Opinião

A efetividade das medidas trabalhistas adotadas pelo Brasil na Covid-19

Autor

  • Talita Beatriz Pancher

    é advogada trabalhista pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela USP pós-graduanda em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp (2019-2020) e membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB-SP Subseção Rio Claro.

28 de maio de 2020, 15h30

Em um contexto de calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19, o governo federal editou, entre outras, as Medidas Provisórias 927 e 936, que dispõem de medidas trabalhistas para enfrentamento da crise, sob o pretexto de garantir a preservação dos empregos.

As medidas provisórias permitem o manejo de uma série de institutos para desonerar as folhas de pagamento e remanejar as atividades laborais, como teletrabalho, antecipação de férias individuais, concessão de férias coletivas, banco de horas, suspensão dos contratos de trabalho, redução da jornada e salário, entre outros.

Em caso de suspensão dos contratos de trabalho ou redução da jornada e remuneração, como contrapartida estatal, os empregados receberão um percentual do beneficio previdenciário seguro desemprego (Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda), variável a depender do percentual de redução (25%, 50% ou 70%) e da faixa salarial, conforme disposições da MP 936/2020.

Aos empregados abrangidos pela suspensão do contrato ou redução de jornada e salários, há previsão de garantia provisória de emprego, pelo dobro do período da suspensão ou redução, sob pena dos empregadores arcarem com indenizações pré-definidas (50%, 75% ou 100% dos salários correspondentes ao período).

Portanto, o benefício corresponde a um percentual do benefício do seguro desemprego, que, por sua vez, já não corresponde ao valor real do salário do empregado (o valor da parcela é variável e seu teto é de R$ 1.813,03 [1]).

O direito potestativo de o empregador efetuar demissões sem justa causa esbarra na previsão da Convenção 158 da OIT, a qual exige que as demissões ocorram somente por justo motivo, relacionado com o comportamento do empregado, capacidade ou necessidades de funcionamento da empresa.

Como é cediço, a convenção foi aprovada pelo Decreto Legislativo 68, ratificado em janeiro de 1995, com vigência a partir de janeiro de 1996. Contudo, foi denunciada pelo Decreto 2.100, em dezembro de 1996, ocasião na qual a convenção já não estava em vigência, por força de decisão liminar concedida na ADI 1480 [2].

Portanto, a convenção não se encontra vigente no ordenamento jurídico brasileiro, o qual exige, para incorporação dos instrumentos internacionais, a assinatura do presidente da República e aprovação pelo Congresso Nacional, com a edição de decreto legislativo e posterior ratificação, promulgação e incorporação.

Via de regra, os tratados ou convenções terão status de lei ordinária, com exceção dos tratados de direitos humanos, que possuem status supralegal ou, se aprovados na forma do artigo 5º, §3º da Constituição Federal, de emenda constitucional.

Para alguns doutrinadores, a maioria das convenções da OIT trata de direitos humanos, o que permite a realização de controle difuso de convencionalidade, conforme parcas decisões do Tribunal Superior do Trabalho.

A ausência de aprovação das convenções da OIT com quórum qualificado obsta a realização de controle concentrado, nos moldes do decidido pelo Supremo Tribunal Federal [3], em que pese a maioria esmagadora dessas convenções tenha sido aprovada anteriormente na Emenda Constitucional nº 45 de 2004, que inseriu o §3º do artigo 5º da Constituição Federal.

Relevante mencionar que o próprio Tribunal Superior do Trabalho, especificamente a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, afastou o controle de convencionalidade realizado pela 7ª Turma, quanto à aplicação das convenções 148 e 155 da OIT em face do artigo 193, § 2º, da CLT [4].

Pois bem. Em um contexto de pandemia mundial, com reflexos diretos no mercado de trabalho e, consequentemente, na economia como um todo, é quase unânime a conclusão da necessidade de atuação estatal com o objetivo de remediar a crise.

Para alguns economistas, o fenômeno atual pode ser comparado à crise de 29, o que ensejaria na necessidade de adoção de um new deal, mediante investimentos públicos organizados aptos a propiciar o crescimento econômico.

Nesse contexto é que foram editadas as Medidas Provisórias 927 e 936, mencionadas alhures.

Muito se discute acerca da necessidade ou não da assistência sindical para formalização dos acordos decorrentes da aplicação das medidas, o que culminou na apreciação do tema pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 6363) [5], com a edição de liminar favorável a intervenção sindical, posteriormente derrubada pelo plenário.

Inegável a excepcionalidade do momento, o qual implica na consequente adoção de medidas excepcionais.

Mas para muito além da discussão entre a violação ou não de direito constitucional sindical, a análise de algumas premissas fáticas conduz a silogismo que se sobrepõe a quaisquer outras discussões secundárias.

Uma vez que o Estado brasileiro não impediu a demissão imotivada no atual momento, qualquer outra medida adotada pelos contratantes será considerada menos gravosa, o que , sob o aspecto prático e realista da ideia de "condição mais benéfica", afastaria a própria necessidade de atuação sindical para redução salarial ou suspensão dos contratos de trabalho.

Não se trata da defesa pela manutenção do trabalho a qualquer custo, desconsiderando os aspectos da atividade empresarial, mas de exigir atuação efetiva do Estado para socorrer empregados e empregadores, partes que serão afetadas pela crise e que, como consequência, afetarão todos os demais atores sociais.

Curioso notar que mesmo em países que ratificaram a Convenção 158, e nos quais não é possível demitir imotivadamente, como ocorre na Itália, no contexto da pandemia, as demissões individuais e coletivas fundadas em motivos econômicos foram proibidas (artigo 46 do DECRETO-LEGGE 17 marzo 2020, n. 18 [6]).

Em contrapartida, as empresas que reduzirem a jornada e salário dos empregados ou suspenderem os contratos podem obter junto ao Estado auxílio para pagamentos dos trabalhadores, que corresponde a um percentual do salário real do trabalhador (80%), e poderá ser pago pelo período de até nove meses. Não se trata, portanto, de uma parcela de benefício previdenciário cujo montante já é menor do que o salário real dos empregados.

Seria exigir muito a adoção, ao menos nesse momento, da mens legis da Convenção 158 no tocante à proibição da demissão imotivada, evitando maior número de desempregados?

Não é demais lembrar que a Organização Internacional do Trabalho foi criada em um contexto de crise, como parte do Tratado de Versalhes, que colocou fim à Primeira Guerra Mundial, tendo por escopo fomentar a paz social, evitando maiores tragédias e, por certo, resultando na manutenção do sistema econômico [7].

As normas da OIT foram criadas para observância internacional, justamente para manter padrão mínimo de civilidade e impedir a concorrência desleal entre as empresas e plataformas que, ao utilizarem mão de obra subvalorizada, angariam vantagens competitivas que obrigam as outras a adotarem medidas similares, sob pena de extinção.

Aliado a suspensão das demissões imotivadas, seria necessária contraprestação efetiva do Estado para empregados e para as empresas que, por certo, prefeririam manter seu quadro de funcionários para atuação futura ao vislumbrarem um cenário de retomada econômica na pós-pandemia.

A adoção de tais medidas reduziria a insegurança jurídica que ainda paira nas empresas, que ao adotarem medidas de redução ou suspensão salarial não estão isentas do risco de, posteriormente, terem de arcar com condenações no âmbito da Justiça do Trabalho, fundamentadas em violação da dignidade da pessoa humana e da função social do contrato.

Aos que advogam a incapacidade financeira do Estado, convém considerar que, em 2019, o "gasto das famílias" foi o componente da demanda agregada que impediu a existência de um PIB negativo [8], em um cenário de estagnação econômica.

Portanto, medida que impossibilitasse as demissões sem justo motivo, aliada à transferência direta de renda adequada, neste momento, não poderia ser considerada como mero gasto estatal em descoberto irresponsável, mas como efetivo investimento para impedir uma
recessão econômica de longínqua duração.

O Estado precisa garantir condições seguras para que as empresas mantenham suas atividades e os postos de trabalho, e para que os empregados possuam renda para consumo, evitando ou ao menos adiando uma depressão econômica.

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    é advogada trabalhista, pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela USP, pós-graduanda em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp (2019-2020) e membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB-SP, Subseção Rio Claro.

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