Ambiente Jurídico

Fiscalização e sanções ambientais na Lei Complementar 140/2011

Autor

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

30 de maio de 2020, 19h10

Spacca
A Lei Complementar nº 140/2011 regulamentou os incisos III, VI e VII do artigo 23 da Constituição da República, nos termos do que determinou o parágrafo único do dispositivo citado, fixando normas para o exercício da competência administrativa em matéria ambiental entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios. Desde a edição da Lei nº 6.938/81, que dispôs sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e criou o Sistema Nacional do Meio Ambiente, essa modalidade de competência em matéria ambiental sempre envolveu dois aspectos distintos: a fiscalização e o licenciamento ambiental.

Embora houvesse o posicionamento minoritário defendendo que somente o órgão licenciador poderia fiscalizar a atividade por ele licenciada, a maior parte da doutrina e da jurisprudência sempre entendeu que o direito de fiscalização era amplo e irrestrito. Pouco importava o ente federativo que concedeu a licença ambiental, o empreendimento poderia ser fiscalizado pela União, pelo estado ou pelo município, seja de forma simultânea ou não.

O incico VI do parágrafo 1º do artigo 225 da Carta Magna dispõe que para garantir o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado cabia ao Poder Público “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”, entre outras medidas a serem adotadas. Com efeito, é consenso que quanto mais a atividade de fiscalização for ativa, mais efetiva será a defesa do meio ambiente.

Não foi por outra razão que o artigo 23 da Lei Fundamental determinou, nos seus incisos III, VI e VII, respectivamente, a competência comum dos entes federativos para “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”, “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” e “preservar as florestas, a fauna e a flora”. A própria Lei 6.938/81, que até a edição da Lei Complementar nº 140/2011 não reconhecia expressamente a competência dos municípios para fazer licenciamento ambiental, sempre reconheceu o papel destes entes federativos na fiscalização em função do que disciplinava o inc. VI do artigo 6º.

Impende dizer que o ato de fiscalizar implica a obrigação de impor sanções administrativas, a exemplo de advertência, apreensão, embargo ou multa, caso alguma infração seja identificada. Afinal de contas, de nada adiantaria possuir poder de polícia para fiscalizar sem a possibilidade de aplicar as penalidades correspondentes.

Já a competência para licenciar na prática sempre foi atribuída a um único ente federativo, a despeito de certas divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Em linhas gerais, a justificativa é que o procedimento é caro, exige alta complexidade técnica e ainda não está sendo disponibilizado a contento pelo Poder Público, tendo em vista o grande número de atividades que deveria ser licenciada e não é por falta de estrutura dos órgãos responsáveis.

Ocorre que essa dúplice competência administrativa também gerou inúmeros conflitos, uma vez que o ente discordava do licenciamento feito pelo outro aplicando embargo e multa em uma atividade que, ao menos na visão do órgão licenciador, atendia a todos os padrões de qualidade legalmente estabelecidos. Por exemplo, o órgão meramente fiscalizador entendia que o órgão licenciador se equivocou ao conceder a licença ambiental para determinada atividade, seja porque ela não deveria ter sido concedida naqueles termos ou porque não poderia ter sido concedida de maneira alguma, o que fazia com que a contenda terminasse no Poder Judiciário – que, por sua vez, prolatava as mais variadas e contraditórias decisões.

Isso era um desrespeito à autonomia do ente federativo licenciador, pois, na prática, o ente meramente fiscalizador tentava determinar como poderia e como não poderia ser feito o licenciamento ambiental, interferência muito comum da União para com os estados e destes para com os municípios. Para acabar com tais embates a Lei Complementar 40/2011 procurou, em um primeiro momento, vincular a atribuição de fiscalizar a competência para fazer licenciamento ambiental.[1]O inciso XIII do artigo 7º da lei citada determina que cabe à União controlar e fiscalizar as atividades cuja atribuição para licenciar seja federal, ao passo que o inciso XIII do artigo 8º dispõe o mesmo em relação aos estados e o inciso XIII do artigo 9º o mesmo em relação aos municípios, de maneira que o poder de polícia para fiscalizar teria sido limitado aos próprios órgãos licenciadores. Nesse sentido, o caput do artigo 17 dispõe que “compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada”, corroborando a ideia de que somente quem é competente para licenciar pode impor sanções administrativas, as quais são decorrentes do ato de fiscalizar.

O problema é que o parágrafo 3º do dispositivo em questão estabelece que “o disposto no caput deste artigo não impede o exercício pelos entes federativos da atribuição comum de fiscalização da conformidade de empreendimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos naturais com a legislação ambiental em vigor, prevalecendo o auto de infração ambiental lavrado por órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização a que se refere o caput”, o que, em tese, contrariaria os demais dispositivos mencionados ao abrir margem para que qualquer ente federativo possa fiscalizar e sancionar qualquer atividade. Contudo, cumpre esclarecer que na técnica legislativa a função do parágrafo é complementar o caput de forma aditiva ou restritiva, o que parece ter ocorrido no caso sob análise.

O parágrafo 3º é claro ao estabelecer a competência comum para fiscalização, independentemente da responsabilidade pelo licenciamento, o que contribui mais para a concretização do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado consagrado no caput do artigo 225 e guarda maior consonância com o federalismo cooperativo previsto no artigo 23 da Constituição da República. A dúvida se cingiria à possibilidade ou não de lavratura de auto de infração por parte de órgão não licenciador, já que a redação seria um pouco reticente a esse respeito.

Entretanto, o parágrafo 2º também é claro ao determinar que os entes federativos podem impor sanções administrativas aos empreendimentos não licenciados por ele “Nos casos de iminência ou ocorrência de degradação da qualidade ambiental”, com a diferença de que tais penalidades possuem um caráter acessório e transitório no que diz respeito à atuação do ente licenciador em função do que determina o parágrafo 2º. Em outras palavras, o auto de infração lavrado valerá apenas até que o órgão responsável pelo licenciamento ambiental tome posição em relação à penalidade aplicada, seja ele mesmo lavrando o seu auto de infração, seja atestando a legalidade da atividade autuada, de maneira que há uma prevalência das sanções aplicadas pelo órgão licenciador, entendimento que o STF apontou na STA nº 286/BA mesmo antes da edição da lei complementar.[2]Se o ente federativo licenciador confirmar a regularidade do empreendimento, o ente meramente fiscalizador não poderá mais adotar qualquer medida administrativa, tendo em vista que nessa esfera prevalece o entendimento do responsável pelo licenciamento ambiental.[3] Caso o órgão fiscalizador mantenha a sua discordância, poderá encaminhar denúncia ao Ministério Público ou levar o caso ele mesmo ao Poder Judiciário, já que a Lei nº 7.347/85 lhe atribuiu legitimidade para tanto.

O ente fiscalizador é obrigado a tomar essas medidas mais drásticas, sob pena de ser considerado conivente com eventual irregularidade ambiental a ser identificada posteriormente, podendo ser enquadrado por improbidade administrativa ou por crime ambiental. O intuito disso é construir uma compreensão que garanta a um só tempo a efetividade da defesa do meio ambiente e a segurança jurídica do setor produtivo, promovendo o desenvolvimento sustentável.

Não é por outra razão que a Procuradoria Geral do Ibama aprovou a Orientação Jurídica Normativa nº 49/2013 (OJN nº 49/2013/PFE/Ibama), determinando a prevalência do entendimento do órgão estadual de meio ambiente, bem como da obrigação do Ibama de notificar o órgão estadual:

Em razão do estabelecimento, pelo legislador, de critério de prevalência, é possível concluir que, em nenhuma hipótese, deve-se admitir a prevalência da opinião técnica do órgão fiscalizador supletivo sobre a do órgão licenciador-fiscalizador primário, seja na situação de lavratura de dois autos de infração pela mesma hipótese de incidência, seja na situação em que o segundo, cientificado pelo primeiro da lavratura do AI, dele discorda e justifica, tecnicamente, posição pela inocorrência da infração. A literalidade da norma, em conjunto com o Princípio da Eficiência na Administração Pública, aplicável ao caso, não admitem entendimento diverso.

Enquanto inexistir qualquer posicionamento formal do órgão licenciador, as sanções impostas pelo órgão meramente fiscalizador poderão continuar em vigor, em função do caráter autoexecutório das medidas tomadas com base no poder de polícia. De qualquer forma, é importante que os órgãos ambientais procurem atuar de maneira harmônica

A segunda opção de autuação do ente não licenciador é a omissão ou falta de estrutura comprovada do ente licenciador, o que ensejaria a atuação supletiva nos termos do inc. II do art. 2º. Nada obstante, vale dizer que essa omissão ou falta de estrutura deve ser comprovada, não podendo ser presumida[4].

Indicações bibliográficas sobre o tema:

BEZERRA, Luiz Gustavo Escorcio; GOMES, Gedham Medeiros. Lei Complementar n. 140/2011 e fiscalização ambiental: o delineamento do sancionador primário. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, vol. 9, n. 4, 2017.

BIM, Eduardo Fortunato. Licenciamento ambiental. 5. ed. Fórum: 2020.

Nascimento, Sílvia Helena Nogueira Competência para o licenciamento ambiental na Lei Complementar n. 140/2011. São Paulo: Atlas, 2015.

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel da. Reflexões sobre a Lei Complementar 140/2011: cooperação dos entes federativos em prol de um ambiente equilibrado. Federalismo cooperativo ambiental no Brasil: breves notas sobre a Lei Complementar 140/2011. RIDB, Lisboa, ano 5, n. 3, 2019.

TEIZEN, Thaís. Atividade fiscalizatória ambiental na vigência da Lei Complementar n. 140/2011. Dissertação de mestrado em Direitos Difusos e Coletivos, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.

THOMÉ, Romeu. Comentários sobre a nova lei de competências em matéria ambiental (LC 140, de 08.12.2011). Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 66, 2012.

TRENNEPOHL, Curt; TRENNEPOHL, Terence; TRENNEPOHL, Natascha. Infrações ambientais: comentários ao Decreto 6.514/2008. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019.


[1] THOMÉ, Romeu. Manual de direito ambiental. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 270.

[2] “(…) Contudo, cabe destacar que, se há um dever comum de fiscalização dos órgãos do SISNAMA, quanto a infrações e crimes ambientais, isso não significa que se possa interpretar o seu poder de polícia ambiental a ponto de se incitar, em último caso, uma inoperância da preservação ambiental a partir da divergência de entendimentos dos órgãos de fiscalização ambiental e da ação de uns, em prejuízo dos outros e da coletividade. Por isso, o parâmetro mínimo que pode ser considerado aqui é exatamente se a fiscalização em análise decorreria diretamente do exercício regular do licenciamento ambiental (para a concessão de uma licença, para a discussão quanto a condicionantes e requisitos necessários à licença), o que evidenciaria, em princípio, possível superposição da atuação do IBAMA sobre a competência do órgão municipal/estadual para o licenciamento, o que não está permitido, provisoriamente, pelas decisões desta Presidência” (STF. STA nº 286/BA. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJe, 28 abr. 2010).

[3] “(…) 4. Alega-se que os órgãos estaduais teriam licenciado e fiscalizado o empreendimento mas a Resolução nº 237 do CONAMA não afasta a possibilidade de delegação, pelo IBAMA, das atividades de fiscalização. A Lei Complementar nº 140/2011, conquanto preveja que o licenciamento e a autorização de funcionamento serão de competência de um único ente, faculta a ação dos demais, ante a ocorrência de infração, comunicando-se ao ente responsável pelo licenciamento, para exercício do poder de polícia, cuja autuação, de qualquer modo, prevalecerá (art. 13, c/c art. 17, caput, §§1º, 2º e 3º)” (TRF1, Quinta Turma. AC nº 200334000195886. Rel. Des. João Batista Moreira. e-DJF1, 18 abr. 2012). “Ementa: AÇÃO CIVIL PÚBLICA – LICENCIAMENTO AMBIENTAL PARA INTERVENÇÃO EM ÁREA DE PROTEÇÃO – MATA ATLÂNTICA – AUSÊNCIA DE INTERESSE ESPECÍFICO E DIRETO DA UNIÃO E DO IBAMA – COMPETÊNCIA DE ÓRGÃO LOCAL – AGRAVO PROVIDO. I – Especificamente quanto à competência para realizar licenciamento ambiental e respectiva fiscalização, exige-se a observância aos artigos 10 e 11 da Lei nº 6.938/81, os quais prevêem que a realização e a fiscalização atinentes a determinado licenciamento ambiental são atribuições preferencialmente exercidas pelos órgãos ou entidades estaduais. II – Competência do IBAMA que somente incide quando o impacto direto ao meio ambiente atinge limites territoriais da unidade federativa, o que decorre da autonomia das unidades federativas previstas no art. 18 da Lei Maior. III – Configurada a necessidade de realização de licenciamento ambiental, o impacto causado pela construção em evidência não permitiria a inclusão entre as hipóteses de licenciamento atribuídas ao IBAMA, não se justificando, assim, o poder de polícia exercido por referida entidade ao lavrar Auto de Infração e Termo de Embargo. IV – Agravo de instrumento provido” (TRF3, Terceira Turma. AI nº 1.561/SP. Rel. Des. Cecília Marcondes, j. 21.11.2013).

[4] “ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO AMBIENTAL. ÁREA URBANA. ART. 2º, §ÚNICO DO CÓDIGO FLORESTAL. ATUAÇÃO SUPLETIVA DO IBAMA. ARTIGO 11, §1º DA LEI Nº 6.938/81. SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA. COMPETÊNCIA COMUM. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. INOBSERVÂNCIA DA LICENÇA MUNICIPAL. 1. A Fundação Municipal de Meio Ambiente autorizou a supressão de vegetação secundária, a qual estava em estágio médio de regeneração natural, na zona urbana de Blumenau. 2. A obra consistiu na terraplanagem de um terreno para construção de uma oficina mecânica, sendo que a área total do imóvel é de 7.232,08 m2, sendo autorizados 2.700 m2, ou seja, aproximadamente 1/3 do terreno. 3. O Código Florestal determina para as áreas urbanas que se observe o Plano Diretor do Município. 4. Não ocorrência de omissão ou inércia, pois houve o licenciamento para a construção da oficina mecânica. Para que seja admitida a atividade supletiva do IBAMA deve ocorrer a inépcia, ou, em outras palavras, a falta absoluta de aptidão técnica do órgão municipal para o licenciamento. 5. Apelação e remessa oficial improvidas” (TRF4. Apelação/Reexame Necessário nº 2007.72.08.003682-0/SC. Rel. Juiz Federal João Pedro Gebran Neto. DJe, 8 set. 2009).

Autores

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    é advogado, professor da UFPB e da UFPE e doutor em Direito da Cidade pela UERJ. Autor de "Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos" (7. ed. Fórum, 2019).

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