Opinião

A constrangedora posição dos municípios na pandemia da Covid-19

Autor

  • Vitor Marques

    é secretário municipal de Assuntos Jurídicos e da Justiça de Cotia membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB-SP e mestre em Direito pela PUC-SP.

28 de maio de 2020, 12h35

Em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus e do seu alastramento pelo Brasil, a União, 25 Estados e o Distrito Federal decretaram estado de calamidade pública, e cerca de dois mil municípios, o estado de emergência na saúde, até o momento. Em um quadro desolador para o país — após inúmeras decisões inábeis do governo federal —, a situação dos municípios não poderia ser pior. Embora fundamentais para a superação da crise, sua autonomia é vinculada: são obrigados a cumprir as decisões estaduais, sob pena de punição dos órgãos de controle, e pouco podem inovar, mesmo diante dos desafios locais nesta pandemia.

Afirma a Constituição Cidadã que a República Federativa do Brasil é organizada político-administrativamente, formada de maneira indissolúvel, por meio da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, garantindo-se a todos esses entes uma autonomia própria.

O mesmo texto constitucional introduz a saúde como direito social a ser zelado de modo compartilhado entre todas as esferas de governo, o que significa que: é de responsabilidade de todas as instâncias administrativas do país a implementação de políticas que visem a proteger e promover a saúde dos cidadãos.

Se num primeiro momento havia por parte de alguns chefes do Executivo dúvida sobre a existência da pandemia, o número de mortos, atualizado diariamente, escancarara a realidade.

Ocorre que permanece uma grande e central divergência entre a União e boa parte dos Estados sobre quais alternativas devem ser adotadas para enfrentar o vírus e proteger a população brasileira. O conflito foi levado ao Supremo Tribunal Federal por meio da ADI 6341, de autoria do Partido Democrático Trabalhista (PDT), que questiona a constitucionalidade da Medida Provisória nº 926, em especial no tocante à competência federativa para adoção de medidas no combate à Covid-19.

Em análise pelo Supremo, prevaleceu, em sede de medida liminar, o entendimento de que a autonomia disposta na Constituição Federal implica a competência dos entes federados em praticar os atos de políticas sanitárias necessários para o enfrentamento da pandemia, como, por exemplo, a adoção de medidas voltadas ao isolamento social.

Essa decisão — resguardar a autonomia de Estados e municípios — prestigia a Constituição Federal e, também, desloca a atenção direcionada à União, que pouco se empenha em exercer seu papel de coordenação de políticas em nível nacional com os demais entes da federação. Para agravar esse cenário, o presidente da República, com frequência diária, profere manifestações e atos normativos que não levam em consideração critérios técnicos e científicos, e colocam a União em conflito com políticas adotadas por governadores e prefeitos.

A acefalia do Planalto acabou por transferir o protagonismo de articulação aos governadores. É da instância estadual, portanto, que parte a maioria das medidas de nível concreto de enfrentamento da pandemia, em grande parte criticadas pela Presidência da República. Nos poucos Estados que se alinham à postura do governo federal, o remédio para evitar a piora do cenário de crise tem sido a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Percebe-se que, na tentativa de equacionar o conflito institucional provocado pela União ao se omitir ou agir em sentido oposto ao que se espera nesse momento de pandemia, remendos institucionais acabaram surgindo.

Com esse embaraço e a excessiva proeminência dos governos estaduais, restou aos chefes de Executivo em nível municipal — certamente os mais cobrados pela população pela proximidade — uma autonomia deveras reduzida para atender às particularidades locais e um estado de insegurança jurídica: ou bem seguem as decisões generalistas do Estado ou anuem às recomendações dos órgãos de controle, a fim de evitar serem responsabilizados de forma desproporcional.

A consolidação desse cenário pode ocasionar a imposição de medidas desarrazoadas aos municípios, sobretudo àqueles distantes dos grandes centros urbanos, e também apenar prefeitas e prefeitos que destoem de determinação estadual ou recomendação por parte dos órgãos de controle em busca de alternativas que atendam melhor ao interesse público e às realidades locais.

A questão que se coloca é a da autonomia de ação dos municípios para — pautados em critérios objetivos e respaldados em análises técnicas — selecionar entre as diversas formas de atuação possível aquela que seja mais condizente com os reflexos diretos e indiretos da pandemia nos limites territoriais e regionais que estão inseridos.

Até o momento, o que se tem visto é uma polarização entre discursos simplistas, de modo a antagonizar dois fundamentais e complementares elementos da vida social: saúde e economia. No entanto, os exemplos internacionais vistos em detalhe dão conta de uma infinidade de medidas a serem adotadas, além das que estão em disputa no debate político brasileiro, apresentando alternativas que poderiam servir de interlocução na aparente rivalidade entre atividade econômica e proteção da vida.

O caminho para a superação dessa imensa crise, certamente, será menos danoso se trilhado em harmonia e cooperação pelos entes federativos — sempre pautados na racionalidade e razoabilidade — e prudência dos órgãos de controle. Mesmo em tempos de pandemia, estranhos e extraordinários, num Estado que se pretenda democrático, a Constituição continua sendo o início, o fim, e o meio.

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    é secretário municipal de Assuntos Jurídicos e da Justiça de Cotia, membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB-SP e mestre em Direito pela PUC-SP.

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