Limite penal

Embrulho anticrime agrava o quadro em tempos de pandemia

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

29 de maio de 2020, 8h00

Spacca
“Para as pessoas ricas, o coronavírus é uma doença como outra. Para as pessoas pobres, isso quer dizer a morte”. (Le Monde, 27.03.20). Com esta frase impactante, mas realista, Carlos Augusto, morador do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, conversou com o jornal francês no dia 22.03.20. Ela mostra o estado da arte da pandemia do coronavírus no Brasil. Parece que se vive, de certa forma, a narrativa de Albert Camus, José Saramago e, sobretudo, Giovanni Boccaccio. O mundo, hoje, gira em torno das notícias sobre a Covid-19 e espera pelo número de mortos e doentes como quem espera pela hora de encarar o pior. Pior, todavia, para quem luta contra a morte e não para os que a fomentam ou se omitem. Os que entendem que agentes econômicos nulos devem morrer, contudo, parecem torcer para isso, como a superintendente da Susep que declarou ser positivo para o regime previdenciário a morte de idosos.

Uma trégua poderia vir com medidas governamentais inteligentes, que levassem em consideração a vida humana antes da economia, mas não foi e não está sendo assim. Enquanto o governo federal claudicava em contraditórias declarações que colocavam em conflito a área de saúde com o presidente da república, os governos estaduais e municipais, cientes de que as pessoas vivem e morrem nos seus quintais, começaram, de forma um tanto amadora, pela inexperiência, a ditar as regras, dentre elas o isolamento social. Com as determinações conflitantes dos diferentes “governos” de uma mesma república, passou-se a viver “uma pandemia e um pandemônio” (João Almeida Moreira, Diário de Notícias, 28.03.20).

Todos tiveram que permanecer em suas casas (os que as têm, claro), ressalvados aqueles que trabalham em serviços essenciais. Dois problemas imediatamente se colocaram: fazer os mais pobres, em geral sem renda, sobreviver; e garantir que o coronavírus, mais pela velocidade com a qual se transmite que pela própria transmissão, contaminasse um número menor de pessoas, de modo a que o (precário e reduzido nos últimos tempos) sistema de saúde pudesse tratá-las adequadamente. Era o cenário adequado para vir à luz a batalha que nunca calou: vida versus dinheiro, capital versus trabalho, ricos versus pobres, e assim por diante. Veio à tona, também, como não poderia deixar de ser, a discussão sobre o papel do Estado, sempre lembrado, nessas horas, para pagar a conta.

Diante desse quadro, o governo federal, mais uma vez, comportou-se mal. De um lado, com um atraso inexplicável, só em 26.03.20 fez aprovar, na Câmara dos Deputados, uma ajuda humanitária aos trabalhadores informais de R$ 600,00, sem que até o presente momento esteja tudo funcionando, como se todos pudessem esperar. Depois, em visível desprezo pela vida humana, com apenas uma semana de isolamento social, o presidente da república, empurrado por empresários desprezíveis ligados à sua base política, começou a pregar — sendo seguido por alguns políticos — a volta ao trabalho e ao convívio social, contra todas as indicações científicas, a começar por aquelas da OMS.

Estava aberta a porta para a mais forte ameaça de contaminação. Arrisca-se ter um montante de contaminados que ninguém teve (até porque se não testa por aqui todos), nem os EUA que, seguindo diretrizes do presidente Trump, foi ao primeiro lugar, no mundo, no volume de infectados, projetando-se um desastre. Na data de hoje, 29.05.20, somos o primeiro lugar em mortos no mundo. Estabelecimento penais estão em compasso de espera do pior (salvo aos que desejam a morte dos ditos “indesejáveis”), diante da renitência no cumprimento da Recomendação 62 do CNJ.

Esse modo de agir atabalhoado do governo federal reflete-se em todos os campos e mostra quão despreparada é grande parte dos seus integrantes, começando pelo próprio presidente da república e seus ministros, inclusive contando os que saíram.

Isso, como não poderia deixar de ser, aparece nas propostas que avançam, dentre elas o famoso “Pacote Anticrime”, cujo nome melhor seria “Embrulho Anticrime” um complexo de reformas na legislação do campo criminal de tal forma confusas que se tornou difícil achar algo que não fosse inconstitucional ou de difícil leitura sistemática.

Na Câmara dos Deputados, um Grupo de Trabalho fez tudo o que pôde para dar ao referido Pacote (ao qual se agregou uma proposta proveniente de uma Comissão presidida pelo Ministro do STF Alexandre de Moraes) alguma dignidade jurídica e técnica. Do difícil trabalho que teve resultou o pouco de proveitoso que, aprovado ali e depois no Senado, veio à luz como a Lei nº 13.964, de 24.12.19. O resultado, porém, foi um mostrengo. O que é bom, não é do governo; e o que é do governo, não é bom. Como lembrou Patrick Mariano (Cult, 09.12.19) em análise precisa sobre a tramitação: “Se o texto que Moro apresentou não poderia ser levado a sério, pois sequer foi acompanhado de justificativa – nem mesmo se observou alguma sistemática ou atenção às regras mínimas do processo legislativo em seu conteúdo, sendo mais um apanhado de ideias punitivistas populistas salpicadas ao léu e enviadas ao Congresso –, o da Comissão presidida pelo ministro do STF tampouco poderia ter algo digno de nota. Ambos representam aquilo que existe de mais torpe na ciência penal”.

O pouco que se louvou, na referida lei, foram as alterações introduzidas pelo Grupo de Trabalho. Delas, destacam-se as reformas que instituíram alguns institutos de processo penal e, dentre eles, a assunção do Juiz das Garantias, em que pese sejam importantes, também, as mudanças no arquivamento e desarquivamento da investigação preliminar, o chamado acordo de não persecução, a impossibilidade do juiz que conheceu do conteúdo de prova inadmissível proferir sentença ou acórdão, as regras que asseguram a cadeia de custódia, assim como as regras que tentam rearranjar as medidas cautelares, mormente as que dizem com a privação da liberdade.

Esse conjunto tenta introduzir, no processo penal brasileiro, um arremedo de sistema acusatório, do qual o sintoma é o preceito do art. 3º-A (copiado do art. 4º, do PLS 156/09): “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

A tentativa é louvável — porque é na direção do sistema acusatório que se deve caminhar — mas, como mostra a experiência de inúmeras e desastradas reformas parciais, nada disso vinga quando a base do sistema segue inquisitorial, principalmente as mentalidades. E o brasileiro seguirá assim, com o juiz como senhor absoluto (ou quase) do processo, mormente se não passarem as regras que a decisão do Ministro Luiz Fux, do STF, suspendeu sine die, por uma liminar, como relator das ações diretas de inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305. Nos últimos tempos os magistrados se arvoraram em condutores de inquéritos policiais, subvertendo qualquer lógica democrática, justamente porque qualquer regimento interno não pode revogar a Constituição da República.

Com um processo penal com tal estrutura (inquisitorial), nada obsta que o juiz prejulgue (embora não sejam todos que o façam) e, depois, teste a sua decisão no curso do processo para, ao final, sentenciar. Não raro, tudo é previsível. O resto é ou pode ser tão só retórica, como facilmente se percebe pelo jogo de relativização que se tem feito, principalmente, em relação à aplicação dos princípios e regras constitucionais no processo (quem sabe em especial para a presunção de inocência e o livre convencimento), além do manejo deletério do pas de nullité sans grief. O processo penal, como mecanismo de garantia do cidadão contra o arbítrio do Estado, está em ruínas.

Até agora, como se viu, tratou-se das coisas boas. As ruins, contudo, dizem com o resto da lei; e não é pouco. Afinal, nunca se viu, no país, alguma lei tão assistemática, punitivista e reacionária. Eis o oportunismo de um direito de emergência, como diz Fauzi Hassan Choukr, promovido por alienados da criminologia crítica, ou seja, gente que sonha em prender o coronavírus, assim como quer a morte aos presidiários.

Os penalistas e penitenciaristas estão até agora atordoados. O volume de inconstitucionalidades é de tal monta que seria preciso imaginar aquilo que pudesse escapar de um controle efetivo nessa direção, embora que com boa vontade democrática se possa ler os dispositivos na linha acusatória. O problema é gente que se apega à literalidade de dispositivos não expressamente revogados, mas incompatíveis (v.g. CPP: arts. 155; 209; 212; 385), para sustentar posições incompatíveis com a lógica da sucessão de leis no tempo (a de mesma hierarquia e mais recente revoga o que for incompatível).

Urge, portanto, discutir o conteúdo da Lei nº 13.964/19 e organizar as medidas adequadas que possibilitem um controle sério e efetivo de constitucionalidade, torcendo para que o STF tenha consciência de seu papel diante da Constituição da República. A defesa dela é dever de todos aqueles que têm um mínimo de compromisso com a democracia e cidadania.

Em tempos de pandemia assim como naqueles de guerra faz-se mister olhar para o futuro e perceber que é só em um ambiente democrático que se pode crescer. A Alemanha é um bom exemplo. Apostar no caos é investir nas lágrimas, seja pelo coronavírus, seja pela guerra. Mas parece que a pulsão de morte está ganhando… Eis a opção que se não pode fazer. Lutemos sempre pela vida contra embrulhos da morte

Autores

  • Brave

    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

  • Brave

    é advogado e professor titular de Processual Penal na Universidade Federal do Paraná (UFPR), da pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS e do mestrado em Direito da Faculdade Damas. Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Università degli Studi di Roma, mestre em Direito pela UFPR e especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Membro da Rede de Direito Público Brasil-Itália-Espanha (REDBRITES) e pesquisador e presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!