Opinião

Ensino jurídico na quarentena (II): o que vivemos e aprendemos até aqui

Autores

  • Marina Feferbaum

    é coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (Cepi) e da área de metodologia de ensino da FGV Direito SP onde também é professora dos programas de graduação e pós-graduação.

  • Guilherme Klafke

    é professor da pós-graduação lato sensu da FGV Direito São Paulo e líder de pesquisa no FGV-CEPI.

29 de maio de 2020, 6h32

O diretor da FGV Direito São Paulo, Oscar Vilhena Vieira, comparou nossa situação com a tentativa de aprender a andar de bicicleta numa ladeira. Tal metáfora ilustra bem as condições em que tivemos que trabalhar no início do decreto de isolamento social, com consequente suspensão das atividades presenciais universitárias. Mas, mesmo com inúmeros ajustes a serem feitos, principalmente em cursos que utilizam metodologias participativas, a nossa experiência foi muito boa.

Ainda que a primeira reação de sobrevivência tenha sido, de certa maneira, "transplantar" o ensino presencial para um formato virtual, com todas as suas implicações, foi interessante observar que essa experiência trouxe um grande alívio aos(às) professores(as) e até uma certa empolgação logo no início. Isso porque tal circunstância permitiu que eles(as) estivessem presentes e próximos(as) de alunos(as) e colegas. Mesmo sem superar todos os desafios, perceberam que os cursos — mesmo os participativos tinham potencial para funcionar bem no ambiente virtual. Os(as) docentes mais experientes observaram um mundo novo se abrindo diante deles(as): possibilidades de conexões com pessoas de todo o Brasil e do mundo, a qualquer hora e em qualquer lugar, a custo baixo. Então, por que não convidar um amigo ou uma amiga especialista para falar com a turma?

Com esse novo modelo de ensino, todos nós fomos obrigados(as) a sair da zona de conforto e, sem alternativa, enfrentar o tão falado, mas pouco vivenciado, ensino a distância. Não apenas aulas, mas também reuniões, bancas e seminários passaram a ocorrer no ambiente virtual. Sabemos que, enquanto professores(as), é muito difícil redesenhar um curso em andamento, ainda mais em uma semana ou duas e com um formato quase desconhecido. Mas isso foi concretizado, aprendemos bastante e ainda temos muito a extrair dessa experiência. Aliás, já houve um grande aprendizado — em termos de adoção de tecnologia, dizem os especialistas que avançamos alguns anos em poucas semanas. [1] Sabemos muito mais sobre como entrar numa plataforma como o Zoom ou fazer uma live no Instagram do que antes.

O calendário de aulas foi mantido: mesmo dia e mesma hora, só que por computador. No entanto, com o passar das semanas, alunos e alunas começam a expressar um certo cansaço das telas e das longas aulas, já que o impacto do tempo é diferente presencial e virtualmente. Em meio à exceção que estamos vivendo, a continuidade das aulas traz diversas questões de outras ordens sobre a vida, as prioridades e a sobrevivência: qual é o papel das aulas neste momento? Devemos manter o cronograma a qualquer custo? Proporcionar apenas a continuidade de uma rotina? Vamos ver o que aprendemos.

A importância da saúde mental
Os fatores externos também afetam a dinâmica e o significado da sala de aula para professores(as) e alunos(as). Por isso, um dos pontos fundamentais a se considerar é, sem dúvida, a saúde mental das pessoas.

O papel das aulas hoje tem sido, de certa forma, ancorar a referência de uma certa normalidade na rotina e proporcionar uma proximidade entre as pessoas num momento tão difícil. Para muitas delas, especialmente para as que podem ter uma rotina de confinamento, essa é uma das poucas ocasiões mantidas. Precisamos conversar com os(as) estudantes sobre o que está acontecendo e como estão lidando com isso. Não é o momento de pensarmos somente se eles(as) irão aprender o que é enfiteuse ou como se faz o cálculo da prescrição da pretensão punitiva.

A importância de uma educação humanizada
Os atos de verbalizar e acolher também são educativos, dada a nossa condição de seres humanos. Eles formam e transformam cidadãos e futuros profissionais jurídicos. Por isso, não podemos ter medo de suspender as preocupações exclusivas sobre "passar o conteúdo" ou "atrasar o programa da disciplina" para que possamos trabalhar a dimensão humana das pessoas. Esse é um dos caminhos mais empáticos e humanizadores a se tomar agora.

E não estamos nos referindo somente aos(às) alunos(as), mas também à humanização da figura do(a) professor(a). Tivemos uma situação interessante na FGV. A escola solicitou que os(as) professores(as) colocassem no ambiente virtual um fundo falso com o logo da instituição. Muitos se posicionaram contra, veementemente, afirmando que os(as) alunos(as) deveriam ver que o(a) professor(a) também é um ser humano, que enfrenta desafios tanto no ambiente virtual como no doméstico. Se fosse para ver que na casa dele(a) há livros, quadros, plantas, crianças brincando ou cachorro latindo, que vissem. Outros se sentiram confortáveis com a medida por temerem a invasão da sua privacidade. E o que aprendemos? Desnudadas da aura professoral conferida pelo ambiente isolado da sala de aula, essas pessoas tiveram que escolher entre se mostrar ou não para além do próprio papel social docente.

A importância dos efeitos da desigualdade social no ensino
Não ignoramos as várias reflexões sobre desigualdade social no ensino presencial que já eram feitas anteriormente. Da necessidade de comprar apostilas xerocadas a problemas de faltas e atrasos por conta da rotina extenuante, dos problemas com moradia e alimentação estudantil às interações em sala de aula, da divisão social de tarefas com base em gênero à discussão sobre grupos de risco, a desigualdade se manifestava no ensino presencial. Mas, de repente, vimos professores que nunca haviam se expressado sobre essas questões refletindo sobre o acesso ao ensino no ambiente virtual.

A situação despertou muitas reflexões sobre a dimensão social do país, e a multiplicidade de experiências afetou diretamente a educação. Há escolas que estão com as aulas suspensas, como as universidades federais, já que muitos dos(as) estudantes não têm sequer um computador ou acesso à internet. Para muitos, então, essa experiência tecnológica no período de pandemia tem sido uma não experiência.

E essa é apenas uma face das desigualdades, sempre gritantes no Brasil e mundo afora, que agora se agravam. Há um verdadeiro abismo entre aqueles que têm o privilégio de poder trabalhar ou estudar de casa e os que perderam o emprego em razão da pandemia ou sequer podem se isolar por exigência do trabalho, do empregador ou, ainda, por necessidade de sobrevivência. Também há os enormes impactos da pandemia sobre as mulheres, que vão do aumento da violência à sobrecarga do trabalho doméstico, passando pela consequente redução da produtividade acadêmica [2].

Os desafios enquanto sociedade são muitos e de diversas ordens. Essa situação apenas escancarou ainda mais os desafios e as fragilidades que devemos enfrentar enquanto cidadãos e educadores(as).

Segunda conclusão
O saldo dessa experiência na quarentena é bastante extenso, mesmo com muitas pessoas reclamando que estão trabalhando mais e, às vezes, até produzindo menos. Isso é totalmente compreensível, já que muitos de nós estamos em fase de aprendizado: como usar o Hangout, o Zoom, o Microsoft Teams etc. Tudo isso consome muito tempo e energia, mas estamos certos de que iremos nos adaptar e dominar essas ferramentas. O fato é que houve uma mudança radical nos papéis que tivemos que passar a desempenhar e, também, na compartimentalização dos espaços e do tempo. Muitos de nós assumimos funções novas, como professores dos filhos, e passamos a realizar tarefas que antes delegávamos, como as obrigações domésticas. Aumentou a carga de trabalho, tudo isso em um mesmo espaço físico e sem qualquer referência anterior.

Mas podemos aprender com esse período. Como professores(as), devemos refletir sobre a dimensão humana no ensino. E não falamos apenas de trazer mais problemas humanos concretos como conteúdo para a sala de aula. Você já reparou que no ambiente online é possível chamar todos pelo nome porque os(as) alunos(as) passam a estar identificados(as)? Pois é, esse é um pequeno detalhe que pode fazer diferença nas interações em sala de aula. Afinal de contas, os encontros são feitos por pessoas e entre pessoas.

No fim, o contato virtual é suplementar. Como diz Christian Dunker, 'ela não é a experiência como um todo, mas um parêntese na experiência que estávamos vivendo temos que aceitar e acolher" [3]. Vamos voltar a nos encontrar presencialmente. E é para isso que devemos nos planejar e aprender. O próximo texto tratará especificamente desse movimento.

Leia aqui a primeira parte do artigo.

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