Opinião

O descompasso entre o julgamento virtual e o eletrônico no Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Ivan Allegretti

    é advogado em Brasília professor na graduação e na pós-graduação do IDP doutorando e mestre pela Universidade de São Paulo.

29 de maio de 2020, 7h15

Não há dúvida de que o julgamento virtual chegou para ficar, como também de que ainda há um longo caminho pela frente para que funcione de maneira adequada, o que envolve não apenas a delimitação conscienciosa do seu alcance como também a racionalização de seu funcionamento.

A pandemia se encarregou de precipitar para já a ampliação total de seu alcance no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que, com ares de provisoriedade e contingência, admite hoje o julgamento de qualquer tipo de processo em ambiente virtual.

Assim, o julgamento em sessão virtual, que foi inicialmente concebido apenas para deliberar quanto à existência de repercussão geral, depois autorizado apenas para o julgamento de agravos internos e embargos de declaração (Resolução 587/2016), e em seguida ampliado para o julgamento de medidas cautelares e de casos em que a matéria discutida tivesse entendimento já definido em jurisprudência dominante da corte (Resolução 642/2019), agora se encontra ampliado para qualquer tipo de processo em tramitação na Suprema Corte (Emenda Regimental 53/2020 e Resoluções 669 e 672/2020).

As recentes alterações normativas trouxeram consigo o complicador de abrangerem duas sistemáticas diferentes as quais se podem denominar julgamento (a) por sessão virtual e (b) por videoconferência sem estabelecer um critério claro para distinguir o âmbito de aplicação de uma e outra, visto que qualquer caso pode ser julgado pela primeira via.

Quem se depara pela primeira vez com a redação vigente do artigo 21-B do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (STF) (dada pela Emenda Regimental 53/2020), no que se refere a julgamento "em ambiente presencial ou eletrônico", é assaltado pela dúvida razoável de saber em qual destas categorias classificar o julgamento por videoconferência. Vale notar que a própria emenda regimental utiliza o termo "ambiente virtual" no preâmbulo e "ambiente eletrônico" no texto do dispositivo.

A confusão se dá não apenas pela falta de nomenclatura oficial precisa e uniforme, mas pelo fato de que ambas sessão virtual ou por videoconferência não são presenciais no seu sentido físico sendo neste contexto igualmente virtuais , embora em cada caso a concretização do julgamento se dê de maneira substancialmente diferente.

No julgamento em sessão virtual os ministros não estão simultaneamente presentes, de modo que não presenciam a sustentação oral, nem o voto dos demais ministros no mesmo momento em que são realizados o que objetivamente elimina qualquer chance de interação simultânea e instantânea entre eles. Esse julgamento acontece por meio do sistema informatizado e dura uma semana, ao longo da qual os demais ministros podem oportunamente manifestar seu voto, acompanhando ou divergindo do relator (ou mesmo deixar de fazê-lo, o que será interpretado como voto que acompanha o relator).

No julgamento por videoconferência o que se têm é a realização de uma sessão de julgamento semelhante a que tomaria lugar em ambiente presencial, com a diferença de que os ministros, advogados, servidores e o público não estão fisicamente presentes no mesmo recinto, embora participem simultaneamente deste mesmo ato, fazendo-se presentes por meio eletrônico.

Desde a introdução da sistemática de julgamento em sessão virtual portanto desde antes do julgamento por videoconferência , quando um recurso ou processo é incluído em pauta para julgamento virtual, as partes podem apresentar até 48 horas antes do início da sessão um pedido de destaque que, se for deferido pelo relator, implica em "não ser julgado em ambiente virtual"  o que na prática significa o seu encaminhamento para "julgamento presencial", segundo a terminologia da Resolução 642. O mesmo destaque também poderia ser feito por qualquer outro ministro.

Iniciada a sessão virtual, as opções de voto dos ministros são: "a acompanho o relator; b acompanho o relator com ressalva de entendimento; c divirjo do relator; ou d acompanho a divergência" (artigo 6º, § 1º, da Resolução nº 642/2019).

Qualquer dos ministros pode também pedir vista, interrompendo o julgamento, e posteriormente decidir se a sua retomada se dará em ambiente virtual ou em sessão presencial (artigo 5º da Resolução nº 642/2019, cujo sentido foi preservado mesmo após o ajuste de redação pela Resolução nº 669/2020).

Nesse contexto, uma primeira questão que se coloca é se há prazo para o destaque?

O texto do regimento interno não fornece qualquer elemento a esse respeito, limitando-se a dizer que "no caso de pedido de destaque feito por qualquer ministro, o relator encaminhará o processo ao órgão colegiado competente para julgamento presencial, com publicação de nova pauta".

A Resolução nº 642/2019 estabelece prazo apenas para as partes apresentarem o pedido de destaque ao relator 48 horas antes do início da sessão (artigo 4º, III). Mas outro de seus dispositivos sugere claramente que o destaque pode acontecer até mesmo depois de iniciado o julgamento: trata-se do § 2º do artigo 4º, o qual prevê que nos casos de destaque "o julgamento será reiniciado", o que toma por premissa que o destaque foi feito depois de iniciado o julgamento.

Será esse, contudo, o melhor encaminhamento?

E se o destaque for feito por um ministro mesmo depois de já proferidos votos pela maioria dos demais? Pode ser feito na vigência de pedido de vista de outro ministro?

É essa a curiosa situação do Recurso Extraordinário nº 796.939, em que se discute a constitucionalidade da aplicação de uma multa adicional na recusa de compensação tributária.

A situação é ainda mais pitoresca dado que as partes tanto o contribuinte como a Procuradoria da Fazenda pediram o destaque do caso, o que foi categoricamente recusado pelo relator e nenhum outro ministro se manifestou neste sentido até o início da sessão, assim se instalando regularmente o julgamento em sessão virtual, com voto do relator, ministro Edson Fachin, pelo provimento do recurso do contribuinte. Seguiu-se a apresentação de votos pelos ministros Celso de Mello, Luiz Fux e Alexandre de Moraes, e então o julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.

Contudo, ainda antes da devolução do caso com a vista do ministro Gilmar Mendes, sobreveio pedido de destaque pelo ministro Luiz Fux, com isso tornando ineficazes ou inexistentes todas as movimentações anteriores.

Talvez se trate de um mecanismo importante para assegurar a todos e a qualquer um dos ministros, de maneira uniforme, o poder de restabelecer a tramitação ordinária dos julgamentos pela via presencial.

A verdade, contudo, é que no atual estado das coisas sequer existe um critério normativo que permita distinguir quais casos devem ou não ser submetidos a uma ou outra sistemática.

E também parece certo que, para além dos recursos públicos gastos com o procedimento abortado, se está diante principalmente de uma perda de tempo precioso dos ministros e das partes, visto que o julgamento volta solenemente à estaca zero, devendo o caso aguardar nova inclusão em pauta.

Afinal: qual o critério que os ministros deveriam adotar uniformemente para decidir entre o julgamento virtual ou presencial (mesmo que eletrônico)?

Como dito, ainda é necessária muita reflexão a respeito do alcance do julgamento virtual e dos mecanismos processuais necessários para conferir-lhe eficiência.

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