Opinião

Advocacia no Simples Nacional: alento ou armadilha?

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28 de maio de 2020, 10h20

As atividades desenvolvidas por profissionais liberais sempre foram vistas pelo Fisco (e uma considerável parte da sociedade) como lucrativas e sob as quais o peso tributário deveria ser acentuado. Lembro-me bem, no manejo de uma ação, em causa própria, talvez a primeira depois de formado, que a nobre magistrada negou-me gratuidade processual ainda que demonstrada a paupérrima situação financeira   e asseverou em sua decisão o fato de a ação estar sendo movida por um advogado solteiro, concluindo que o ofício advocatício se mostrava lucrativo. Exatamente isto, foi o arremate.

Por tempos houve uma presunção quase absoluta de que o exercício de profissões regulamentadas como de advogado, contador, corretor de imóveis, engenheiro, fisioterapeuta, jornalista, entre outras, revelavam-se atividades muito rentáveis, desmerecendo, portanto, a benesse jurídica outorgada pelo artigo 170, inciso IX da Constituição Federal [1].

No âmbito empresarial, ancorando-se na Constituição Federal, vimos o aflorar da Lei nº 9.317/1996, que criou o sistema integrado de pagamento de impostos e contribuições conhecido como o regime tributário das microempresas e empresas de pequeno porte (Simples). Durante sua vigência, os entes federados aduziram um emaranhado de regras específicas com o intuito de complementar a lei federal, para os mais antigos, falávamos de Simples Federal e Simples Estadual.

Os critérios definidores de microempresa e empresa de pequeno porte eram obtidos pelo montante da receita bruta anual fixados em R$ 120 mil e R$ 240 mil, respectivamente [2]. Posteriormente, a Lei nº 9.317/1996 foi revogada, instituindo-se através da Lei Complementar nº 123/2006 o Supersimples, ou, como a lei estatuiu: regime tributário do Simples Nacional.

Muitas profissões regulamentadas, não se exaurindo nas citadas, foram gradualmente recebendo permissão para optarem pelo Simples Nacional, cabendo a estas, analisadas as particularidades e as névoas que pairavam sobre a regulamentação não tão simples do Simples Nacional aderirem ou não. Diga-se isso pois a revolucionária legislação trouxe caminhos espinhosos nas entrelinhas de seus muitos artigos que, se não observados, podem levar o empresário a arcar com uma carga tributária ainda maior que em outro regime que não tenha "todas essas facilidades".

Pois bem. A classe jurídica, restrinja-se aos advogados, em campanha encetada pelo CFOAB, laborou com fervor para que a atividade advocatícia fosse incluída no Simples Nacional, e obteve êxito. Mas, registre-se, a União Federal lutou bravamente contra. Após o tramitar burocrático nos órgãos de registro, o próximo passo era pedir o enquadramento no Simples Nacional. Ocorre que a Receita Federal negava em unanimidade os pleitos. Segundo o Fisco, o artigo 3º da LC nº 123/2006 [3] deveria ser interpretado restritivamente, visto que a atividade advocatícia apresentava peculiaridades que desautorizavam o tratamento tributário diferenciado. O pleito da advocacia vingou, assentando-se em decisão da 5ª Vara Federal do Distrito Federal (TRF da 1ª Região) [4] a inclusão irretratável da atividade advocatícia no Simples Nacional.

Feitas as considerações históricas, cumpre-nos destacar que nem tudo é motivo para festejo. Os prestadores de serviços que optam pelo Simples Nacional têm aspectos tributários, dentro do mesmo regime, bem diversificados. A título ilustrativo, e até superficialmente [5], notamos que escritórios de contabilidade são tributados com base nas alíquotas do anexo III e os escritórios de advocacia são tributados com base no anexo IV do Simples Nacional [6]. Há razão concreta? Temos dúvidas [7].

A partir daí, temos visto, tristemente, muitos colegas esbarrarem em questões sensíveis da dinâmica empresarial. Atua-se, com frequência, sem distinguir a pessoa jurídica (sociedade unipessoal) da figura (física) do advogado, ainda que saibamos que aquela só exista em razão deste. Compreenda-se, ainda que pareça óbvio, que o tema tem sido deixado em segundo plano, pois muitos colegas têm embaralhado os honorários recebidos da PJ e da PF. Por vezes, emite-se a nota fiscal pela sociedade unipessoal, mas o dinheiro é depositado na conta bancária da pessoa física. Noutro momento, os clientes depositam honorários na conta bancária da PJ, mas o advogado utiliza os dinheiros indiscriminadamente, ou seja, sem fazer distribuição de lucros ou retirada de pro-labore, despreocupando-se, talvez por ignorância, que está praticando confusão patrimonial ao manter indistintos os patrimônios da pessoa jurídica e pessoa física, fato que poderá causar, como bem sabemos, inúmeros problemas na vida financeira (e pessoal) do profissional.

Desse modo, a par do equívoco mais corriqueiro, é de suma importância que o advogado saiba (e pratique no dia a dia) que os valores recebidos através da sociedade unipessoal de advocacia não podem ser utilizados pelo advogado se não houver distribuição do lucro ou pagamento de pro-labore pela pessoa jurídica. Acrescendo-se que, retirando dinheiros da conta bancária da pessoa jurídica (como, por exemplo, o pro-labore mensal), estes devem ser submetidos à incidência de impostos e contribuições. Vejamos:

a) Contribuição Previdenciária de 11% (artigo 21, §2º, inciso I, da Lei nº 8.212/1991);

b) Contribuição Previdenciária Patronal de 20% (artigo 22, inciso I, da Lei nº 8.212/1991);

c) Contribuição de Terceiros (conhecido como Sistema S [8], que pode chegar a 5,8%);

d) Contribuição RAT de Riscos Ambientais do Trabalho variando de 1% a 3% (artigo 22, inciso II, da Lei nº 8.212/1991);

e) IRPF (observada a progressividade em tabela do artigo 1º, inciso IX, da Lei nº 11.482/2007).

Nesse sentido, ilustrativamente, se a sociedade unipessoal de advocacia faturou no mês R$ 6 mil e "pagou" ao sócio, a título de pro-labore, o valor de R$ 5 mil, teremos o seguinte quadro:

Pro-labore: R$ 5 mil.       

a) Contribuição Previdenciária do advogado (11%): R$ 550;

b) Contribuição Previdenciária Patronal (20%): R$ 1 mil;

c) Contribuição ao Sistema S [9] (5,8%): R$ 290;

d) Contribuição RAT (1% a 3%): R$ 50;

e) Imposto de Renda (22,5% redutor R$ 636,13): R$ 365,12;

f) Simples Nacional (4,5%): R$ 270.

Portanto, sobre os R$ 5 mil que o advogado utilizou (ou recebeu), terá que pagar como PF o valor de R$ 915,12 (soma dos itens "a" + "e"). Como PJ pagará o valor de R$ 1.610 (soma dos itens "b" + "c" + "d" + "f"). No total, pagará R$ 2.525,12. Desse modo, terá desembolsado a título de impostos e contribuições quase a metade do que ganhou [10].

O tema é importante por dois aspectos: I) pela armadilha do que se vende como simples, mas que, em verdade, é extremamente complicado e camufla meios de onerar (e tributar) com voracidade os serviços advocatícios [11], opondo-se flagrantemente ao objetivo inscrito no artigo 170, IX, da Constituição Federal; e II) pela ausência de planejamento (e descuido) do advogado que se vale da sociedade unipessoal como se fosse uma mera extensão do seu ofício (sem implicância jurídica), despreocupando-se, por conseguinte, dos aspectos tributários.

Por fim, reconhecemos que o regime tributário do Simples Nacional, enquanto agregador de vários impostos, contribuições e inúmeras obrigações acessórias, pode desonerar e formalizar juridicamente milhares de advogados, especialmente quando comparado com outros regimes de tributação (Lucro Presumido, Lucro Real e Lucro Arbitrado). No entanto, há uma sensível (e quase incolor) nódoa que acaba passando despercebida pela classe dos advogados mas requer cuidado. Solução? Uma delas é o planejamento tributário.

Reconheça-se que é uma aspiração legítima o anseio do advogado pelo crescimento econômico, aliás extensível a todo empresário brasileiro. Contudo, parece-nos que a compreensão de crescimento econômico, do qual decorre a produção de riquezas, é tema incompreensível na Fazenda, pois a cegueira arrecadatória avança com ímpeto esfuziante. No lugar de apoiar o empreendedor, seja em qual matiz atue (comércio, indústria ou serviço), permitindo-se a estruturação do negócio, sem que o peso dos tributos determine sua derrocada precoce, vimos que o comportamento predatório do Estado asfixia o pequeno empresário desde o nascedouro, mutatis mutandis, retira-se da terra tudo, absolutamente tudo o que ela pode fornecer, depois a inutiliza-se ou, no mais das vezes, dá-se uma destinação inglória: servirá de pasto ao rebanho. Entre nós: a informalidade.

Nesse compasso, enquanto a construção de leis não outorgar proteção ampla e estruturante para pequenos empresários, incluindo as profissões regulamentadas, teremos a desfiguração de leis com favorecimento de grupos que têm melhor capacidade de representação legislativa. Por ora, sentimos o peso do sistema simplificado que dá tratamento favorecido e diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte.

 


[1] Artigo 170  A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

[2] Lei nº 9.317/1996, artigo 2º, incisos I e II.

[3] LC nº 123/2006: "Artigo 3º — Para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se microempresas ou empresas de pequeno porte, a sociedade empresária, a sociedade simples, a empresa individual de responsabilidade limitada e o empresário a que se refere o artigo 966 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas…”

[4] Consulte: https://processual.trf1.jus.br/consultaProcessual/processo.php. Processo nº 0014844-13.2016.4.01.3400.

[5] Diga-se isso pois as Resoluções do Comitê Gestor do Simples Nacional trazem uma enormidade de elementos que devem ser considerados na apuração do imposto mensal, como faixa de Receita Bruta, observância do fator "r" que se extrai a partir da soma da folha de pagamento mensal e dos últimos 12 meses, cumulado com o cálculo, também, da Receita Bruta mensal com a Receita Bruta dos últimos 12 meses, veja demonstração no artigo 18 e ss. da LC nº 123/2006.

[6] Contabilidade: artigo 18, §5º-B, inciso XIV; Advocacia: artigo 18, §5º-C, inciso VII; ambos da LC nº 123/2006.

[7] Poder-se-ia falar do ônus atribuído aos contadores pelo que dispõe o artigo 18, § 22-B da LC nº 123/2006.

[8] Destacando-se que a MP nº 932/2020, alterou, provisoriamente, as alíquotas referidas. Consulte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv932.htm

[9] Vide comentário acima.

[10] Os cálculos tomam contornos ainda mais alarmantes se computarmos a contratação de um (a) secretário (a) ou um (a) advogado (a).

[11] Vale nota, até pelo que vemos nas Casas Legislativas, das tentativas de criminalizar, em alguns casos, o recebimento de honorários advocatícios. Aponte-se que a Receita Federal nos reserva (na verdade a todos os cidadãos) pelo menos três campos específicos no programa da Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda, na aba específica de abatimento do montante a ser pago de Imposto de Renda, para que os contribuintes informem os valores pagos aos advogados, ainda que os valores informados não tenham o condão de deduzir um centavo do montante global do IR a pagar.

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