Improbidade em Debate

A contribuição do STF para o debate legislativo sobre a culpa em improbidade

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29 de maio de 2020, 10h13

Spacca
Há duas semanas, escrevemos sobre a Medida Provisória 966/2020 e sobre o artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) no contexto das dúvidas suscitadas acerca de sua constitucionalidade por diversas ações diretas ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal com cautelares cuja apreciação era iminente.

O resultado desse juízo sumário, já sabido de todos, foi proclamado em 22/5, com o deferimento parcial das medidas cautelares, por maioria, para o fim de serem firmadas como teses o seguinte:

1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.

2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.

Bastante pontualmente, guardamos algumas pequenas reservas a respeito do julgamento. Em primeiro lugar, ponderamos possa ter havido uma regulamentação judicial da medida provisória, ainda que sob o signo de interpretação conforme.

Em segundo lugar, porque, em alguns momentos, ao se afastar a incidência do erro grosseiro das ações de improbidade, se possa ter passado ao largo da jurisprudência atual do Superior Tribunal de Justiça que exige no mínimo culpa grave em sede de improbidade e porque acabou-se por misturar elemento subjetivo do tipo (gravidade, para fins de aferição de culpabilidade) com elementos objetivos (tipologia aberta dos atos de improbidade), sem que se percebesse que é possível que ocorra a dualidade erro grosseiro ou não grosseiro em sede de improbidade.

Finalmente, em terceiro lugar, não podemos deixar de considerar que parte do propósito da medida provisória (prover segurança) possa ter acabado ficando prejudicada quando se atrelou a aferição de erro grosseiro a parâmetros igualmente amplos, como princípio da precaução e da prevenção.

Sem embargo de tudo isso, e por um olhar mais amplo, o julgamento trouxe consigo, a nosso juízo, um saldo bastante positivo. Isso porque a antiga tensão entre, de um lado, segurança jurídica e direitos fundamentais e, de outro, o combate à impunidade, forneceu campo para um debate franco, que bem percebeu os riscos emanantes da banalização sofrida em sede ímproba-disciplinar nas últimas décadas.

O “comentarista de videoteipe” (expressão utilizada pelo ministro Roberto Barroso) ou o “engenheiro de obra feita” (como referido pelo ministro Gilmar Mendes) ilustraram o olhar crítico, pelo retrovisor, daquele que, sem empatia, se presta a ignorar especificidades, peculiaridades, desafios e boas intenções, acabando por nivelar gestores de boa e de má-fé. Foram abordados os efeitos deletérios dessa concepção punitivista, tanto pela “paralisia” administrativa (como dito pelo ministro Gilmar Mendes) capaz de provocar, como também pela dissuasão de bons quadros que se furtam a contribuir com o ambiente público por receio.

Ainda além, foi de suma importância o deliberado não enfrentamento da cautelar no que diria respeito ao artigo 28 da LINDB, entendendo o Tribunal, na esteira do voto do relator, ministro Roberto Barroso, que o dispositivo, celebrado doutrinariamente, tem sido muito bem aplicado já há mais de dois anos, merecendo em verdade prestígio desautorizador de sua suspensão.

O julgado também trouxe à discussão a inexistência de dificuldade em se limitar responsabilidades a erros grosseiros, ostentando complexidade, isto sim, a qualificação do que seja erro grosseiro — já pudemos tratar, neste espaço, sobre como certos julgados têm na verdade assemelhado a culpa grave a dolo eventual.

A trazida de todos esses temas à evidência, enfim, é mote que deve reverberar na agenda legislativa. E talvez seja esse o grande predicado do julgado.

Explicamos: o Projeto de Lei n. 10.887/2018, em curso perante a Câmara dos Deputados, propôs eliminar a modalidade culposa da prática de atos de improbidade. É a instância legislativa a que julgamos seja o foro mais adequado ao debate, que, agora, foi bastante oxigenado não somente pela jurisprudência do STJ, mas por esse recente julgado do STF.

Quer seja pela eliminação da culpa, quer seja por sua qualificação como grosseira (com necessário detalhamento dessa aferição), quer ainda seja pela maior delimitação dos tipos abertos da improbidade, fato é que é hora de retomar aquela proposição legislativa.

Devemos reviver o debate sobre a culpabilidade em sede de improbidade. O momento é oportuno; os argumentos estão postos; e o horizonte insinua investidas sancionadoras que merecem desde logo calibragem por um novo diploma.

Autores

  • é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

  • é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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