 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública."

Saúde pública e ciência nas restrições aos direitos fundamentais
Na doutrina especializada, é comum refletir sobre as restrições aos direitos fundamentais a partir de questões referentes à saúde pública. Martin Borowski analisa o direito dos nacionais de ingressar e sair do país, asseverando ser constitucional, por exemplo, lei que, para proteger a saúde da população contra pandemias, veda o ingresso de pessoa com enfermidade contagiosa grave. De outro lado, quando a lei proíbe qualquer cidadão enfermo de entrar no território nacional, de forma independente do grau de infecciosidade e da gravidade da doença, esse ato normativo infraconstitucional viola o direito fundamental de ir e vir de modo desproporcional[3], pois se uma pessoa possui uma doença inofensiva a proibição de seu ingresso não é adequada para proteger a saúde pública e a integridade física dos demais indivíduos.

As restrições aos direitos fundamentais, em tema de saúde pública, precisam ser fundadas em razões médicas, não sendo constitucional a adoção de motivos meramente políticos ou ideológicos na limitação desses direitos[4]. O conhecimento científico é substancialmente diverso de uma opinião política ou de uma concepção ideológica específica, tratando aquele saber de maneira sistemática, metodológica, especializada e verificável os problemas científicos, auxiliando na correta compreensão de condutas danosas aos direitos à vida, à saúde e às integridades física e psíquica.

Outrora já escrevemos que: “o conhecimento científico possui peculiaridades, tratando-se, por exemplo, a) da construção de conhecimento por meio de regras, de etapas, de processos e de métodos que conduzem à compreensão dos problemas científicos, b) da construção e da adoção de hipóteses para compreender, analisar e solucionar (ainda que parcialmente) as questões estudadas, c) do desenvolvimento e do emprego de conceitos, de perspectivas e de teorias que auxiliam na reflexão crítica sobre os temas e fenômenos e d) da apresentação de fundamentos fáticos e teóricos que suportam as conclusões e os resultados científicos obtidos. Nesse contexto, as ideias científicas são produzidas a partir de razoáveis ideais regulativos, sendo o mercado de ideias dos cientistas mais restrito do que o mercado de ideias dos cidadãos em geral, o qual é protegido pela liberdade de expressão em sentido lato”[5].

Dessa forma, corretamente o § 1º do art. 3º da Lei Federal nº. 13.979/2020 previu que as medidas restritivas para proteção da saúde pública e dos direitos à vida e à proteção da integridade física precisam ser tomadas a partir evidências científicas. As meras crenças e opiniões, apesar de constitucionalmente garantidas e relevantes no Estado Democrático de Direito, não são razões aptas a informar políticas públicas de saúde e estratégias sanitárias adequadas. Um entendimento político não pode fixar procedimentos e protocolos médicos desprovidos de respaldo científico.

Constituição, indivíduos e comunidade na restrição e na concretização dos direitos fundamentais
O constitucionalismo não deve ser dogmático e ingênuo, transformando-se em uma superstição e distanciando-se da análise crítica da realidade[6]. A ausência de desenvolvimento de uma Teoria Constitucional adequada ao Estado Democrático de Direito causa inexoravelmente a aplicação do texto constitucional de forma equivocada, criando um ordenamento jurídico com regulamentações e práticas absurdas.

Em verdade, líderes populistas de tendência autoritária utilizam-se seletivamente das liberdades de expressão, de crença, de opinião e até mesmo do direito à privacidade, assim como de instrumentos democráticos, com objetivo de chegar e manter-se no poder. Infelizmente, essa é uma tendência em diversos países, a qual deve ser conscientemente combatida pelos mecanismos constitucionais e teóricos existentes. Como precisamente aponta Kim Schepelle, os populistas são oportunistas que buscam o poder acima de qualquer apelo democrático, usando desonestamente a democracia constitucional e os direitos fundamentais [7].

De outro lado, a teoria constitucional de Peter Häberle apresenta uma visão sincera e democrática dos direitos fundamentais, sustentando a relevância do legislador e dos atos de conformação dos direitos fundamentais, na concretização tanto dos interesses públicos e legítimos da comunidade como dos interesses individuais. Novamente, o exemplo do referido jurista versa acerca da saúde pública.

Uma perspectiva unilateral da obrigação de o cidadão ser submetido à vacinação apontaria para uma simples restrição do seu direito fundamental individual à liberdade em prol do interesse da comunidade no campo da saúde pública e coletiva. Por sua vez, a determinação de vacinação detém fundamento especialmente nos benefícios produzidos ao próprio indivíduo, já que concretiza os seus direitos individuais à vida e à integridade pessoal[8]. Dessa maneira, há deveres impostos ao legislador de harmonizar os diversos direitos fundamentais específicos e de integrar os interesses individuais com os coletivos.

Em síntese, o ideal regulativo de uma adequada conformação dos direitos fundamentais, em tema de saúde pública, é a busca por benefícios para a sociedade e o cidadão, apostando nos direitos fundamentais como um sistema pautado na integração desses direitos com outros bens constitucionais[9]. A constituição é um ordenamento de valor duradouro que informa a ação dos cidadãos, políticos, governantes e sociedade, devendo o dinamismo do legislador promover os direitos fundamentais em leitura sistemática e harmonizadora com outros bens constitucionais[10] como o desenvolvimento econômico nacional, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos.

Europa e Covid-19
No boletim #1 da Agência da União Europeia para Direitos Fundamentais, sobre a Pandemia do Coronavírus e as Implicações para os Direitos Fundamentais, observa-se a existência de muitos dilemas e problemas vividos na Europa que se repetem em grande medida no Brasil.. Em virtude do necessário distanciamento social, a realização presencial e física das atividades educacionais precisou ser interrompida na enorme maioria dos Estados europeus. Apesar da existência de instrumentos tecnológicos e metodológicos para o ensino remoto, não é possível esquecer que parte dos alunos não possui computador e acesso adequado à internet, precisando o Estado atuar para, no mínimo, abrandar esse obstáculo ao direito à educação em contexto de Covid-19.[11]

Acerca do mercado de trabalho, o necessário distanciamento social, além do enorme impacto em setores econômicos como turismo, vestuário e outros, produziu fortes alterações na rotina laboral e na renda dos trabalhadores. Em algumas profissões, o trabalho em casa (home office) é possível e deve ser adotado na maior medida possível, mas em diversos setores o desemprego e a queda substancial da renda imperam. Assim, a mitigação dos efeitos da perda ou diminuição de renda ocorreu com a aprovação de legislações para lidar com essa situação[12].

A busca por equilíbrio entre acesso à justiça e a segurança e a saúde dos membros do sistema de justiça e dos cidadãos em contato com esse sistema é dilema relevante. Desse modo, a tecnologia (processo eletrônico e videoconferência) foi empregada com bons resultados em linhas gerais, porém ocorrendo problemas especialmente em Tribunais que não estavam razoavelmente adaptados ao uso desses instrumentos[13].Os atos de racismos contra estrangeiros como chineses e o fenômeno da desinformação sobre práticas e medidas a serem tomadas na pandemia preocuparam países europeus e a Agência Europeia de Direitos Humanos.

O posicionamento do Diretor Agência da União Europeia para Direitos Fundamentais corretamente registra que, na atual situação de Covid-19, não há um caminho de proteção da saúde pública ou de garantia dos direitos fundamentais[14], pois as políticas públicas, as leis e as atuações estatais são legítimas se promoverem a saúde pública com o maior respeito possível ao sistema de direitos fundamentais.

Assim, as medidas de contenção do coronavírus não estão dissociadas da busca de mitigação dos impactos nos campos da vida social, da educação, do trabalho e da liberdade de movimento. Importante ressaltar: não se trata de colocar o trabalho, a educação e a liberdade de movimento acima das necessárias ferramentas sanitárias e sociais de luta contra o coronavírus, e sim construir estratégias que procurem, respeitando a ciência e a vida, efetivar na maior medida possível, nesta triste realidade, os diversos direitos fundamentais.

No papel de coordenação das atividades de combate ao coronavírus, parece que falta ao governo federal brasileiro e especialmente ao Executivo Federal uma perspectiva integrada, responsável e harmônica da saúde pública e dos direitos fundamentais.


[1] Este texto apresenta algumas discussões e inquietações do autor compartilhadas com os mestrandos e doutorandos em Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público, na disciplina Teoria da Constituição e dos Direitos Fundamentais.

[2][2] BRASIL. Ministério da Saúde. Covid-19: Painel Coronavírus. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 28/05/2020.

[3] BUROWSKI, Martin. La Restricción de los Derechos Fundamentales. Revista Española de Derecho Constitucional. Año 20, Núm. 59, p. 51, Mayo-Agosto 2000.

[4] BUROWSKI, Martin. La Restricción de los Derechos Fundamentales. Revista Española de Derecho Constitucional. Año 20, Núm. 59, p. 55, Mayo-Agosto 2000.

[5] ROBL FILHO, Ilton Norberto. Liberdade Acadêmica e Científica: Dimensões e Problemas Contemporâneos. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], 19(3), p. 763-764.

[6] Para uma visão crítica do constitucionalismo, cf. WALDRON, J. Constitutionalism: A Skeptical View. Georgetown University Law Center, 2010.

[7] Sobre o tema, cf. SCHEPELLE, K. L. The opportunism of populists and the defense of constitutional liberalism. German Law Journal, 20, pp. 314–331, 2019.

[8] HÄBERLE, Peter. La Libertad Fundamental en el Estado Constitucional. Granada: Editorial Comares, 2003, p. 64.

[9] HÄBERLE, Peter. La Libertad Fundamental en el Estado Constitucional, p. 68.

[10] HÄBERLE, Peter. La Libertad Fundamental en el Estado Constitucional, p. 81-85.

[11] EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Coronavirus Pandemic in the EU ― Fundamental Rights Implications. Luxembourg: Publications Office of the European Union, April 2020, p. 18-19.

[12] “A large majority of EU Member States have introduced legislation to compensate for loss of income related to the outbreak. In many cases, this takes the form of the government committing to paying a proportion of the wages of employees that have been or are at risk of being made redundant. Such measures – which also often involve contributions from the employer – will see staff receive 90% of their salary in Sweden, 80% in Slovenia,75% in Romania, 70% in Estonia and France, and 65-70% in Belgium, for example. Greece, in contrast, proposes a fixed sum compensation of €800 in April to employees working in enterprises which suspend their operations; a Maltese or any other EU citizen who becomes redundant in Malta will receive the same monthly amount as unemployment benefit. Ireland has instituted a specific ‘COVID-19 Pandemic Unemployment Payment’ of €203 per week, which aims to enable the newly unemployed to receive financial support quickly, while waiting for the government to calculate their longer-term entitlement” (EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Coronavirus Pandemic in the EU ― Fundamental Rights Implications. Luxembourg: Publications Office of the European Union, April 2020, p. 19).

[13] EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Coronavirus Pandemic in the EU ― Fundamental Rights Implications. Luxembourg: Publications Office of the European Union, April 2020, p. 28.

[14] EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Coronavirus Pandemic in the EU ― Fundamental Rights Implications. Luxembourg: Publications Office of the European Union, April 2020, p. 5.

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