Diário de classe

Busca pela verdade no Direito não deve se basear no consenso, mas no contexto

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30 de maio de 2020, 8h00

Afinal, há verdades? Acredito que quase todos supomos que sim. Quer dizer, se dizemos que alguém mentiu, que fulano mente ou que alguém é falso, estamos afirmando, tertium non datur, que há verdade por detrás dessas situações. Alguém poderá argumentar: “ah, mas o que eu quero dizer é que defendo a minha verdade”. Será? Será que, no fim das contas, apenas defendemos narrativas (o antirracionalismo nietzschiano está na moda) a partir de nossa preferência pessoal? Custo a crer que quem diz que o outro está a afirmar inverdades sempre sustente — ainda que tacitamente — que é aquela apenas uma “versão” da história.

O negacionismo epistêmico (expressão cunhada por Streck — ver aqui) é um sintoma grave da relativização da verdade que já polui a sociedade há tempo. Ele já nasceu errado, problemático, ab ovo. Não precisamos ir muito longe para apontar defeitos congênitos: quem vai negar que o oceano é feito de água ou que o Sol é uma estrela? Ou que Direito não é a mesma coisa que Medicina? Que é errado colocar na cadeia alguém que não cometeu crime algum? Ou que o coronavírus não é gripezinha? Bom, se a tese negacionista já não responde a perguntas como essas, não vejo como sustentá-lo.

De qualquer sorte, não existe dúvida de que a questão sobre a verdade é complexa e diz respeito à própria relação do ser humano consigo mesmo e com o “mundo”. Estou seguro de que o problema não será resolvido nessas poucas e desajustadas linhas, mas tentarei clarear — pelo menos um pouco — o caminho da busca da verdade no Direito.

No Direito, área dedicada à regulação dos conflitos sociais, o intérprete busca a verdade sobre o elemento jurídico: quem tem direito a quê? Será que o proprietário tem direito à reintegração de posse do seu imóvel? Será que o vizinho tem direito a tocar piano até a meia-noite? Veja-se que, no Direito, é tentador cair no erro de assumir que tudo é relativo. Muitas vezes defendemos pontos de vista divergentes sobre o que é justo ou apropriado: “ah, o proprietário nem usava o terreno mesmo”; “o vizinho toca muito bem, para mim é uma alegria ouvi-lo”… Embates entre ideias opostas surgem porque o Direito regula interesses que podem colidir, e aceitar que nossos interesses talvez não sejam atendidos em virtude de interesses alheios nos causa inquietação ou mesmo irritação.

Mas aí é que está: o fato de o Direito propiciar terreno fértil para todo tipo de emoções — muito mais do que um debate sobre a verdade sobre vida alienígena ou o sentido da vida — não pode servir de desculpa para que desistamos da verdade no Direito. Sempre existirão desacordos sobre os critérios legais aplicáveis ou os critérios dos critérios (metacritérios) no Direito. No entanto, as leis fornecem vetores de sentido para a interpretação, e eles devem ser respeitados. Aliás, interpretação não é sinônimo de subjetividade ou assujeitação das ideias.1 Na verdade, ela é uma das características fundamentais da compreensão humana. Ela não é um filtro ad hoc para que localizemos a resposta que preferirmos.

Vamos a um exemplo: o mandato do Presidente da República é de quatro anos (artigo 82 da Constituição Federal). Acredito que ninguém tenha muita dificuldade em concluir sobre a norma relacionada a esse texto. Mas se alguém diz que “os negócios jurídicos devem ser pautados pela boa-fé”, aí já começa toda sorte de altercação sobre a vagueza da expressão “boa-fé”, que inviabiliza(ria) uma conclusão correta sobre a expressão. E por que será? “Boa-fé é uma cláusula geral. Não há como precisá-la sem um contexto.”

É nisso que eu queria chegar: verdade e contexto andam juntos. Só compreendemos rapidamente o prazo do mandato do presidente porque estamos familiarizados com as ideias de “mandato”, “presidente”, “república”, “anos”. Ora, poderia a Constituição estar se referindo ao presidente de alguma república de estudantes? Não? Ou “anos” poderia ser um lapso temporal diferente de 365 dias? Poderiam ser “anos” com um outro número qualquer de dias, já que se trata de uma construção do próprio ser humano para se organizar cronologicamente. Tudo isso depende do contexto em que vivemos. É claro que a Constituição fala do Presidente da República do Brasil e não de qualquer outra república. Os anos são os que todos conhecemos — não é ano-luz nem outro tipo existente.

Aliás, já que falamos de boa-fé, a insistência na defesa da relativização da verdade no Direito guarda importante conexão com o não-cognitivismo moral2. Para um não-cognitivista, a discussão sobre a verdade no campo moral não nos leva a nada: seríamos, assim, totalmente reféns de sentimentos ou atitudes emocionais, sem a possibilidade de concebermos um critério objetivo prévio para avaliar a verdade de proposições morais. Veja-se que, enquanto para um cognitivista existe uma resposta correta a ser encontrada em uma questão moral — devo ajudar uma pessoa passando fome na rua? —, para um não-cognitivista todo juízo moral carece de objetividade.

Parece que as pessoas têm a tendência de dizer que não há verdades morais porque “cada um pode ter sua opinião”. Eu compreendo a ideia de que cada indivíduo possa ter um ponto de vista, mas também entendo que opiniões erradas existem. Não duvido da possibilidade de debates construtivos sobre os mais variados temas morais, mas pergunto a um não-cognitivista: é possível considerar a escravidão justa? Ou um holocausto justo? Fico imaginando que cenários alguém poderia contemplar para legitimar situações tão abjetas, representantes daquilo que o ser humano já produziu de pior em toda sua história.

Bem compreendidas essas premissas, é claro que a verdade não depende de consenso (vide o título da excelente obra “Verdade e Consenso” de Streck3), e, claro, nem poderia. Caso contrário, voltaríamos à possibilidade de sua relativização. Se aceitássemos a tese da verdade consensual (ou procedimental), cairíamos em um inescapável convencionalismo. Imagine-se se fosse possível simplesmente convencionar que a Terra é plana. Ou que infanticídio é bom. Ainda assim eles não o seriam.

No Direito, isso é, inclusive, bem visível: uma decisão judicial correta — e elas existem — não se submete à aprovação da maioria da população. E não estou falando da autoridade e da independência do Poder Judiciário, mas do fato de que, à luz do ordenamento jurídico de que dispomos, é sempre possível construir uma argumentação jurídica coerente e íntegra com relação ao sistema. Se alguém perguntasse se é possível um governo autoritário no Brasil, todos responderíamos (assim espero) que não, pois vivemos em um Estado Democrático de Direito, e democracia não se mistura com autoritarismo. Essa é a resposta correta (e verdadeira).4

É assim que devemos interpretar. Dentro de um contexto histórico-social compartilhado (intersubjetivo), que condena a compreensão (jurídica e qualquer outra “espécie”) à hermenêutica. Não busquemos uma “essência” das coisas, nunca a encontraremos. O “eu” e o “mundo” aparecem em uma unidade originária na linguagem (Gadamer5): toda nossa experiência ocorre através dela. Não podemos nos “descolar” do mundo para que possamos falar a partir de um locus privilegiado.

A verdade existe. Mas ela é complexa. E interpretativa (sem nenhuma conotação subjetivista). No Direito, a verdade exige muito raciocínio e estudo, o que leva tempo, cansa. É por isso que o anti-intelectualismo é inimigo da verdade — é muito menos trabalhoso suspeitar dos outros a partir de chavões como “tudo é relativo”6 ou (o que é o mesmo) “não há verdades” do que colocar os seus pré-conceitos e pré-concepções à prova, o que exigiria o constante (e às vezes desconfortável) reprojetar do círculo hermenêutico.

A filosofia (sempre tão esquecida) não deveria ser vista como um simples método ou ferramenta para nos auxiliar em determinados momentos, como quando queremos dar um verniz de sofisticação ao discurso ou tentar justificar argumentos injustificáveis. Concordo com o professor Streck em seus escritos quando sustenta que a virada linguística da filosofia parece ter passado ao largo dos juristas, apegados a uma vulgata da filosofia da consciência, como se fosse “bom” que haja um juiz-protagonista detentor da “verdade”. Ninguém é — solipsisticamente — dono da verdade: ela é uma experiência compartilhada e mediada pela linguagem.


1 Ponto relevante da obra do professor Lenio Streck passa pela identificação do grave problema gerado pelo deslocamento da verdade para a consciência do intérprete na modernidade (ou com a modernidade), como se fosse possível reduzir a realidade a elementos subjetivos. O tema é tratado, de modo aprofundado, principalmente no posfácio de Verdade e Consenso, mas a discussão também é elegantemente trazida em obras como Hermenêutica Jurídica e(m) Crise e O que é isto – decido conforme minha consciência?.

2 Uma análise pormenorizada e de primorosa qualidade sobre o assunto pode ser encontrada no livro Metaética e a fundamentação do Direito, de Arthur Maria Ferreira Neto. Na obra, o professor faz bela conceituação e classificação das principais correntes metaéticas desenvolvidas na filosofia moral, estudando suas influências sobre o pensamento jurídico.

3 Deve ser lido como verdade contra consenso, como bem explica o professor em sua nota no início do livro.

4 Vale fazer referência aqui ao magistral verbete Resposta correta, no excelente Dicionário de Hermenêutica do professor Streck, já agora em sua 2ª edição. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2020.

5 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 612.

6 Já vi muitas pessoas fazerem confusão sobre isso: Einstein nunca disse isso, mesmo porque sua teoria da relatividade tem como postulado a invariância da velocidade da luz.

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